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2 AMERICANOS QUEM SÃO OS AMERICANOS?

5.4 Novas formas de escravidão

O alcance inicial da proclamação da emancipação havia sido limitado, pois ela incidia apenas nos estados rebeldes e, portanto, não tinha um efeito imediato na vida de todos os escravos. Entretanto, essa proclamação sinalizou uma mudança de atitude em relação à escravidão que, de certa forma, preparou o caminho para a abolição da escravatura por meio da 13ª. Emenda constitucional em 1865.

Na prática, entretanto, a emancipação foi um processo gradual, doloroso e, sem dúvida, incompleto. Além das leis de segregação e de mecanismos públicos de humilhação, tortura e linchamento de negros139, o próprio sistema de opressão de trabalhadores nas plantations foi modernizado, com a substituição do trabalho escravo pelos sharecroppers - arrendatários de terra, que podiam ser brancos ou negros.

Em 1937, havia sido lançado um importante livro sobre a região Sul, que combinava fotografia, ficção e reportagem e apresentava ao público a situação dos trabalhadores rurais naquele momento histórico.

Pitoresco ou comum para olhos cheios de imagens de vídeo em cores, o livro de grande formato que combina fotografias em preto-e-branco e reportagem ou texto poético em igual espaço e dignidade foi um produto da década de 1930. Surgiu em conjunto com periódicos pictóricos como Fortune e Life, cujas primeiras edições apareceram em 1930 e 1937, respectivamente. Na propaganda, no jornalismo e na documentação social e publicidade como a patrocinada por agências governamentais como a Works Progress Administration e a Farm

Security Administration, a fotografia em preto e branco dominava a

comunicação de massa. É difícil dizer exatamente qual combinação de fatores criou o papel da fotografia como a mídia pública e a forma de arte pública mais influentes durante a década de 1930, mas o desastre social da Depressão teve um papel fundamental; forneceu um assunto novo, inevitável e inerentemente dramático para editores,

139 Em diversos estados do Sul dos Estados Unidos o linchamento de negros era bastante

comum, desde o final do século XIX até quase a metade do século XX. Os linchamentos eram práticas sociais violentas e públicas, geralmente anunciadas nos jornais locais, que atraíam um número enorme de brancos e geravam um clima de terrorismo racial.

redatores, escritores e fotógrafos. A Depressão aconteceu em preto e branco e ainda é lembrada dessa maneira.140

Alan Trachtenberg, em introdução para a edição de 1995 de You Have Seen Their Faces,

de CALDWELL e BOURKE-WHITE (1. ed. 1937, p.vi)

You Have Seen Their Faces141, com texto de Erskine Caldwell e fotografias de Margaret Bourke-White, era um novo tipo de livro. Do tamanho de um livro de mesa, ele é construído por um tipo de montagem na qual texto e imagem têm a mesma importância na construção do sentido. Cada uma das fotografias tem uma legenda, que não explica a imagem, mas sim busca expressar a percepção de Caldwell acerca dos sentimentos dos sujeitos retratados. As legendas, os relatos e os textos dos seis capítulos curtos, que aparecem intercalados com longas sequências de fotografias documentais, não são fictícios, mas a montagem dos materiais cria um novo texto, no qual os trabalhos dos dois autores dialogam e apresentam um panorama das condições de vida e de trabalho que prevaleciam nos latifúndios de algodão e tabaco na década de 1930. O grau de degradação da vida e do solo e os conflitos sociais produzidos pelo sistema econômico são mostrados sob vários pontos de vista. Por conta da estrutura do livro, o diálogo entre as duas formas expressivas – fotografia e texto - se completa apenas com a participação ativa do leitor.

O arrendatário negro é descendente do escravo. Por gerações, ele viveu com um medo mortal do chefe branco no país do algodão. Ele viu suas mulheres violadas e seus filhos humilhados. Ele próprio foi discriminado, enganado, açoitado e mantido à força em uma posição inferior. Todo rosto branco que ele vê é um lembrete da mutilação, queima e morte de seu irmão na fogueira. Ele não pode recorrer à lei,

140 No original: “Quaint or commonplace to eyes glutted on video images in color, the large-

format book that accords black-and-white photographs and reportage or poetic text equal space and dignity was a product of the 1930s. It arose in tandem with such pictorial

periodicals as Fortune and Life whose first issues appeared in 1930 and 1937, respectively. In advertising, in journalism, and in social documentation and publicity such as that

sponsored by government agencies like the Works Progress Administration and the Farm Security Administration, the still photograph in black and white dominated mass

communication. It is difficult to say just what combination of factors created photography’s role as the most influential public medium and public art form during the 1930s, but the social disaster of the Depression played a key role; it provided a new, inescapable, inherently dramatic subject for publishers, editors, writers, and photographers. The Depression happened in black and white and is remembered that way still.

porque lhe é negado o direito de julgamento perante seus pares. O arrendatário negro de uma plantation ainda é um escravo.142

Erskine CALDWELL,

em You Have Seen Their Faces (1995, p.11)

Nas fotografias de Bourke-White vemos nos corpos e nos rostos os efeitos do terrorismo racial, do trabalho incessante e da privação. Em uma das imagens, por exemplo, vemos cinco trabalhadores em uma plantação de algodão imensa em Lake Providence, na Louisiana. Pela legenda, entendemos que são negros aqueles corpos pequenos imersos na enorme plantação. Apenas metade de cada corpo aparece para fora do mar de algodoeiros. Seus olhares são baixos e suas costas estão inclinadas para frente para lidar com a terra. O corpo da figura mais central, mais próxima da câmera, forma uma diagonal que lembra o mergulho das bailarinas de Graham na fotografia de Barbara Morgan do episódio da Emancipation.

Fotografia de Margaret Bourke-White, em You Have Seen Their Faces (1995).

No fim da plantação, quase no ponto de fuga da imagem, vemos uma cabana pequena rodeada de algodão por todos os lados. Na página seguinte, a desproporção se repete e vemos uma fotografia de outra cabana parecida encontrada em Marion Junction, no Alabama. Aqui, a construção tosca de madeira está bem mais próxima

142 No original: “The Negro tenant farmer is the descendant of the slave. For generations he

has lived in mortal fear of the white boss in the cotton country. He has seen his women violated and his children humiliated. He himself has been discriminated against, cheated, whipped, and held forcibly in an inferior position. Every white face he sees is a reminder of his brother’s mutilation, burning, and death at the stake. He has no recourse to law, because he is denied the right to trial before his peers. The Negro tenant farmer on a plantation is still a slave.”

da câmera, mas ainda assim, a plantação de algodão ocupa dois terços da parte inferior da imagem, e parece engolir a pequena habitação. Acima dessa fotografia está escrito:

Não há lugar para plantar para mim um pequeno jardim quando o chefe branco diz para arar o algodão até a minha porta da frente.143

Erskine CALDWELL, em You Have Seen Their Faces (1995)

Ambas as imagens ilustram a desproporção entre o algodão (mercadoria) supervalorizado e o arrendatário (trabalhador) marginalizado. A plantação não tem fim e os agricultores envergados vivem confinados a pequenos barracos de madeira. Na página ao lado, há uma fotografia de um homem branco, de chapéu e óculos, que olha para longe. A legenda dessa fotografia diz:

O pessoal daqui não daria nem um centavo por inquilinos brancos. Eles podem obter o dobro de trabalho dos negros. Mas eles precisam ser treinados. Bata em um cachorro e ele vai te obedecer. Dizem que é da mesma maneira com os negros.144

Erskine CALDWELL, em You Have Seen Their Faces (1995)

Fotografia de Margaret Bourke-White, em You Have Seen Their Faces (1995).

143 No original: “No place to plant me a little garden when the white-boss says to plow cotton

in right up my front door.

144 No original: “Folks here wouldn't give a dime a dozen for white tenants. They can get

twice as much work out of the blacks. But they need to be trained. Beat a dog and he'll obey you. They say it's the same way with the blacks.”

Se o negro tinha uma certa “vantagem” ao ser escolhido como arrendatário, isso só ocorria porque o abuso de negros era mais aceito culturalmente, inclusive pelos próprios negros. Isso também revela que, no sistema capitalista, até o pior dos trabalhos gera competição e que essa só se intensifica com a cultura do preconceito e do ódio racial. Em uma das fotografias, feita em Statesboro, Georgia, há um trabalhador negro deitado no chão com as pernas encolhidas. Ao redor dele vemos imensas pilhas de tabaco. A câmera está na altura do chão e vemos sua cabeça de cima. Desse ângulo, o corpo magro e comprido parece estar completamente dobrado e desestruturado para caber naquele espaço reduzido. Como as bailarinas de Graham no trecho coreográfico que descrevemos há pouco, ele também apoia a mão fechada na testa. Seu rosto cansado brilha de suor. A legenda diz:

O chefe do leilão fala tão rápido que um homem de cor quase nunca sabe por quanto sua safra é vendida.145

Erskine CALDWELL,

em You Have Seen Their Faces (1995)

A exclusão e o abuso, inclusive linguístico, faziam com que os negros sobrevivessem completamente marginalizados. As condições de trabalho comuns em vários estados do Sul dos Estados Unidos na década de 1930 e expostas pelo trabalho de montagem em You Have Seen Their Faces revelavam que a escravidão estava longe de ser superada. Os corpos esgotados e deformados das fotografias mostravam a crueldade da realidade social que Caldwell e Bourke-White documentaram. É possível detectar no trabalho de Graham gestos que lembram as imagens que vemos nessas páginas. Corpos sem rosto, dobrados, cheio de ângulos ou inclinados, olhares que focavam o chão e explosões de religiosidade estavam presentes na composição coreográfica do episódio Emancipation.

Além disso, podemos notar que o tipo de montagem usado nas duas obras é bastante parecido: da mesma maneira que a coreografia e o texto dialogavam em American Document, também em You Have Seen Their Faces, o texto e as fotografias conversam entre si. O livro de Barbara Morgan também contém algo desse tipo de montagem, mas com uso mais contido do texto e um maior diálogo entre as

145 No original: “The auction boss talks so fast a colored man can't hardly ever tell how much

próprias imagens. Nos três trabalhos percebemos o desejo de documentação e a recusa de uma narrativa única e linear.