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2 AMERICANOS QUEM SÃO OS AMERICANOS?

5.6 Nós esquecemos demais

Capa da revista New Masses (1928).

Em 1944, Graham produziu pela primeira vez uma retrospectiva de seu trabalho coreográfico. Para tanto, foram remontadas onze danças, sendo quatro solos e sete trabalhos envolvendo a companhia, que foram apresentados em uma semana de espetáculos. American Document, que havia saído do repertório em 1942, foi remontado para o projeto com um elenco um pouco diferente e Merce Cunningham148 como interlocutor, no lugar de Houseley Stevens Jr. O texto usado era, aparentemente, o mesmo que havia sido publicado na Theatre Arts Monthly em setembro de 1942, já editado. O crítico de teatro Edwyn Denby comentou a nova versão:

"Documento Americano", por outro lado, é, na sua forma atual, um fracasso completo. Originalmente, ele parecia pelo menos esconder um pouco de protesto e apresentar nossa história tanto por suas desgraças quanto por seus pontos fortes. Atualmente, parece ter a intenção de ser apenas uma glorificação presunçosa.149

Edwin DENBY, para o New York Herald Tribune (12 maio 1944)

148 Merce Cunningham foi o segundo bailarino homem a entrar para a companhia de Martha

Graham (o primeiro foi Erick Hawkins). Ainda nos anos 1940, ele inicia sua carreira de coreógrafo e sua parceria com o músico John Cage, e em 1954, ele forma a sua própria companhia. Cunningham acabou se tornando um dos mais inovadores coreógrafos da geração seguinte. Graham disse uma vez que ele foi o melhor bailarino que ela teve na companhia, até que ele começou a ter ideias...

149 No original: “’American Document’, on the other hand, is in its present form a complete

failure. Originally it seemed at least to conceal some sting of protest and to present our history as much for its disgraces as for its strengths. At present, it seems intended merely as smug glorification.”

Considerando a dimensão dos eventos históricos que aconteceram entre 1938 (estreia de American Document) e 1942 (publicação do libreto), a mudança de tom parece compreensível. O momento da estreia, mesmo com toda a apreensão, ainda era um momento festivo, de novas alianças políticas e colaborações artísticas. Os eventos que se seguiram, entretanto, minaram o clima de esperança da Frente Popular. Em 1939, a Segunda Guerra Mundial estourou e a União Soviética assinou um pacto de não agressão com Hitler, diminuindo enormemente o poder de fogo do Partido Comunista. Em junho de 1941, a Alemanha nazista invadiu a União Soviética e em dezembro do mesmo ano, o Japão atacou a base norte-americana de Pearl Harbor. Logo em seguida, os Estados Unidos entraram na guerra. Entre 1942 e 1944, a situação era a de uma guerra global, sem previsão de término. Com as tropas americanas recrutadas e atuantes e um clima geral de apreensão e tristeza, Graham enxugou o texto original, diminuindo o volume da crítica social e aumentando o tom patriótico.

A arte da dança, como sabemos, tem um caráter inescapável de impermanência. No caso de uma obra tão sincronizada com seu tempo e local históricos como foi American Document, é preciso considerar que cada montagem incorporava necessariamente um novo ‘agora’. Nossa pesquisa, portanto, só pode acessar a obra pela análise de documentos produzidos a partir de diferentes versões dessa dança-peça, que foi se modificando em sintonia com as mudanças históricas. Quando comparamos filmes e fotografias, por exemplo, observamos que os figurinos e o próprio cenário foram sendo trocados e modificados. É difícil traçar exatamente como essas transformações foram acontecendo, mas é possível inferir um pouco sobre o processo de edição do texto a partir dos comentários publicados nos periódicos. Um repórter não-identificado do Durham Herald e Elizabeth McCAUSLAND, do Springfield Republican, por exemplo, citam algumas questões que eram comentadas no texto original do episódio Emancipation, antes dos cortes:

Para citar o comentário que é falado como um oráculo (em American

Document): “Nós, americanos, não somos todos bons. Mas a terra é

boa. Os direitos são bons. Nós esquecemos demais. Quero lembrar - coisas das quais tenho vergonha: assuntos relativos aos índios; escravos; Sacco e Vanzetti150; arrendatários de terra; os meninos de 150 Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram dois imigrantes italianos que se tornaram

Scottsboro151. Coisas das quais me orgulho: meus direitos; a terra;

alguns homens…"152

Durham Herald (1 jan. 1939)

A escravização do povo negro não é um capítulo da história americana para o qual os amantes da liberdade possam olhar para trás com alegria. São descritos (em American Document) casos clássicos de injustiça, como a execução de Sacco e Vanzetti, a prisão prolongada de Tom Mooney153 e a farsa de julgamento dado aos meninos de

Scottsboro.154

Elizabeth McCAUSLAND, para o Springfield Republican (16 out. 1938)

A menção de casos de injustiça recentes e que envolviam não só negros, mas também imigrantes e ativistas políticos, ampliava a discussão sobre os direitos à vida e à liberdade, sugerindo que em uma democracia real, como aquela idealizada nas falas de Lincoln, todos deveriam ser incluídos. Quando Graham apresentou American Document no Carnegie Hall, em 1938, o público era majoritariamente formado por trabalhadores que liam a New Masses e frequentavam espetáculos de teatro e dança. Para eles, essas questões eram da maior importância e urgência. Com a entrada dos Estados Unidos na guerra, a atenção se desviou. Parte desse público foi recrutado

funcionários durante um assalto a uma fábrica de calçados em Massachusets. Apesar de diversos testemunhos afirmando que eles não estavam no local do crime, eles foram condenados e mortos na cadeira elétrica em 1927.

151 Em 1931, nove garotos negros foram falsamente acusados de estuprar duas garotas

brancas em um trem de carga, no Alabama. Os julgamentos tendenciosos foram

amplamente comentados pela imprensa norte-americana e desencadearam manifestações por todo o país. O partido comunista acabou se envolvendo na defesa dos garotos, sem grande sucesso. Os meninos de Scottsboro foram julgados por júris compostos apenas por brancos e condenados em três ocasiões diferentes.

152 No original: “To quote from the commentary which is spoken like an oracle: “We

Americans are not all good. But the land is good. The rights are good. We forget too much. I want to remember - things I am ashamed of: Indian affairs; slaves; Sacco and Vanzetti; sharecroppers; the Scottsboro boys. Things I am proud of: my rights; the land; some men…”

153 Tom Mooney foi um sindicalista preso e condenado por conta da explosão de uma

bomba que causou a morte de dez pessoas em uma manifestação de rua durante uma greve de trabalhadores das indústrias de eletricidade em São Francisco. Mooney foi inicialmente condenado à morte e isso desencadeou uma série de protestos.

Eventualmente, sua sentença foi modificada para prisão perpétua e, em 1939, o governador da California pediu desculpas a Mooney. O perdão oficial só saiu em 1961.

154 No original: “The enslavement of the Negro people is not a chapter in American history on

which lovers of freedom can look back with joy. Classic instances of injustice are described such as the execution of Sacco and Vanzetti, the long-continued imprisonment of Tom Mooney and the travesty of a trial given the Scottsboro boys.”

para o exército, outra parte esperava notícias de familiares que viviam na Europa ou dos filhos, maridos e irmãos, que estavam lutando pelo país. Depois de Pearl Harbor, era preciso acreditar que os Estados Unidos eram uma nação pela qual valia a pena lutar ou morrer, e não fazia bem ficar lembrando dos casos de injustiças. Com isso, American Document perdeu grande parte da sua força, que derivava de um tipo de crítica à história norte-americana determinada a questionar os acontecimentos, mas não os princípios ordenadores do processo de construção do país. Depois de 1944, esse trabalho nunca mais foi montado155.