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Das condições materiais para a emergência do ciberespaço

No documento O CIBERESPAÇO COMO CATEGORIA GEOGRÁFICA (páginas 31-37)

1. UMA PRIMEIRA DEFINIÇÃO DE CIBERESPAÇO

1.1 Das condições materiais para a emergência do ciberespaço

Para se compreender a emergência do ciberespaço como uma categoria geográfica é necessário que se realize um pesquisa sobre o desenvolvimento histórico do mesmo e, para tanto, é preciso avaliar como algumas questões tecnológicas foram se complexificando no mundo pós revolução industrial. É conhecido como o mundo, especialmente o mundo ocidental, se transformou a partir da revolução industrial iniciada em meados do século XVIII e amplificada durante o século XIX. A relação que havia antes da revolução industrial entre conhecimento científico, domínio técnico e estrutura social, era mediada por uma relação de produção ainda baseada em um capitalismo incipiente. Somente após a criação de um sistema técnico determinado, o industrial, que o capitalismo pode se afirmar de modo mais estruturante, a ponto de modificar profundamente a estrutura social e espacial existente. A máquina, em especial a máquina a vapor, foi para esse período o grande marco material e simbólico, que resumia a forma como a humanidade passaria então a explorar os recursos naturais e a estabelecer padrões de relações sociais.

A revolução industrial abriu as portas para a construção de uma sociedade industrial urbana, que, dentre outros enunciados possíveis, iniciou um processo de direcionamento da produção de conhecimentos científicos em prol da transformação social. As ciências como são entendidas hoje, tiveram suas primeiras inserções mais amplas na sociedade nesse mesmo período e rapidamente, foram apropriadas pelos mecanismos de produção econômica. É claro que nem todo o desenvolvimento científico do período se devia a uma necessária imbricação com o capitalismo industrial, mas sim que, em grande medida, principalmente ao final do século XIX e

início do século XX, houve uma apropriação da ciência por parte da indústria que criou as condições para ampliar o funcionamento e a eficiência do modo de produção industrial.

Tal esforço gerou transformações diversas no modelo existente de produção industrial, inicialmente estabelecidos no arranjo de linhas de produção em série e nas teorias científicas da administração, que possibilitaram os elementos para o aumento expressivo da produtividade e, por conseguinte, da lucratividade dos empreendimentos industriais. Essa relação benéfica entre o progresso científico e a industrialização foi amplamente utilizada no fim do século XIX, quando foi permitida a emergência de uma segunda revolução industrial em que modos mais eficientes de utilização de insumos e meios industriais foram descobertos.

O desenvolvimento tecnológico passaria assim, a ser um objetivo fomentado e atingido por toda a iniciativa privada industrial e não só, posto que até o setor de serviços e mesmo os governos começaram a ser inseridos nesse processo de incremento do desenvolvimento tecnológico. Um possível clímax para esse período foi a elaboração da indústria química e elétrica, quando é dado o início da utilização de hidrocarbonetos, presentes no petróleo e no gás natural, em larga escala como combustíveis e insumos industriais e a expansão corrente da eletrificação urbana. As repercussões desse desenvolvimento tecnológico foram o aumento expressivo da produtividade industrial, possibilitando o desenho de uma sociedade industrial baseada no consumo de massa, possível através da produção padronizada e em série de bens de consumo.

A partir da constituição da indústria eletroeletrônica, e principalmente da microeletrônica, em meados da década de 1940, foram criadas as condições para a chamada terceira revolução industrial, que estaria repleta de uma caracterização “tecnológica”, termo em muitos sentidos associado às noções de progresso e melhoria. Tal revolução, também chamada de revolução técnico-científica- informacional, coincide com o desenvolvimento da chamada indústria de ponta como a automobilística, a de aviação e a eletroeletrônica, realçada na indústria da computação e da informática. Nesse mesmo período, há uma crescente ampliação das

redes comunicacionais, advindas da complexificação da indústria das telecomunicações, coincidindo com o que Milton Santos chama de período tecnológico na história da formação do capitalismo (SANTOS, 2002a). É esse momento em que se instauram os primeiros contornos do que viria a ser o ciberespaço.

Para o entendimento claro dessa terceira revolução e, como consequência, da emergência do ciberespaço, urge um retorno até os primórdios da indústria da informação e da computação. Sobre esse aspecto, Manuel Castells aponta o seguinte:

Apesar de os antecessores industriais e científicos das tecnologias da informação com base em microeletrônica já poderem ser observados anos antes da década de 1940 (não menosprezando a invenção do telefone por Bell, em 1876, do rádio por Marconi, em 1898, e da válvula a vácuo por De Forest, em 1906), foi durante a Segunda Guerra Mundial e no período seguinte que se deram as principais descobertas tecnológicas em eletrônica: o primeiro computador programável e o transistor, fonte da microeletrônica, o verdadeiro cerne da revolução da tecnologia da informação no século XX (1999, p. 76).

Para ele, ainda que as condições primárias tenham se dado durante a Segunda Guerra Mundial, somente a partir da década de 1970 que as tecnologias da informação “difundiram-se amplamente, acelerando seu desenvolvimento sinérgico e convergindo em um novo paradigma” (idem), o paradigma da chamada sociedade da informação7. Ao delimitar os fatores materiais que deram sustentação para o

surgimento desse paradigma, Manuel Castells (1999) elenca alguns acontecimentos na área da microeletrônica que foram fundamentais neste processo, dentre eles estão os seguintes: a invenção do transistor em 1947, que permitiu o rápido processamento de impulsos elétricos em modo binário, possibilitando a comunicação entre máquinas; a fusão de milhares de transistores em um chip e sua fabricação em silício em 1954; e o circuito integrado, inventado em 1957 e sua fabricação em processo plano em 1959 (CASTELLS, 1999, p. 76-77).

Além desses primeiros movimentos, foram necessárias algumas invenções e descobertas na área específica da computação para o surgimento do paradigma de uma sociedade da informação, dentre eles Castells (1999, p. 78-80) aponta algumas: a invenção dos computadores durante a Segunda Guerra Mundial; o desenvolvimento

do primeiro computador de uso geral, o ENIAC8 em 1946; o surgimento da primeira

versão comercial do computador de uso geral, o UNIVAC19 em 1951; a invenção do

microprocessador em 1971, ou seja, a transformação do computador em um único chip; a fabricação das “caixas de computação” Altair, em 1975, que foram a base do desenho dos microcomputadores Apple I e Apple II; e, finalmente, a introdução no mercado, em 1981, dos computadores pessoais (CP ou PC10, como ficou mais

conhecido em sua sigla em inglês) pela IBM.

Outro fator de especial atenção para a emergência da sociedade de informação e sua consequente repercussão no que vem a ser entendido como ciberespaço, trata das interfaces de linguagem de comunicação entre computadores e seres humanos, emplacadas na elaboração de softwares, como os já utilizados pelo Macintosh da Apple em 1984 (CASTELLS, 1999, p. 80). Tal realização foi um passo decisivo para a facilitação do uso dos computadores de um modo geral para usuários leigos em microcomputação, tornando o manuseio dessas máquinas algo plausível a qualquer indivíduo.

Não é possível olvidar outro domínio tecnológico que foi primordial para o estabelecimento de um espaço cibernético, como o das telecomunicações, desenvolvido graças à retroalimentação tecnológica entre este domínio e o da microeletrônica. Desde meados da década de 1980, graças a essa combinação tecnológica, os microcomputadores começam a ser interligados em rede, numa grande teia de interação:

[...] essa capacidade de desenvolvimento de redes só se tornou possível graças aos importantes avanços tanto das telecomunicações quando das tecnologias de integração de computadores em rede, ocorridos durante os anos 70. Mas, ao mesmo tempo, tais mudanças somente foram possíveis após o surgimento de novos dispositivos microeletrônicos e o aumento da capacidade de computação, em uma impressionante ilustração das relações sinérgicas da revolução da tecnologia da informação (CASTELLS, 1999, p. 81).

A partir dessa revolução, estavam criados os pressupostos materiais para a existência da internet, essa “rede global de redes de computadores” (CASTELLS,

8 Electronic Numerical Integrator and Computer, Computador Integrador Numérico Electrônico em tradução

livre.

9 Universal Automatic Computer 1, Computador Automático Universal em tradução livre.

2003, p. 13) que dá forma e conteúdo para boa parte das dimensões do ciberespaço. Em seu histórico de instituição, desde os projetos militares iniciais11 como a rede

ARPANET em 1969, passando pela ligação desta com outras redes como a PRNET e a SATNET em 1973, através da inserção massiva da pesquisa acadêmica, até a privatização da ARPANET, ao se transformar em ARPA-INTERNET e ser liberada para o domínio público por meio da utilização de protocolos TCP/IP12 nos

computadores pessoais já na década de 1980, a internet passou por formulações e reformulações que moldaram a sua configuração atual. Tal estruturação envolveu o governo, especialmente os militares, as empresas privadas, os institutos de pesquisa acadêmica e a sociedade civil, na figura de pesquisadores e entusiastas autônomos. A internet, ou a rede mundial de computadores, efetiva-se plenamente e de forma aberta a todos que possuíssem um computador pessoal e uma linha telefônica, com a montagem de portas de comunicação comerciais no início da década de 1990:

A partir de então, a internet cresceu rapidamente como uma rede global de redes de computadores. O que tornou isso possível foi o projeto original da Arpanet, baseado numa arquitetura em múltiplas camadas, descentralizada, e protocolos de comunicação abertos. Nessas condições a Net pôde se expandir pela adição de novos nós e a reconfiguração infinita da rede para acomodar necessidades de comunicação (CASTELLS, 2003, p. 15).

Essa caracterização da internet, não seria possível se alguns outros elementos tivessem sido pesquisados e disponibilizados ao público. Castells (2003, p. 16-18) discute acerca de alguns desses elementos, dentro os quais se pode destacar o modem, que permite a transferência de arquivos entre computadores; o sistema operacional13 UNIX, o primeiro a ser disponibilizado amplamente com seu código-

fonte aberto a alterações14; a aplicação de compartilhamento de informação a partir 11 Aqui cabe ressaltar o papel fundamental da condução de pesquisas militares para o desenvolvimento tecnológico tanto da microeletrônica quanto das telecomunicações de um modo geral, especialmente no período compreendido entre 1940 e 1970 nos EUA, fato que corrobora a preocupação crescente que o desenvolvimento tecnológico passou a ter não só para a iniciativa privada, como também para os governos. 12 “O TCP/IP é o principal protocolo de envio e recebimento de dados MS internet. TCP significa

Transmission Control Protocol (Protocolo de Controle de Transmissão) e o IP, internet Protocol (Protocolo

de internet). [...] Para quem não sabe, protocolo é uma espécie de linguagem utilizada para que dois computadores consigam se comunicar. Por mais que duas máquinas estejam conectadas à mesma rede, se não “falarem” a mesma língua, não há como estabelecer uma comunicação. Então, o TCP/IP é uma espécie de idioma que permite às aplicações conversarem entre si” (MARTINS, 2012, on-line).

13 Um sistema operacional trata de um conjunto de programas que funcionam como gerenciadores dos recursos do sistema, inicializando o hardware do computador, controlando o uso de dispositivos, gerenciando, escalonando e interagindo tarefas diversas e mantendo a integridade do sistema.

de documentos em hipermídia que são interligados e executados na internet denominada World Wide Web – WWW –; e, finalmente, os navegadores, ou softwares de interação com documentação virtual na internet.

Todos esses acontecimentos se deram basicamente até a última década do século XX, sendo que já nos primeiros anos do século XXI, pode-se observar um aumento progressivo tanto no desenvolvimento das tecnologias comunicacionais e informacionais, quanto no aparato da rede mundial de computadores e em seu uso.

Outro fenômeno que merece atenção no bojo desse desenvolvimento tecnológico e que amplia a base material do que é o ciberespaço, trata da convergência digital, que consiste basicamente na integração de diversos formatos de mídias em um único ambiente de interação, um multicanal. Telefone celular, rádio, televisão, jornal, livro digitai (e-book), enfim, diversas mídias, passam a ter uma transmissão de conteúdos integrada em um único dispositivo, tendo a internet como ponto de partida para a ampliação dessa convergência. Nesse sentido, a plataforma material do ciberespaço passa a ser mais ampla do que os computadores e suas variações em rede (desktops, laptops, palmtops, tablets, consoles de videogames, dentre outros), mas até mesmo televisores e telefones celulares conectáveis à internet15.

Questões mais elaboradas acerca da materialidade do ciberespaço serão abordadas oportunamente no próximo capítulo. Neste momento, dado este quadro inicial de possibilidades tecnológicas implementadas, é factível abordar a emergência propriamente dita do ciberespaço enquanto conceito.

existem.

15 Recentemente a empresa Samsung apresentou uma geladeira que possui acesso à internet, ver, por exemplo: “Geladeira conectada tem tela para ler receitas e tuitar enquanto se cozinha”, disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/01/geladeira-conectada-tem-tela-para-ler-receitas-e-tuitar- enquanto-se-cozinha.html>, acesso em 23 de janeiro de 2013.

No documento O CIBERESPAÇO COMO CATEGORIA GEOGRÁFICA (páginas 31-37)