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Propriedade e privacidade

No documento O CIBERESPAÇO COMO CATEGORIA GEOGRÁFICA (páginas 116-121)

4. PRESSUPOSTOS TERRITORIAIS DO CIBERESPAÇO

4.5 Propriedade e privacidade

É certo que um dos pilares das sociedades ocidentais ou ocidentalizadas em termos do desenvolvimento do capitalismo é a noção de propriedade, especialmente a de propriedade privada. Norberto Bobbio et al. (2000) destaca que dentro do sistema capitalista “o conceito de Propriedade privada goza de acepção mais ampla e de um peso econômico-político acentuado” (p. 1024), pois é ele mesmo que estrutura essencialmente o sistema capitalista e modula a vida econômica, condicionando-a. O conceito de propriedade privada é tão importante para o capitalismo, que ele é utilizado de uma forma múltipla, acentuando o peso que o mesmo poderia ter em

determinados objetos – quando não, em ideias – que não teriam o mesmo valor que a propriedade dos recursos econômicos ou dos meios de produção, como disposto na visão marxista, afinal, tudo é possível, em algum momento, de ser transformado em propriedade privada (excetua-se aí, talvez, apenas a propriedade de outros seres humanos), cumprindo um papel fundamental dentro do sistema capitalista:

[...] embora as outras formas em que se molda a Propriedade privada, especialmente a que se refere a sujeitos individuais e a objetos de uso e de consumo e não de “especulação econômica”, pareçam marginais em relação ao funcionamento global do sistema, elas desempenham uma função que está longe de ser indiferente no apoio àquela que é efetivamente determinante. Constituem, de fato, um “princípio” ou “valor” que legitima até culturalmente (e não apenas como expressão de um princípio jurídico geral) as formas economicamente dominantes da Propriedade privada; por outras palavras, elas fazem com que o “valor” da Propriedade privada seja de tal maneira compartido, a todos os níveis da sociedade onde se é ou se aspira a ser proprietário de qualquer objeto ou bem julgado importante para o indivíduo (ou grupo familiar), que qualquer ataque a essa Propriedade será interpretado como uma ameaça aos próprios interesses, mesmo quando ela tiver por alvo as outras formas, bem mais importantes, de Propriedade (BOBBIO et al., 2000, p. 1025).

Assim, tem-se que a propriedade privada, tanto a dos meios de produção, quanto a de bens de consumo é estruturante do sistema capitalista, chegando ao ponto de a mesma ser considerada uma pessoa de direitos, como no caso das corporações ou das chamadas pessoas jurídicas que se estabelecem em torno de uma propriedade: uma indústria, por mais que possua capital acionário disponível em bolsas de valores, é, ainda, propriedade de seus acionistas, contudo, ela é uma “pessoa”, com registro no governo e direitos parciais ou análogos às demais “pessoas” não jurídicas.

Isso tudo é importante em termos da estruturação do ciberespaço, pois, a lógica de propriedade privada do espaço geográfico é perpetrada nele. Pessoas, jurídicas ou “físicas” são donas de porções de dados dentro do ciberespaço, são donas em alguns casos de bytes armazenados em algum servidor e dispostos em uma linguagem de programação específica, são donas dessa linguagem de programação, são donas da estruturação lógica dessa linguagem, são donas dos servidores de armazenamento de dados, enfim, são donas de impulsos eletrônicos interpretáveis por dispositivos criados por pessoas – físicas ou “não físicas” – que possuem o direito de propriedade privada não sobre os dispositivos em si, pois já foram vendidos, mas sobre sua forma de confecção, por meio das propriedades privadas intelectuais.

A seara do universo privado dentro do ciberespaço é larga e alguns pressupostos já foram dados acerca da propriedade de programas e aparelhos que compõem o mesmo, entretanto, uma das áreas mais problemáticas acerca desse universo trata da propriedade privada de obras artísticas, especialmente, as vinculadas às indústrias da música, de filmes, de séries televisas e de livros. Uma estimativa real de quantos bytes representam o fluxo de transferência de dados de conteúdos protegidos por direitos autorais no ciberespaço ainda carece de ser realizada, mas algumas notícias já dão mostras de como tais bens tem sido violados em suas questões de propriedade. No mesmo rol de bens que podem ser considerados como propriedades privadas e que são largamente explorados na cadeia da pirataria

on-line, estão os jogos eletrônicos.

Casos mais aprofundados acerca de como funciona a dinâmica territorial desse universo serão abordados no próximo capítulo, entretanto, ainda no debate acerca dos pressupostos territoriais do ciberespaço, cabe discorrer ainda um tanto sobre a dinâmica de propriedade instaurada pelos conteúdos não indexados à internet de uso comum, ou a chamada internet profunda – ou deep web como é comumente atribuída no mundo digital.

Se se realizar uma busca sobre a deep web na internet, milhares de páginas relatarão a mesma proposta de que a deep web corresponde a 99% do conteúdo que está disposto na rede (RADFAHRER, 2013) e mais, ainda colocam um alto grau de fantasia e mistificação acerca da mesma, ao atribuir que por ela trafega o lado obscuro da humanidade, sendo que quase todo o seu conteúdo seria reversado a transmissão de dados ilegais – aqui dispostos como material de pedofilia, estupros, assassinatos, drogas, terrorismo, dentre outros assombros que percorrem cotidianamente a mente humana. Entretanto, o que ocorre é que este 99% de dados não indexados em mecanismos de busca, ou seja, não dispostos na internet de uso comum, são em sua maioria protegidos por questões de propriedade, como Luli Radfahrer bem aponta acerca da deep web:

Todo mundo já acessou documentos dela, mesmo que nunca tenha baixado um filme, aplicativo ou música ilegal. Boa parte do tráfego de informações financeiras, comerciais, estratégicas, científicas e administrativas se dá

escondido do público. Não são conspirações nem lavagem de dinheiro, mas transações como extratos bancários e exames laboratoriais que, apesar de usarem a internet, não são públicos. Também há repositórios privados, redes militares, fóruns estratégicos, intranets e laboratórios de pesquisa cujos dados, estratégicos, valem uma nota e precisam ser restritos a assinantes (RADFAHRER, 2013, on-line).

Mas o mais interessante nesse caso não corresponde à dinâmica necessariamente da propriedade privada, mas sim às questões centrais que a privacidade exerce no ciberespaço. A existência dessa internet “anônima”, não passível de pesquisa ampla por parte de qualquer usuário do ciberespaço só é possível devido à necessidade de privacidade inerente a qualquer indivíduo, ou pelo menos, a uma grande parte dos mesmos, como Tatiana Malta Vieira propõe:

Privacidade e liberdade se amalgamam como duas faces de uma mesma moeda, uma vez que tão-somente o manto de proteção da privacidade proporciona a um indivíduo o direito ao exercício da liberdade. Exercer com tranquilidade a liberdade de consciência, de crença e de expressão supõe o exercício do direito que se concede a qualquer pessoa, de dispor de um espaço reservado em que possa voltar-se para si mesma, sem prender-se ao jugo de qualquer censura, sem sentir-se cativa da observação de outrem. Nesse sentido, a privacidade proporciona ao indivíduo a oportunidade de desvencilhar-se de todas as máscaras que a sociedade lhe impõe, ou seja, confere-lhe um espaço reservado, seguramente inviolável, em que ele pode explorar livremente o seu íntimo, despido do temor de uma reprimenda externa, para exercer, enfim, o seu direito de autodeterminação (2007, p.20)

Nesse sentido, a proteção à privacidade no ciberespaço vem se configurando como uma das principais preocupações dos usuários e de ativistas, especialmente àqueles vinculados à cibercultura. Só recentemente que a maior parte dos usuários do ciberespaço tomaram conhecimento amplo de como a ideia do anonimato na rede é um tanto inviável, o que dispôs diversos sujeitos a terem suas privacidades invadidas por despreparo para lidar com as novas tecnologias de comunicação e informação.

A privacidade tem sido corriqueiramente violada por empresas proprietárias de certos territórios no ciberespaço, como é o caso do Facebook e do Google, que armazenam informações de seus usuários para lucrarem por meio do uso de tais informações. Um sujeito qualquer, que potencialmente não lê os termos de condições para uso de certos produtos dentro do ciberespaço, não percebe o quanto seu comportamento está sendo monitorado, armazenado e utilizado por meio de algoritmos complexos de cruzamento de informações para fins de lucro dessas

empresas que controlam grande parte do ciberespaço e a ameaça que isso pode representar em termos de poder. As empresas percebem que cada vez mais o ciberespaço se estrutura como uma mimese do espaço geográfico e tiram proveito do desempenho dos indivíduos nesse ambiente, e é por isso que essa fronteira espacial cada vez mais tem sido disputada.

A propriedade privada estrutura o ciberespaço, o anseio pelo exercício da plena liberdade acomete cada vez mais os transeuntes – ou navegadores – do mosaico de territórios que o compõem e assim, abrem-se às portas de batalhas e disputas que potencialmente podem ser a mais nova fronteira de guerra no planeta (ARQUILLA & RONFELDT, 1993; ISMAIL & YUNOS, 2005).

No documento O CIBERESPAÇO COMO CATEGORIA GEOGRÁFICA (páginas 116-121)