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A questão técnica e tecnológica

No documento O CIBERESPAÇO COMO CATEGORIA GEOGRÁFICA (páginas 52-57)

2. REFLEXÕES SOBRE A MATERIALIDADE DO CIBERESPAÇO

2.1 A questão técnica e tecnológica

Para tomar ciência das particularidades materiais do ciberespaço, tentando entendê-las em sua estrutura de objetos técnicos, é interessante fazer uma volta em busca não da materialidade dos objetos técnicos em si, mas sim, de sua essência. Como Martin Heidegger bem demonstra (2007), compreender a questão técnica perpassa uma tentativa de se chegar à sua essência:

A essência de algo vale, segundo antiga doutrina, pelo que algo é. Questionamos a técnica quando questionamos o que ela é. Todos conhecem os dois enunciados que respondem à nossa questão. Um diz: técnica é um meio para fins. O outro diz: técnica é um fazer do homem. As duas determinações da técnica estão correlacionadas. Pois estabelecer fins e para isso arranjar e empregar os meios constitui um fazer humano. O aprontamento e o emprego de instrumentos, aparelhos e máquinas, o que é propriamente aprontado e empregado por elas e as necessidades e os fins a que servem, tudo isso pertence ao ser da técnica. O todo destas instalações é a técnica. Ela mesma é uma instalação; expressa em latim, um

Para ele, a questão técnica enquanto essência deve remeter-se à um plano de correção e da verdade, ou seja, é preciso que se coloque a técnica fora do âmbito meramente instrumental, e pô-la a descoberto na esfera da essência. Para esse caso, Heidegger se utiliza de um percurso metodológico específico, questiona-se o que é o instrumental e onde se situa um meio e um fim:

Um meio é algo pelo qual algo é efetuado e, assim, alcançado. Aquilo que tem como consequência um efeito, denominamos causa. Contudo, não somente aquilo mediante o qual uma outra coisa é efetuada é uma causa. Também o fim, a partir de que o tipo do meio se determina, vale como causa. Onde fins são perseguidos, meios são empregados e onde domina o instrumental, ali impera causalidade (HEIDEGGER, 2007, p. 377).

As causas, para a filosofia aristotélica, são quádruplas: a causa materialis, a causa formalis, a causa finalis e a causa efficiens, ou seja, a matéria de que algo é feito, a forma onde se instala essa matéria, o fim a que se propõe esse algo feito e o efeito que transformou a matéria no algo pronto, quem o moldou ou o construiu, por exemplo. A partir dessa acepção, Heidegger chega a estabelecer que, conforme os gregos compreendiam, a causa deve ser entendida não como reagir ou efetuar, mas sim, como aquilo que compromete uma outra coisa. Por isso “As quatro causas são modos de comprometimento relacionados entre si” (HEIDEGGER, 2007, p. 377). A unidade desses comprometimentos se apresenta na coisa preparada, disposta, pois esses comprometimentos possibilitaram à coisa um completo surgimento: “O comprometimento é ocasionamento no sentido de um tal deixar existir” (HEIDEGGER, 2007, p. 379). Nesses termos, as causas, os comprometimentos, são ocasionamentos que deixam vir à presença aquilo que ainda não se apresentou: nisso resulta o produzir. A esse aspecto, Heidegger dá singular atenção à causa efficiens, pois pensar em sua amplitude o produzir, conduz ao reconhecimento não da coisa produzida em si, mas dos efeitos promovidos para o ser se apresentar: “o que é produzido manual e artisticamente [...] tem a irrupção do produzir não em si mesmo, mas num outro, no artesão e no artista” (2007, p. 379).

Continuando nessa busca da essência técnica, Heidegger começa uma investigação acerca do que é o produzir: “O produzir leva do ocultamento para o descobrimento. O trazer à frente somente se dá na medida em que algo oculto chega ao desocultamento. Este surgir repousa e vibra naquilo que denominamos o

desabrigar” (2007, p. 380). Para ele o desabrigar se instaura como o fundamento de todo o produzir,

Este, porém, reúne em si os quatro modos de ocasionar – a causalidade – e os perpassa dominando. A seu âmbito pertencem fim e meio, pertence o instrumental. Este vale como o traço fundamental da técnica. Questionemos passo a passo o que a técnica representada como meio é em sua autenticidade e então chegaremos ao desabrigar. Nele repousa a possibilidade de todo aprontar que produz algo (2007, p. 380).

Disso exposto, resulta que a técnica não pode ser encarada como um meio apenas, ela é, antes de tudo, um modo de desabrigar. Nesse momento, Heidegger chama a atenção para a origem grega da palavra técnica, a qual se remete à palavra grega τέχνη (téchne), que se relaciona com outra palavra grega: episteme ( πιστήμη):ἐ “Ambas são nomes para o conhecer em sentido amplo. Significam ter um bom conhecimento de algo, ter uma boa compreensão de algo. O conhecer dá explicação e, enquanto tal, é um desabrigar” (HEIDEGGER, 2007, p. 380), assim, nesse caso, a essência do desabrigar reside na transposição de algo enquanto existência para o seu conhecimento; esse algo ao ser conhecido desabriga-se de si. A técnica “desabriga o que não se produz sozinho e ainda não está à frente e que, por isso, pode aparecer e ser notado, ora dessa, ora daquela maneira” (HEIDEGGER, 2007, p. 380), por isso a técnica é um trazer à luz, por isso o importante para a compreensão da essência da técnica não se estabelece nos processos de fazer ou no uso dos meios, mas no trazer para a frente.

É certo que esta conceituação de Heidegger, é muito mais apropriada para a técnica enquanto vista pelos gregos ou mesmo à que corresponde até antes dos processos de revolução industrial. Sobre as técnicas modernas, Heidegger propõe uma observação mais ampliada:

O que é a técnica moderna? Também ela é um desabrigar. [...] O desabrigar imperante na técnica moderna é um desafiar que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal. (HEIDEGGER, 2007, p. 381).

Assim, Heidegger compreende a complexidade do fenômeno técnico moderno. Ela reside num desabrigar desafiante, que desafia os limites naturalmente dados e isso reifica, ou tecnifica, todas as coisas, até mesmo os elementos da natureza que passam a ser entendidos não enquanto a sua realidade em si, mas

desabrigados já em uma noção utilitária de sua potencialidade enquanto técnica. Mesmo uma porção da natureza tomada enquanto uma paisagem, já é para Heidegger um objeto desabrigado: “Mas o Reno permanece, poderíamos objetar, um rio da paisagem. Pode ser, mas como? Nada mais do que um objeto encomendável para a visitação de grupos de turismo, que uma indústria de turismo encomendou para poderem visitar este local” (2007, p. 382). Heidegger não esgota a sua análise sobre o fenômeno técnico aqui, entretanto, para o debate com outros pressupostos já basta. Cabe notar que a discussão empreendida por Heidegger gira muito mais em torno da essência da questão técnica, que se configura justamente no desabrigar que transforma.

Agora que já se possui um contorno da essência da técnica, voltando ao campo da instrumentalidade, que Heidegger deixou de lado nesse primeiro momento, cumpre traçar alguns paralelos entre essa perspectiva fenomenológica e uma certa digressão geográfica sobre o tema. Numa associação muito mais fundada em uma análise instrumental das técnicas é que reside a construção histórico-conceitual de Milton Santos (2002) sobre as técnicas. A esse referencial desabrigador que transforma o espaço, Santos dá um enfoque especial à dimensão instrumental no que toca à geografia:

É por demais sabido que a principal forma de relação entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio, é dada pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço (SANTOS, 2002, p. 29).

Num sentido muito próximo, ainda que com uma vinculação antropológica e ecológica mais explícita, Paul Claval (2001) propõe o vislumbre das mediações tecnológicas que relacionam grupos e meio ambiente com aspectos nitidamente instrumentais, mas que correspondem ao ponto de vista instaurado por Heidegger ao abordar a tecnificação da natureza, ou a instrumentalização da mesma:

O ambiente só tem existência social através da maneira como os grupos humanos o concebem, analisam e percebem suas possibilidades, e através das técnicas que permitem explorá-lo: a mediação tecnológica é essencial nas relações dos grupos humanos com o mundo que os rodeia (CLAVAL, 2001, p. 219).

Acerca dessa proposta social da técnica enquanto mediação, Milton Santos propõe que se observe o fenômeno técnico em sua totalidade, “abrangente de todas as manifestações da técnica, incluídas as técnicas da própria ação” (SANTOS, 2002, p. 37). Para ele, somente através de uma análise das técnicas como um novo meio criado pela ação humana e entendidas conforme um fenômeno social total, se poderia ter um alcance pleno da noção de espaço geográfico, ou seja, a técnica é, pois, uma das estruturas do que se entende pelo próprio conceito de espaço. Indo ao encontro de Martin Heidegger, Santos ainda propõe que “mesmo os objetos naturais poderiam ser incluídos entre os objetos técnicos, se é considerado o critério do uso possível” (SANTOS, 2002, p. 38).

É fato que mesmo a técnica tendo essa função modular e modelar na realidade contemporânea, em que os objetos técnicos desabrigam toda a natureza, existem desregularidades em termos de sua distribuição e dispersão. Ainda que com algum tom universal, as técnicas, ao serem difundidas, são apropriadas “de um modo específico pelo espaço preexistente” (SANTOS, 2002, p. 40), o que não confere uma igualdade de inserção de todos lugares no acesso, por exemplo, do objeto aqui trabalhado – o ciberespaço.

Esse, no que concerne ao desenvolvimento e difusão técnica no globo, pode ser abarcado como uma materialização espacial, ou como uma nova materialização espacial, da própria relação entre espaço e técnica – desigual, histórica, cultural –, não recaindo assim, em uma disjunção, mas sim, numa continuidade, tal qual propõe Milton Santos:

[...] dizemos nós, não há essa coisa de um meio geográfico de um lado e de um meio técnico do outro. O que sempre se criou a partir da fusão é um meio geográfico, um meio que viveu milênios como meio natural ou pré- técnico, um meio ao qual se chamou de meio técnico ou maquínico durante dois a três séculos, e que hoje estamos propondo considerar como meio técnico-científico-informacional (SANTOS, 2002, p. 41).

Neste sentido, deve-se inserir as análises acerca do ciberespaço, não como um elemento técnico a parte do meio geográfico, nem tampouco como uma nova realidade espacial apenas. Ele é um meio que, em essência, desabriga o espaço enquanto tal, dando-lhe um novo sentido, estruturado através de objetos

técnicos em rede, ampliando o espaço; ele é o próprio meio técnico e um meio geográfico23.

No documento O CIBERESPAÇO COMO CATEGORIA GEOGRÁFICA (páginas 52-57)