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1. A questão da desorganização na teoria psicanalítica de grupo

1.6. Das invenções

Desde o pós-guerra, os avanços teóricos sobre os grupos, feitos pelos clínicos grupalistas das escolas inglesa, argentina e francesa, possibilitaram o desenvolvimento de uma concepção de sujeito como aquele que é membro e elo de uma cadeia social e intergeracional, assujeitados uns aos outros, por mecanismos constitutivos do inconsciente, concebido e constituído na intersubjetividade. Ser constituído nessa cadeia implicou enfrentar os processos de recalcamento das pulsões destruidoras, transitar pelos fantasmas e significantes compartilhados, lidar com os desejos inconscientes e suas proibições fundamentais e, ainda, fabricar patologias coletivas.

Quando nossa atenção se voltou ao grupo familiar (RAUSKY, 2007) encontrou um lugar de sofrimento, de violência, de pedofilia, da morte das crianças, de loucura, tudo isso exposto por meio de uma comunicação patogênica. A partir de então nossa visão se alargou: se há sofrimento e violência na família, os há em outras instituições. Assim como os hospitais psiquiátricos foram denunciados por sua violência e por sua própria loucura, pelo movimento antipsiquiátrico dos anos 1960-1970, verificamos loucuras institucionais, suas ressonâncias e seus funcionamentos paradoxais, em outras instituições terapêuticas ou educativas.

Os comportamentos irregulares das equipes de cuidadores e professores, as depressões conjuntas, os sintomas partilhados, os fantasmas recíprocos, os recalcamentos comuns, as culpabilidades mútuas, a alienação sectária, os suicídios coletivos são considerados doenças produzidas no interior de um grupo, efeito do grupo sobre os sujeitos.

Existem várias práticas inovadoras e algumas construções teóricas a respeito da psicopatologia dos laços instituídos. Todavia, o conhecimento dos processos de desorganização e o sofrimento produzido nos conjuntos intersubjetivos está em construção. Ainda hoje, os inúmeros modelos produzidos outorgam ao sujeito singular a explicação e o tratamento da psicopatologia dos laços. A psicopatologia, ao contrário, considera que o laço pode ser tratado e é capaz de se tornar patogênico.

Novas perspectivas estão se abrindo pela metapsicologia psicanalítica de grupo, que nos permitem a aproximação com essas desorganizações, com os comportamentos e com as atitudes patológicas coletivas, para além do efeito do contágio, das epidemias, da histeria coletiva, do estado hipnótico, do amor ao/do líder.

Nos grupos surgem sintomas compartilhados, sofrimentos que afetam um sujeito, dois, vários, até uma massa inteira, até a totalidade de seus membros. Esses sofrimentos são indissociáveis da especificidade dos efeitos aferidos nos laços intersubjetivos e da organização social que o sustenta. Supõe-se que os efeitos mobilizados pelo contexto intersubjetivo produzem determinadas configurações que podem orientar e definir as modalidades do enlaçamento, bem como sugerir os modos de funcionamento e de adoecimento de determinado conjunto.

Neste estudo tratamos de uma desorganização coletiva, geradora de um profundo mal- estar, que entendemos como um dos efeitos produzidos pela reunião de espaços psíquicos heterogêneos, submetidos a processos de transformação, de articulação e de diferenciação de partes dos aparelhos psíquicos singulares. Essa formação pluripsíquica é construída em uma organização institucional (KAËS, 1996), que assegura e participa nessa formação, criando uma realidade psíquica original – uma organização desorganizada. Essa organização pode ser melhor compreendida pela psicopatologia dos laços instituídos, na medida em que adota a metapsicologia psicanalítica dos grupos com a inserção das garantias metapsíquicas (KAËS, 2012) apoiada sobre as garantias metassociais que a mantêm, e que, ao falharem, faz emergir o adoecimento coletivo.

À proposição de Kaës (2012) sobre a função metapsíquica ou mesmo aos estudos denominados de desorganizações coletivas pelos psicanalistas grupais como Rouchy (1998), Lecourt (2013), Dejours (2013) e outros, podemos adensar as contribuições dos diferentes filósofos da Escola de Frankfurt, que vêm desde o século passado, com os referenciais freudianos, marxianos e werberianos, alargando cada vez mais as proposições de uma patologia do coletivo, por eles designada de psicopatologia do social, estendendo-as à própria sociedade capitalista, evidenciando seu adoecimento pela impossibilidade da autorrealização coletiva, pelo déficit da razão social reificada, pelo ressentimento, pela alienação e pela falta de sentido.

Alex Honneth (2008), membro contemporâneo dessa Escola, incrementou esses estudos ao apontar o sofrimento patológico da apatia, da indeterminação, resultante das condições sociais dissimuladas pela sociedade capitalista. E ainda, destaca “esta patologia chamada o social” como o bloqueio do princípio de reconhecimento e das práticas da justiça. Amplia a análise da ordem social afirmando que as patologias do social seriam as deficiências da sociedade para assegurar a seus membros condições de uma vida bem sucedida, como também afirma que a patologia do social se caracteriza por um déficit de racionalidade e pela

deformação da razão, a qual torna legível a falta de tematização pública das contradições socais.

As patologias não emanam apenas da violação dos princípios de justiça, mas também de danos às condições sociais, de autorrealização individual (HONNETH, 2008, p. 35). Toda e qualquer forma de “patológico” deve ser entendida pelo social, ou seja, como bloqueio, interrupção ou contradição não reconhecida nos laços sociais. Os danos causados pela patologia do social são oriundos dos maus-tratos físicos, que ocorrem quando o sujeito é alienado do controle sobre seu próprio corpo. A tortura e o estupro são os exemplos clássicos desse insulto. Para Honneth, o maior dano causado por essa forma de desrespeito não é a dor física, mas a humilhação da perda da autonomia corporal, que, mais tarde, se converte em perda de autoconfiança, estranhamento em relação ao mundo e insegurança no contato com outros atores. O autor se refere a essa forma de desrespeito como "morte psicológica".

O cidadão se entende possuidor de uma série de direitos que espera ver respeitados pelos outros membros da sociedade; uma vez que um desses direitos lhe é repetidamente negado, o sujeito sente-se rebaixado a uma posição de inferioridade moral, pois o que pressupõe a igualdade de direitos é a capacidade que cada um tem de formular julgamentos morais. Tal insulto deprime a autoestima do ator social, no tocante à capacidade que tem de se relacionar com os outros de igual para igual. Honneth designa essa forma de desrespeito de "morte social". Uma terceira forma de desrespeito consiste na depreciação do estilo de vida individual ou grupal.

Se por um lado essas formas de desrespeito são degradantes e impedem a realização plena do indivíduo em sua integridade, elas estão, por outro lado, na base da constituição da luta por reconhecimento e podem-se tornar a motivação para as lutas sociais, pois revelam que outros atores sociais são o obstáculo à realização do bem viver.

Assim, as contribuições de Honneth nos fornecem elementos para a compreensão das garantias metassociais necessárias à sustentação e à organização da vida psíquica grupal e institucional. A ausência dessas garantias produz como efeito a produção de alianças ofensivas perversas (KAËS, 2009) e laços intersubjetivos alienantes. Essas mesmas falhas podem ainda, promover a ruptura de uma aliança, o que gera violência e desorganização.

A ruptura de uma aliança talvez tenha ocorrido, o que contribuiu para a desorganização do nosso grupo de educadores. Esta hipótese será o fio condutor deste estudo. Várias perguntas se apresentam: como se forma essa aliança, qual o seu conteúdo, quais partes da realidade institucional participam desse acontecimento? Como são construídas?

Qual a participação de cada um nessa proposição coletiva? Quais os fantasmas, as angústias envolvidas?

Como vimos, os processos grupais necessitam de um ambiente de sustentação e organização, o que nos direciona a pensar aquela desorganização também como um dos efeitos produzidos em um ambiente sem continente, isto é, a própria instituição gerou sofrimentos, possíveis de serem pesquisados por meio da psicopatologia institucional, o que permite nosso trânsito pelas dimensões subjetivas, intersubjetivas e institucionais. No entanto, esclarecemos que nesta tese não estudaremos a instituição de per si e em suas implicações, mas apenas como o continente metassocial, como o pano de fundo do grupo, no ponto em que contribui para a desorganização grupal, enquanto uma ambiência promissora, ou não, da grupalidade, esse contexto onde se constroem as alianças e os pactos inconscientes que estruturam a vida psíquica institucional e grupal. A instituição será pensada em uma articulação entre dois espaços: externo – a instituição, e interno – o grupo, e será analisada em sua capacidade intermediária, de depósito e de continência, em sua função de garantia metapsíquica.

Por outro lado, embora na literatura teórica as desorganizações grupais sejam citadas, não encontramos um estudo específico sobre esse tema e, como afirma Kaës (1997) será necessário uma construção teórica específica sobre essas desorganizações grupais:

[...] temos as experiências da morte dos grupos, das fraturas, das cisões e das reunificações, temos finalmente a de nossas próprias partidas e de nossos jogos entre filiação e afiliação, temos também [as experiências] das chegadas e das partidas de novos membros. Mas, curiosamente, não existe quase teoria deste fenômeno e há poucas observações clínicas [...] aqui sem dúvida, as diferentes formas em que os grupos (se desorganizam) morrem e desaparecem nos ensinariam muito sobre o que os organiza enquanto vivem, sobre aquilo que, de nós, os faz viver, desenvolver–se e morrer. (p. 235 grifos nossos).