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Os organizadores socioculturais da tarefa grupal

4. A organização desarranjada

4.6 Os organizadores socioculturais da tarefa grupal

Até aqui viemos analisando como o grupo funcionou com os organizadores psíquicos que coincidem com a fantasia, o grande organizador da grupalidade. Ela dá vida e mantém a grupalidade. No entanto, esses conteúdos intrapsíquicos precisam de um espaço encontrado- criado, onde possam desenvolver-se, mediante adoção de diversas configurações em relação às formas sociais concretas. As fantasias se apoiam na experiência cotidiana e nos modelos de relações intersubjetivas, grupais e coletivas da representação do grupo para sua elaboração; separá-los é impossível. Kaës (2000) escreve:

Uma vez constituídas ou referidas, as representações sociais do grupo funcionam como objetos que possuem propriedades análogas às do objeto transicional descrito por Winnicott, ou seja, um objeto criado que define um espaço de comunicação, mediação, criatividade. Neste espaço se estabelece um jogo mais ou menos livre entre as representações inconscientes e as representações sociais [...]. (p. 87).

As fantasias e o próprio agrupamento estão infiltrados pelos modelos socioculturais, um não existe sem o outro. Os organizadores socioculturais, enquanto resultantes da elaboração social de diferentes experiências subjetivas, na grupalidade têm um caráter semelhante a um objeto transicional. Elas representam o espaço encontrado-criado de Winnicott (1975), um objeto transicional, um limite, um lugar de articulação e passagem, de continente em que os processos psíquicos podem jogar, desenvolver-se e o grupo se organizar.

Deste modo, os organizadores socioculturais são figurações que se constituem em referências que expressam uma conexão com as relações sociais. Representam, também, imagens coletivas que facilitam ou não a construção do conjunto. Nos organizadores estão incluídas as práticas sociais, em sua gama de atividades, desde o cuidado da mãe com o bebê e sua alimentação até as complexas operações demandadas pela atividade adulta, seja laboral, seja de recreação, que têm valor organizador e homogeneizador dos conteúdos socais.

No grupo de educadores, os organizadores socioculturais em vários momentos falharam em sua função de continente, de objeto transicional, desorganizando o grupo. As práticas socioeducativas com as crianças pobres são marcadas pelo estigma, o que nos obriga a uma sumária digressão histórica, para buscarmos a origem desse organizador social.

O modelo capitalista das relações de trabalho, tal como vem sendo praticado nas economias dos Estados emergentes intensificou, principalmente no século passado, na década de 1980, a problemática das crianças na rua, que são tratadas e imaginadas, indiscriminadamente como “infratoras”. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) assegura a todas as crianças e adolescentes do território nacional a condição de sujeitos de direitos. No entanto, o que se observa na prática, em especial nas grandes cidades, é o

absoluto desrespeito aos direitos naturais e sociais básicos das crianças em situação de rua: abandono, exploração e perigo marcam suas vidas. O infrator, o marginal e o excluído permanecem enquanto organizador sociocultural da criança pobre. São infratores todos aqueles que vivem em situação de pobreza e abandono: a rua é o lugar para o excluído e o marginal.

Esse imaginário social (CASTORIADES, 2000)se evidenciava no grupo trabalhado, para o qual as crianças, por características próprias e desconhecidas dos educadores, representavam o horror; especialmente se chegassem em pequenos grupos, a ameaça se expandia em uma ressonância fantasmática transmitida a todos. Essas crianças, moduladas pela luta pela sobrevivência, tornavam-se, então, objetos perigosos, sem nome, sem rosto e sem lei, estranhos, invasores e perseguidores. Eram da rua, espaço dos excluídos, dos mais que pobres, dos miseráveis, do lixo, do louco, da coisa – como lixo são estigmatizadas, como lixo provocam dó, medo, desprezo. Essas crianças desandavam-se em objetos traumáticos que exigiam dos educadores um intenso trabalho psíquico com a iminência de transbordamento pelo excesso de afeto e de excitação, que o aparelho psíquico não podia conter, produzindo as desorganizações protetoras do grupo e dos sujeitos.

Nesse sentido, concordamos com a ideia de Anzieu (2009), de que o transbordamento psíquico pode ocorrer não só nas situações acidentais, como pensou Freud, mas em “todo incidente capaz de provocar os afetos que causam pena, terror, ansiedade e vergonha, que pode produzir um choque psicológico” (p. 131). O contato com o imprevisível e desconhecido dos meninos era esse choque, que produzia uma falha na libido narcísica, que impedia de proteger de maneira suficiente o envelope psíquico dos sujeitos e do grupo, agravando a ferida narcísica, ameaçando a existência grupal.

Igualmente, no grupo de educadores, com a repetição cotidiana dessas situações ocorria uma “acumulação de traumatismos” (KHAN, 1977), em que o traumático se apresentava pela força do afeto em jogo e pelo caráter insuportável dessa representação. Tratava-se de sentimentos amorosos, desejos e medos em relação à sexualidade, ao infantil. A perversidade polimórfica escancarada das crianças, sem interdição, provocava nos educadores ao encontrá-la, o estado de horror e fascinação. As crianças tornaram-se depositárias e representantes da perversão polimórfica dos próprios educadores, que também foram crianças e, portanto, perversos polimórficos. Esse funcionamento engendrava nas crianças e entre eles, a fantasia de um educador sedutor e perverso, e se criava uma ambiência erotizada e com culpa persecutória.

Ainda mais, esses conteúdos mobilizados colaboravam para as desorganizações, por que criavam nos educadores uma perturbação da percepção, uma dificuldade em distinguir as crianças como objeto animado (vivo) ou inanimado (morto), humano ou inumano. Essa dúvida impedia os educadores do conhecimento, embaraçava sua capacidade de pensar. A confusão entre animado e inanimado era decorrente do estado de não integração e da profunda ansiedade de abandono mobilizada e negada. Nessas circunstâncias, Anzieu considera que estamos diante de uma “questão de limites: [...] a angústia de cair em um estado onde se perde os limites e onde seu ser desaparece [...] esfacelado em miúdas partículas invisíveis” (2009, p. 306). Nessa confusão, os educadores abandonavam as crianças desprezando-as.

O animado percebido como inanimado remetia os educadores ao encontro do inquietante estrangeiro, do duplo, de uma estranha máquina, uma máquina-criança cujas pernas precisavam ser quebradas, a criança que quebrava tudo, brincava, vivia na barganha, trocava tudo, tinha interesse diferente e uma desconcertante agressividade; ela não estava acostumada a demonstrar afeto, a demonstrar o amor, só agressividade; não estabelecia diálogo com eles e só se submetia à rua. Porém, surpreendente, essa mesma criança-máquina se humanizava: queria um pai, agradecia num rap, demandava amor, sabia se comportar no shopping, pintava cartões de Natal, apresentava o Olodum. Quando essa dúvida emergia,

desorganizava o grupo, mas logo era recoberta por um objeto fetiche, o Ideal, levando o APG a funcionar na posição ideológica, que garantia sua manutenção.

O grupo se desorganizava especialmente nas situações em que os educadores abordavam o drama dos meninos como impeditivos à realização do ideal do grupo: os meninos não atendem as nossas expectativas, o que produz frustração, angústia. Eles representam para nós o fracasso, o que faz parte do trabalho com eles. Nessas ocasiões, repetia-se uma insatisfação narcísica, diante de inúmeros fracassos: o ideal educativo soçobrava no encontro com a exclusão, com o desconhecido, com a falta, com a sexualidade. Esse conjunto era representado pelos participantes como o embate com a loucura, com a falta de limites e proteção e a exposição ao extermínio. Essa exigência pelo ideal despertava profunda ansiedade e o enfrentamento paradoxal do que tentavam esconder, isto é, elegeram essa ocupação, precisamente para se defenderem da exclusão e da “loucura”. Escolheram cuidar dos meninos de rua, para evitar ser um deles, como contou André: eu me drogava, deitava no chão e olhava para rua, como os meninos.

Nessa situação paradoxal, o menino significava para os educadores o fracasso, a queda do ideal narcísico, o que produzia uma perda de referenciais identificatórios, que elevava o risco de transbordamento e a perda de limite. Como não havia um continente seguro para o

processo de diferenciação entre eles, a ação educativa era permeada por intensa identificação aos meninos, com o acionamento dos afetos violentos, a desorientação, a cólera e uma angústia de abandono. Na Supervisão esses afetos violentos também foram dirigidos à analista, que ao contê-los possibilitou as reorganizações do espaço grupal.

Atender aos ideais proposto pelo ECA e pela PMSP desencadeava um conflito com o ideal dos educadores. Desse modo, durante a Supervisão o ECA foi escutado com o valor de “éca!”, ou seja, o que dá nojo, o que é do lixo, do perseguidor. O ideal imposto de fora se transformava em figura do eu ideal cruel e grandioso que os alienava, destruía suas identificações, fazia com que eles reagissem como um grupo aglutinado, que se tornava o reflexo de seu eu fragilizado.

E os educadores se atacavam, especialmente à medida que Diana e Rafael iam se tornando os representantes desse eu ideal perseguidor; ao assumirem em seu discurso a função de porta-vozes do ECA no Centro, desencadeavam movimentos de rivalidade e de ataques uns contra os outros. Por outro lado, a instituição constituída como um Centro de Referência- modelo propiciava as projeções narcísicas mobilizadoras de identificações heroicas, ou melhor, super heroicas. Ser referência exercia sobre os sujeitos uma coação para essa realização do ato heroico: a cada fracasso, contudo, apareciam as dúvidas, as falhas, os sofrimentos sepultados ou parcialmente anestesiados, e restavam os atos. Desse modo, sobretudo nas solicitações de apresentações públicas, as angústias e as desorganizações incrementavam-se. Mas, o agrupamento persistia.

Na mais profunda angústia, no lugar onde o desejo de satisfação narcísica, a necessidade de proteção e de não fracassar não se cumpriam, o Centro de Referência-modelo deixava-os à mercê de fantasias e ansiedades arcaicas, o que redundava em graves transtornos para os educadores que afetava os componentes narcísicos de seu sentimento de pertença. Os educadores se sentiam abandonados pela coordenação que, identificada com os educadores, abandonava sua função; pela instituição que os deixava à deriva, sem lei, além do que, não eram reconhecidos em suas dificuldades pela PMSP. Todos esses fatores se configuraram como uma insuficiência da função de contenção, uma falha no metaenquadre institucional, do que decorreram severos processos desorganizadores.

Todo esse relato nos permite afirmar que a falha, isto é, o esgarçamento da função continente do organizador sociocultural da tarefa grupal, agravada pelas fraturas do metaenquadre das instituições, ONG e PMSP, – enquanto continente protetor da vida psíquica do agrupamento – produziu as desorganizações observadas durante o processo de Supervisão.

Desde o início do trabalho grupal, ambas as instituições, a ONG com sua nova diretoria que desconhecia o atendimento aos meninos, e a PMSP, em especial, – que desde a publicação do decreto de extinção do Centro até a proposta de implantação da Casa Abrigo, passando pelas demissões de vários educadores por falta de escolaridade (que até então não era obstáculo ao trabalho dos educadores) –, criavam instabilidade e indeterminação, que resultavam em múltiplas desorganizações, pela falha da função de continência, intermediária, de metabolização e de proteção ao agrupamento.

Esse metaenquadre, em que o órgão operacionalizador da própria Política Pública, com sua perversidade (CALIGARIS, 1991), foi capaz de produzir perturbações profundas naqueles sujeitos e no grupo, reduzindo-os a uma instrumentalidade. As decisões das autoridades governamentais furavam a membrana, a envoltura, o que fazia emergir a ameaça de extermínio, de despedaçamento e, sem mecanismos suficientes de para-excitação grupal e de contenção, os limites silenciosos sobre os quais se constituíam e apoiavam a vida psíquica grupal eram invadidos, e todos se desorganizavam.

Diante dessas falhas nas molduras de contenção da vida psíquica dos sujeitos e do grupo era impossível a manutenção do funcionamento do pré-consciente e do pensamento, restando o ato. O grupo sobreviveu a essas desorganizações. Essas falhas, no entanto, organizaram e configuraram uma psicopatologia dos laços instituídos. O grupo se manteve graças a um excessivo grau de angústia e sofrimento de seus membros, na manutenção de um pacto denegativo impeditivo do cumprimento de sua tarefa primordial.