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4. A organização desarranjada

4.3 O enquadre

4.3.1 O tempo e o grupo

Pelo fato de o enquadre determinar uma constância de tempo e de espaço, ele possibilita a organização de uma temporalidade própria a cada agrupamento. Descobrimos, ao escrever esta história, que uma musicalidade soava nas irregularidades do enquadre. Essa sonoridade aparecia, ritmadamente, no início das sessões, quando irrompia a dúvida: o grupo

sobreviverá? Mas, o grupo continuava e repetia a mesma musicalidade e a mesma cadência, até quando, num inesperado instante, outra desestruturação acontecia. Era atingido por algo que vinha de fora? Ou de dentro? Era uma obscura passagem, naquele enquanto. Seria resultado da presença do informe, do outro, do improvável, que ao alcançar os corpos dos participantes e o corpo-grupal fazia brotar estranhos elementos desorganizadores?

O grupo contém em si algo de misterioso, e mesmo que seja nosso antigo conhecido, participar dele é deparar-se com o inédito, com outros tempos. Em grupo cada tempo singular será reduzido a uma única temporalidade, que contém diferentes tempos: o primeiro, o tempo do inconsciente, paradoxal, pois nele não existe a temporalidade linear, a temporalidade dos relógios ou dos calendários. Nele habita o tempo da pulsão e o tempo da repetição, uma certa temporalidade que se liga ao inconsciente. O tempo do inconsciente está nas representações do tempo das origens, da fantasia de imortalidade; o tempo das representações e dos afetos recalcados da ferida narcísica; o tempo da separação; o tempo cíclico e o tempo reversível e repetitivo da regressão.

O segundo, o tempo no grupo é o tempo próprio de cada sujeito, descrito por Kaës “como o tempo do sujeito que persegue seu próprio fim” (1985, p. 9). O tempo de sua história singular, o tempo de sua subjetividade, o tempo particular de viver: a ausência, a separação, a depressão. Esse tempo singular está apoiado no tempo impessoal do inconsciente, semelhante à fantasia, ou seja, cada sujeito singulariza a articulação com a fantasia de origem no grupo.

O terceiro tempo é o tempo do sujeito submetido à existência do grupo. O grupo, por sua vez, convoca dois tempos: o tempo no qual o sujeito persegue seu próprio fim e o tempo em que cada um ocupará um lugar na rede intersubjetiva. No intervalo desses tempos, num embate entre o narcisismo singular e o narcisismo grupal, é construído o tempo grupal. Ele é indissociável do advento da palavra e do discurso, é um tempo de ligação entre o tempo subjetivo e o tempo das origens comuns. Ele une, liga tempos diferentes, permite ultrapassar o tempo indiferenciado, une o tempo do inconsciente ao tempo do sujeito singular. O tempo grupal é o tempo do intermediário, do entremeio da presença e da ausência, tempo de separação, que constitui o sujeito em separado e lhe dá acesso à palavra.

Outras dimensões ali se implicam: a ilusão de estarem todos no mesmo tempo, de viverem as mesmas experiências, as ilusões do desaparecimento das fronteiras entre as singularidades. No grupo, o tempo da ilusão, criativa ou mortífera, ou a abolição dos tempos singulares apoia os momentos depressivos. O tempo que assegura de uma maneira destrutiva a imortalidade e a identificação de uns aos outros também tem existência no grupo.

Quando assistimos às inúmeras desorganizações do nosso grupo, em que o tempo, com sua música própria, se estancava na dúvida, na paralisia ou se acelerava na confusão, quando éramos tomadas por uma profunda ansiedade e pelo tempo da urgência, desejando precipitar, antecipar o tempo, nos perguntávamos: qual o tempo necessário para sair da confusão? Viria o tempo da elaboração?

Nas incertezas e descompassos de tempos do enquadre, de cada um, do próprio grupo, dos meninos e do contexto, tudo se confundia. Na presença de diferentes tempos se desenhou uma problemática temporal, geradora de inúmeras contradições: a urgência dos meninos e a lentidão dos laços de confiança; o tempo da diretoria da ONG, sem o tempo necessário de conhecimento do Centro; e, o tempo da PMSP surgia na pressa em cobrar, na pressa em acabar, era o tempo que não lhes dava o devido tempo, no tempo de cada um e do grupo.

Além disso, o tempo para instaurar o grupo da Supervisão requeria um trabalho psíquico de diferenciação dos tempos: do tempo singular, do tempo do grupo, do tempo das crianças e do tempo das instituições. Essa diferenciação suscitava uma grande angústia. Com a enunciação do enquadre psicanalítico outro tempo foi requerido, o tempo da regressão, a um outro lugar e a um outro tempo. Esse outro tempo permitiu o acesso aos tempos da repetição, ao tempo do retorno do recalcado, ao tempo reversivo e cíclico, inclusive ao tempo das origens - voltar a começar, e recomeçar, e recomeçar.

Na transferência se atualizam esses diferentes tempos. No trabalho grupal mais uma outra dimensão foi construída, o tempo sincrônico, tempo inventado pelo grupo para cada um tornar-se membro. Em grupo, cada membro participa do tempo de sua fundação, do tempo do mito, cada um retoma partes do enunciado, do discurso do grupo que vai constituí-lo como membro desse grupo. Escreve Kaës (1985):

Entre os membros do grupo e o conjunto grupal, se funda um contrato, de se ter um lugar assegurado nesse conjunto coletivo, portanto está reassegurado narcisicamente a possibilidade de existir no grupo ou na instituição, na medida em que cada um dos participantes retoma os enunciados fundadores do tempo originário, inaugurado no ato fundador, no ato de casal ou no de todo o grupo (p.7).

Para se pertencer a um grupo é necessária uma garantia prévia, um tempo anterior, um arranjo original, denominado por Kaës de contrato narcísico. Esse conceito foi criado por Aulagnier (1975), em seus estudos sobre a psicose, e aplicado ao grupo por Kaës. É o contrato narcísico que possibilita ao indivíduo se tornar sujeito, a partir de um reconhecimento social, adquirido por meio da garantia de ter um lugar certificado no grupo familiar.

Ao nascer, o bebê precisará da garantia prévia de um lugar no grupo familiar, precisará desse lugar antecipadamente assegurado de uma origem; precisará da garantia de continuidade

entre as gerações; e, ainda, ao recém-nascido, e ao futuro adulto, deve ser garantido o direito de ocupar um lugar social. Um direito que se fundamenta não apenas no veredito dos pais, mas também no reconhecimento de um grupo, que afiança ao recém-nascido uma filiação. O bebê advirá como sujeito, por meio de garantias contratuais, prescritas no contrato narcísico, como dirá Aulagnier:

O contrato narcísico tem como signatários a criança e o grupo. A catexização da criança por parte do grupo antecipa a criança ao grupo. Com efeito, temos visto que, desde sua chegada ao mundo, o grupo catexiza o infans com voz futura, ao qual solicitará que repita os enunciados de uma voz morta, garantindo assim a permanência qualitativa e quantitativa de um corpo que se autorregenera de forma contínua. Enquanto a criança, e como contrapartida de sua catexização pelo grupo e por seus modelos, demandará o direito assegurado de ocupar um lugar independente do exclusivo veredito parental. A ela será oferecido um modelo ideal, que os outros não podem rechaçar sem rechaçar ao mesmo tempo, as leis do conjunto, que lhe permita conservar a ilusão de uma existência atemporal projetada sobre o conjunto e, em primeiro lugar, em um projeto do conjunto que, segundo se supõe, seus sucessores retomarão e preservarão. (AULAGNIER, 1975, p.164).

Kaës retoma o conceito de contrato narcísico como necessário ao nascimento e manutenção da grupalidade. Para que os sujeitos enlaçados se constituam e se mantenham em grupo é imprescindível a fundação desse contrato, que garante a existência e o lugar de cada um no conjunto. Nosso psicanalista reitera: só com alguma garantia de um lugar no grupo, o indivíduo torna-se sujeito e advém psíquico, pois “o contrato narcísico se estabelece graças a pré-investimentos narcísicos, por parte do conjunto, no infans como voz futura que tomará o lugar que o atribua: dotando a ele, por antecipação, de uma posição e lugar de sujeito do grupo” (1997, p. 264). Kaës (Ibid) pondera ainda que o contrato narcísico está no fundamento de toda relação do sujeito com a sociedade, do sujeito com o conjunto, do discurso singular e do discurso cultural. Os pais, especialmente a mãe, por esse contrato, assumem para o infans a função de porta-palavras das expectativas do grupo familiar ao qual pertencem, e a mãe expressa também seus próprios desejos.

Os membros de nosso grupo, ao chegarem à Supervisão, já haviam estabelecido no tempo o contrato narcísico: da demanda, do pedido, quando os futuros membros do grupo se mobilizaram para pertencer ao grupo de Supervisão e puderam depositar suas expectativas nesse novo encontro. Houve um tempo de espera até o início do grupo, esse tempo foi o tempo dos pré-investimentos, o tempo nomeado por Kaës (1985) como tempo da pré- transferência, da pré-elaboração, o tempo da própria formulação desse contrato.

De posse desse contrato, não sem intensos conflitos e desorganizações, os participantes construíram uma conturbada temporalidade grupal, marcada por interrupções,

por sobressaltos, a partir do tempo próprio de cada um, do enquadre do trabalho psicanalítico, da duração, do ritmo das sessões e do seu final. Na espera pela Supervisão anteciparam o lugar de cada um no processo, a posição do sujeito em relação aos outros sujeitos na expectativa de que o tempo próprio de cada um deles fosse inscrito num novo tempo compartilhado.

A partir da contratação da Supervisão, os participantes do grupo foram agravando o sintoma grupal e na pré-elaboração iniciada, antes mesmo da primeira sessão, os sujeitos já estavam reunidos na fantasia de ser um grupo. Essa fantasia, fomentada pela mobilização da sedução e da dominação e com o estímulo do fato de estarem frente a frente, produziu efeitos de fantasia inconsciente, que acionaram as fantasias originárias.

O grupo já antecipava nas relações intersubjetivas, um enquadre ou uma marca temporal, que iria contê-los e receberia como depósito os elementos, as formações psíquicas específicas mobilizadas desde a discussão da demanda. Ainda sem as certezas da efetividade e a conflitualidade própria desse contrato narcísico, iniciaram o grupo. Diana procurou ocupar todos os lugares e os demais se sentiram ameaçados e sem lugar, por um elemento do grupo e pelo próprio agrupamento dispararam uma desenfreada busca de posições e de urgência identificatória (MISSENARD, 2003).

No início do grupo de educadores ao ocuparem um lugar, os participantes se identificaram uns com os outros, havia uma urgência identificatória (MISSENARD, 2003), um trabalho psíquico foi movimentado, que deu inicio a um processo de fantasmatização, interfantasmatização e identificações. Por meio das identificações lidavam com o fantasma de aniquilamento, com a falta de lugar e a falta a ser no conjunto. Esse alvoroço foi nomeado por Missenard (2003), em seus estudos sobre o narcisismo no grupo, como urgência identificatória.

Todos estavam também mobilizados diante de uma analista, de um diferente, que era supostamente a única a ter um lugar garantido, enquanto os integrantes eram os desalojados, os expostos às novas regras; isso levou os participantes a procurarem imediatamente referências identificatórias, resultando numa divisão entre eles: alguns aderiram a Diana e Rafael, outros se aliaram a Carlo, como fizeram Marina e Cíntia.

Diante da falta de referências esboçou-se um “tênue limite do eu” em que modos de referências antigos se atualizaram, seja sob a forma de laços intersubjetivos, de projeções, de identificações projetivas e de projeções de partes limitadas do psiquismo de cada um sobre alguns outros, seja sob a forma de laços fantasmáticos antigos, adentrando no grupo os fantasmas de incorporação e de devoramento. Esses fantasmas visavam cobrir a falta

identificatória do início da vida grupal. Eram fenômenos de natureza regressiva, pertencentes a um outro tempo, relacionado às origens do sujeito singular.

Desse modo, Diana, a porta-palavra da rivalidade fraterna compartilhada entre os demais, retornou a outro tempo e, tentando ocupar todos os lugares, procurou vorazmente expulsar Carlo, com a palavra bala acusatória. Nesse matar ou morrer, foi se configurando na cena grupal, a fantasia primitiva de um grupo-boca que devora e vomita, cobrindo a ameaça da falta identificatória diante de um narcisismo primitivo. Nesse movimento o grupo foi se construindo e se manteve organizado.