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1. A questão da desorganização na teoria psicanalítica de grupo

1.2. Das origens

O grupo tornou-se objeto epistemológico, principalmente a partir das agitações sociais que foram capazes de levar um grande número de pessoas às ruas para confrontar a ordem vigente, especialmente nos séculos XVIII e XIX. A massa e o grupo sempre foram assustadores, tanto por seu volume como por suas ações que, violentas ou não, sacodem e revelam algo de obscuro presente nos sujeitos e nas relações sociais, despertam preocupações, instauram o caos e a desordem. Sua visibilidade cria uma ameaçadora desorganização social de que são exemplos, na França, a tomada da Bastilha (1789), a Comuna de Paris (1871), ou as mais recentes, em 2013, no Brasil. Os movimentos populares desencadearam, especialmente no século XIX, um intenso interesse filosófico e científico sobre os fenômenos coletivos, que deram origem a investigações nas diversas áreas do conhecimento. O foco dessas análises era a busca da compreensão das motivações subjetivas e intersubjetivas promotoras do agrupamento, na expectativa de que o conhecimento das forças internas de tal formação levaria ao controle, evitando-se assim, as agitações das massas e dos grupos nas ruas.

Em meados do século XX, ao ser implementado o Plano Marshall18 na Europa, o temor ao agrupamento se transmutou na descoberta de sua potência para reorganizar os Estados destruídos pela Segunda Grande Guerra. Novas pesquisas e descobertas teóricas grupais foram desenvolvidas e acrescidas, sobretudo, à psicanálise de grupo, o que possibilitou um maior aprofundamento do conhecimento sobre o funcionamento dos grupos. Esse movimento foi iniciado na Inglaterra, com as experiências dos primeiros psicanalistas na clínica intersubjetiva.

Algumas hipóteses sobre os interesses subjetivos e intersubjetivos nas formações coletivas podem ser encontradas nos textos de Freud. O primeiro deles é o ensaio Totem e

Tabu, de 1913. Pela primeira vez, Freud trata da organização grupal e social, de como se

efetua a passagem de indivíduos isolados ao agrupamento. O grupo se organizará a partir do assassinato do Patriarca odiado e amado, que une os jovens irmãos nesse assassinato, por meio de um pacto denominado por Kaës (1997) como pacto denegativo e identificatório. Esse pacto impôs duas proibições: a do incesto e a do assassinato totêmico edificado em homenagem ao Ancestral.

18O Plano Marshal foi lançado pelos Estados Unidos em 1948, “para reerguer economicamente os países do

bloco ocidental e supri-los de gêneros alimentícios, maquinaria e matérias-primas.” (HOLLANDA, S. B. [1970], p. 274.

Após o assassinato, os filhos, ao se perceberem abandonados e desamparados e com uma saudade inextinguível do pai, o erigiram à condição de um Ideal, inventaram um substituto, primeiramente encarnado na figura do totem e, posteriormente, na figura de Deus. Um pai glorificado pôs fim à horda primitiva, promoveu a organização vitoriosa da aliança entre os irmãos e marcou o advento do Pai, precisamente pela ausência de um sucessor para o pai da horda, uma vez que sua morte não deixará sucessor.

Devorado e partilhado em refeição totêmica, o lugar do pai permanecerá para sempre vazio. Imediatamente após seu assassinato a imagem desse pai foi recalcada e, a partir daí, pela renúncia à satisfação pulsional e a instalação da figura de um pai simbólico, fundou-se o grupo organizado.

O grupo organizado foi edificado calcado na culpa e nas identificações, um pai organizador. Essa organização grupal é decisiva tanto para o psíquico como para o social. De um lado, ela explica a transmissão psíquica intersubjetiva, as fantasias compartilhadas e as identificações, apoiadas nas formações ambivalentes (FREUD, 1913) e de outro, articula as estruturas psíquicas subjetivas e os laços intersubjetivos.

A observação de Freud sobre o processo psíquico implicado nessa organização grupal se refere ao pacto de renúncia às mulheres e à rivalidade entre os jovens irmãos: o pacto é a salvaguarda do agrupamento, promove um limite, o assentamento e a interiorização da lei, e permite ao sujeito firmar-se como sujeito do grupo, por meio do estabelecimento de laços de afeto e de pertença para com os seus semelhantes, assim como pela assunção de uma figura representativa da lei que, absorvida internamente por todos, rege e estrutura o grupo. Assim a função paterna mais ampla e profunda se constitui como princípio organizador grupal ao engendrar a lei, acompanhada de um conjunto de regras e normas que irão instituir o agrupamento e o sujeito humano.

Nesse ensaio, simultaneamente à descrição da instituição da grupalidade, Freud delineia o processo psíquico promissor do agrupamento, a constituição de uma mente coletiva, construída à semelhança do aparelho psíquico singular, em que os desejos impulsionam a todos a uma ação coletiva, da qual decorre um intenso sentimento de culpa e a identificação, a criação de um Ideal comum, mecanismos necessários para a criação do contrato social. Freud (1913) argumenta:

Ninguém pode ter deixado de observar, em primeiro lugar, que tomei como base de toda minha posição a existência de uma mente coletiva, em que ocorrem processos mentais exatamente como acontece na mente de um individuo. Em particular supus que o sentimento de culpa por uma determinada ação persistiu por muitos milhares de anos e tem permanecido operativo em gerações que não poderiam ter tido conhecimento dela. Supus

que um processo emocional, tal como se poderia ter desenvolvido em gerações de filhos que foram maltratados pelos pais, estendeu-se a gerações novas livres de tal tratamento, pela própria razão do pai ter sido eliminado. (Ibid., p. 187).

Essa alegoria freudiana nos permite, por sua vez, pensar em seu contrário, a desorganização grupal. A desorganização pode ser apresentada como produto da falta/excesso de autoridade e da ausência/presença do pai e do líder. Essa falta/excesso remeteria a grupalidade ao retorno da horda primitiva. Pereira, em Pânico e Desamparo, de 2008, sinaliza o potencial desorganizador do grupo e do sujeito, quando estão submetidos a um pai tirano e cruel ou quando estão sem esse pai/líder, tornando-se um bando de irmãos se debatendo entre si, abandonados à própria sorte.

A desorganização está ligada à perda da figura do Ancestral, o possuidor de todas as mulheres, o detentor da Lei e com sua sexualidade ilimitada (PEREIRA, 2008), condições produtoras do pânico. Esse pânico é evocado pela emergência do assombroso do sexual “[...] o lado apavorante do sexual que se apresenta quando este não encontra mais os pontos de referência simbólicos onde se ancorar” (Ibid., p. 66), do que resulta uma experiência de intenso sofrimento psíquico e “[...] um mergulho no sem sentido” (op.cit., p. 67).

A função paterna no Complexo de Édipo, com seus componentes narcísicos e homossexuais, que no grupo é uma função exercida pelo Líder, é organizadora da grupalidade. No entanto, é no próprio grupo que cada participante deverá encontrar o momento de ocupar o lugar desse líder para tornar-se um sujeito assujeitado ao laço intersubjetivo (ANZIEU, 1990b).

De outro modo, a ausência ou o fracasso da função do líder no grupo produz o esfacelamento dos laços intersubjetivos, dirá Freud em Psicologia das Massas, em 1922. Dessa forma, no caso da falta de um pai/um líder, os membros do agrupamento entram em pânico e se sentem desamparados, ao não encontrarem referências simbólicas. Instala-se uma crise, uma ruptura, o que promove a desagregação grupal, produzindo uma violenta desidentificação e instaurando a desordem e o terror, com a predominância do narcísico sobre o grupal.

Essa função paterna fundante do agrupamento continuará ainda a ser aprofundada por Freud, nesse mesmo texto de 1922, em que destaca a importância do líder e os processos psíquicos envolvidos no agrupamento e em relação ao líder. Em discussões com os grupalistas de sua época – Le Bon (1905), MacDougall (1922)19, Troter (1922)20 e Tarde (1922)21 –,

19Psicologia das Massas e Análise do Ego. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. 20 Ibdem

Freud explicitou mecanismos e razões adotados pelos sujeitos para se organizarem. Pode-se afirmar que a organização e a desorganização dos grupos foram temas relevantes de investigação dos grupalistas nos primórdios do século XX, quando a organização do processo grupal deixou de ser o foco e passou a entremear as construções teóricas. Dos meados do século XX em diante as pesquisas sobre os grupos se intensificaram e, mais tarde, grupalistas como Bion (1975), Pichon-Riviére (1985), Anzieu (1990b) e Kaës (1997) continuaram a investigar a organização, agora, derivando-a da articulação dos processos inconscientes nos grupos.

Le Bon (1905), talvez o precursor das hipóteses sobre os processos inconscientes nos grupos, considerava que organizar-se em grupo produzia a desorganização do próprio sujeito, que por contágio, movido pelo inconsciente herdado de ancestrais e pelo seu apagamento subjetivo na mente grupal, sobre o predomínio da fantasia e da ilusão, se transformava em louco e alienado, que agia desenfreada e impensadamente. A “massa” era sinônimo da própria desorganização. Somente nos grupos altamente organizados os membros podiam pensar juntos, dizia MacDougall (1922)22, o que mais tarde também foi destacado por Bion (1975): nos grupos muito organizados, os processos inconscientes estavam controlados pelas regras de funcionamento e enquadre, o grupo podia tornar-se refinado, preocupado com a realidade e os sujeitos reunidos podiam cooperar uns com os outros e pensar juntos.

Retornemos a Freud, que, ao investigar as motivações e as modificações experimentadas pelo sujeito ao se agrupar, inventou alguns princípios organizadores da grupalidade: o amor ao líder e a identificação, a partir da sugestão e da identificação, princípios que se tornaram modelos de compreensão do grupo organizado e dos processos de desorganização.

Para os participantes do debate de Freud sobre o grupo (FREUD, 1922), a perda do pensamento era o grande efeito desorganizador do sujeito e organizador do grupo, enquanto para ele, era o amor a matéria do laço do sujeito ao grupo. Por amor, os sujeitos projetavam seus ideais no líder e renunciavam ao seu próprio; pela crença de que esse líder os amava a todos com o mesmo amor, abdicavam de seus ideais em troca da ilusão de segurança, proteção e usufruto do amor entre os iguais, a violência e a agressividade eram descartadas e dirigidas aos estrangeiros, aos inimigos externos (p. 125), como observa Freud (1922) ao se referir ao grupo religioso, em A psicologia das Massas e Análise do Ego:

21 Op.cit.

Mas, mesmo durante o reino de Cristo, aqueles que não pertencem à comunidade de crentes, que não o amam e a quem ele não ama permanecem fora de tal laço. Desse modo, uma religião, mesmo que chame a si mesma de religião do amor, tem de ser dura e inclemente para com aqueles que a ela não pertencem. (p.125).

A violência e a agressividade serão as forças promissoras e organizadoras da civilização, afirmará Freud, mais tarde, em Mal-Estar da Civilização (1929). Mas, retornemos à psicologia das massas. De acordo com Freud o amor temor incondicional ao líder gerava efeitos: o apagamento do sujeito, a predominância de afetos e da vida psíquica inconsciente, um estado de regressão fazia ressurgir a horda primeira, com a diferença de que estavam libertos do pai super-homem, mas amarrados a um líder, submetidos ao grupo, não pela coerção, mas pela identificação. O grupo encontrava-se organizado.

O grupo se desorganizava com a irrupção da libido objetal, com as tendências sexuais diretas, com a emergência das diferenças entre os sexos, das gerações, das raças, das nacionalidades e das classes sociais, com a transição final do complexo de Édipo e com a ruptura com o líder. No caso da ruptura com o líder, como já dito, o grupo se desintegrava e surgia o pânico. Os laços que os uniam desapareciam e os membros não atendiam mais às ordens de um superior. Os sujeitos passavam a se preocupar consigo mesmos, sem considerar os demais. Com esse rompimento surgia um medo gigantesco e insensato – o pânico, grande o suficiente para romper os laços e os sentimentos de uns com os outros. Esse medo pânico emergia porque os laços emocionais, que os tornavam onipotentes diante do perigo, deixavam de existir. O pânico surgia com a iminência de um perigo comum ou pelo desaparecimento de laços emocionais que mantinham o grupo unido.

A desorganização grupal freudiana levava ao rompimento do laço e a finalização do grupo. Os grupos não organizados compeliam seus integrantes a atitudes semelhantes à de um animal selvagem. O pânico pela ausência do líder era o grande desorganizador grupal. O amor organizava e o medo desagregava o grupo:

[...] É impossível duvidar de que o pânico signifique a desintegração de um grupo; ele envolve a cessação de todos os sentimentos de consideração que os membros do grupo, sob outros aspectos, mostram uns para com os outros. [...] a perda do líder, num sentido ou noutro, o nascimento de suspeitas sobre ele, trazem a irrupção do pânico, embora o perigo permaneça o mesmo; os laços mútuos entre os membros, via de regra, desaparecem ao mesmo tempo, que o laço com seu líder. (FREUD, 1922, p. 124).

Freud não chegou a trabalhar com grupos, suas preocupações se dirigiram a provar ao mundo científico de sua época a realidade psíquica inconsciente constituinte do aparelho

psíquico singular baseado no conflito psicossexual; todavia teceu elogios ao psicanalista Simmel, pelo seu trabalho grupal com os neuróticos de guerra, em 1914 (FREUD, 1919).

No grupo objeto deste estudo, a intensa e veloz desorganização que presenciamos não era a de uma multidão nas ruas, de um grupo efêmero, sem líder, sem laços emocionais, mas de um grupo já instituído, permanente, enlaçado, com líder e tarefa comum. Identificados uns aos outros tentavam desenhar um projeto juntos.

Posteriormente a Freud, Bion (1975) dirá que o grupo, mesmo sob os efeitos do pânico, não se desagrega, se mantém nessa organização sob a vigência de um sistema defensivo, em que os integrantes, ainda que estejam vivendo uma situação de despersonalização provocada pelo sentimento de estranheza, em virtude do próprio agrupamento, se mantêm enlaçados em um movimento de regressão, massivos.