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Capítulo I | A arqueologia das respostas iniciais de acolhimento a mulheres

1.2 De Evas a Marias – O Objeto e a Intervenção

A prostituição assume-se claramente, desde o início do século XVI, como o objeto- problema fulcral. Contudo, a complexificação do sistema de resposta parece ocorrer quando os objetivos se começam a diferenciar gradualmente. Numa tipologia inicial de instituições, a intervenção centra-se na conversão da mulher prostituta; contudo, num segundo momento, o movimento institucionalizador tenta prevenir a prostituição, alar- gando a intervenção a outro tipo de mulheres que não as prostitutas. No entanto, e inde- pendentemente do timing da intervenção (pré ou pós facto), esta parece resultar de uma dupla preocupação social, orientada tanto por questões ideológicas como pragmáticas. A ideologia e o entendimento cristão sobre a natureza feminina estão subjacentes à inter- venção destas instituições iniciais, quer as de cariz religioso, quer as laicas. A teologia fun- damentou-se em Aristóteles e em Santo Agostinho para justificar uma imagem de inferio- ridade feminina que, se por um lado não lhe permitia refletir a imagem divina (ao contrá- rio do homem, que foi feito à imagem de Deus, a mulher foi feita com uma costela daque- le), por outro, e devido a Eva, era vista como mais responsável do que o homem por todo o pecado do mundo (Badinter, 1998; Bergesch, 2008). Tornava-se necessário corrigir a herança pecaminosa que Eva deixou a todas as descendentes, e que continuava a ser uma das principais representações femininas, bem como prevenir que a virgindade da mulher respeitável, tal como Virgem Maria, fosse perturbada.

As noções de género encontravam-se claramente associadas a estes dois ideais simbólicos representativos das atitudes face à moral. No século XVI e, mais concretamente, no XVII, a figura de Maria Madalena, a prostituta arrependida e convertida, surge como um terceiro símbolo, integrador dos dois anteriores, tornando-se a representação da dualidade femi- nina entre a sensualidade e a espiritualidade. Maria Madalena, através da virtude e de um comportamento magnânimo, elevou-se acima das outras mulheres, libertando-se da con- taminação moral (Deusen, 2001). A mulher convertida podia agora ter um ideal ao qual aspirar e a figura de Maria Madalena torna-se central e orientadora neste tipo de inter- venção inicial, sendo o seu nome associado a várias instituições que surgiam na altura, como o Mosteiro de Santa Maria Madalena, em 1604, em Pistóia, Itália.

Esta dupla intervenção ocorria num contexto de pobreza social generalizada, o que era entendido como um facilitador de um comportamento imoral, pois encontrava-se correla- cionado com a própria sobrevivência da mulher. Complementarmente a este idílico objeti- vo de fundamento medieval de conversão da mulher prostituta, as instituições iniciais

conseguiam igualmente, com o seu trabalho, concretizar um objetivo mundano, regulando e mantendo uma política de género claramente masculina, consolidando o duplo papel feminino na sociedade. Ao funcionarem como estruturas de higienização social, pareciam atualizar a dicotomia entre o devasso e o puro, enquanto albergavam todo um conjunto de mulheres difíceis de classificar e que não se enquadravam nesta divisão sócio-funcional e estatutária de género, como veremos à frente.

Se a prostituição era assumida como necessária, as prostitutas não andavam livremente pela cidade, limitando-se a determinadas zonas ou a casas específicas, para uma não transmissão de maus exemplos morais à comunidade (Otis, 1985). Estas instituições con- tribuíam, assim, para uma reaquisição de uma moralidade perdida, assinalando num espa- ço geográfico concreto e objetivável este trabalho de reconversão (moral e profissional). Um outro objetivo muito pragmático destas estruturas passava pela correção de um des- vio socioeconómico que apenas a prostituição parecia originar e que era responsável por um desalinho na política de género de então. A prostituição era, neste período histórico, uma das poucas maneiras da mulher ter acesso direto a dinheiro, podendo elevar-se para além do nível da subsistência, o que era um elemento perverso da estabilidade social e económica de então (Cohen, 1992). A prostituição era, por vezes, encarada pela mulher como uma estratégia clara de autonomização e não exclusivamente como uma estratégia de recurso ou sobrevivência.

Este acesso facilitado a dinheiro parece ter condicionado claramente as modalidades de intervenção destas respostas sociais, pois a precariedade económica tornava-se num claro fator de risco para um ingresso/regresso à prostituição. Apesar de haver registos de vários tipos de intervenção nestes conventos e instituições laicas, é possível perceber-se que tinham como objetivo a reabilitação da mulher e que a autonomia económica era um ele- mento central neste processo de responsabilização financeira. As mulheres eram conside- radas como aprendizes de uma qualquer profissão moralmente aceite, sendo desenvolvida uma ética de trabalho, através de uma ocupação constante, que visava religar funcional e moralmente estes dois elementos da equação social: mulher e dinheiro.

A nível funcional as instituições tinham procedimentos diversos. No que à estadia diz res- peito, os conventos para prostitutas convertidas pareciam implicar um maior tempo de permanência (por vezes durante o restante tempo de vida da mulher), enquanto os refú- gios de cariz mais preventivo assumiam uma temporalidade mais reduzida, podendo as mulheres ficar a residir da juventude à idade adulta (Cohen, 1992). Se os conventos e mos-

teiros tinham as madres superioras (e outros elementos definidores e mediadores de normas institucionais), as instituições de cariz preventivo detinham um outro elemento na intervenção – a figura da pessoa idónea. Este elemento, por vezes do sexo oposto, assu- mia-se como responsável pela mulher e servia de modelo a seguir. Com um elemento cla- ramente vicariante, tal como alguma da intervenção técnica atual2, as mulheres acolhidas eram acompanhadas e a transição para uma vida fora da instituição era mediada.

Atendendo ao caráter assumidamente alternativo, bem como ao reduzido leque de esco- lhas disponibilizado à mulher dos séculos XVI a XIX, estas instituições apresentavam-se como uma efetiva opção residencial alternativa.

As respostas laicas, no entanto, e enquanto exemplo da tipologia interventiva da altura, serviam para um conjunto mais vasto de soluções do que aquelas a que, originalmente, se destinavam.