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Os dispositivos de sensibilização social Os “Anos” Internacionais e Europeus

Capítulo II | A emergência da centração na mulher

2.2 O enquadramento social

2.2.2 Os dispositivos de sensibilização social Os “Anos” Internacionais e Europeus

O feminismo, ao contribuir para complexificar a grelha de leitura da esfera social, atenu- ando uma leitura masculinizada quase que exclusiva, tem vindo a permitir a apropriação mais global de fenómenos complexos, muitas vezes pouco visíveis, como o caso da Violên- cia Doméstica. Neste caso concreto, ao dar uma voz plural a eventos singulares, parece- nos que está a contribuir para uma atualização do fenómeno e, sempre que o faz, aumen- ta o grau de complexidade e de exigência social na resposta às diferentes questões que levanta.

Assim, parece-nos legítimo afirmar que a realidade atual, cada vez mais complexa no uso (e abuso) de forças sociopolíticas, é o resultado de toda uma progressão histórica que, presentemente, sofre com a interferência de um mecanismo de retro feedback, no sentido em que, influenciado pela realidade da qual emerge, influencia essa mesma realidade que observa atentamente e na qual atua. Um dos subprodutos desta dinâmica de ação/reflexão/ação parecem-nos ser os Anos Internacionais e Europeus, que se assumem como mecanismos e dispositivos de sensibilização social.

Estes iniciaram-se com a ONU, em 1957 e, desde então, este organismo internacional tem vindo a desafiar a consciência mundial lançando para o debate público diferentes questões sociais que se dividem, ao longo de um ano, em múltiplas iniciativas. Todas elas visam de- senvolver mecanismos promotores de regulação e controlo (judiciais, sociais e comunitá- rios) de um objeto social (ONU, 2013).

Claramente que o objeto dessa preocupação e necessidade de regulação e controlo tem sido o próprio Ser Humano. Sem querer enumerá-los, nem dedicar muito tempo a este mecanismo, podemos referir, contudo, que, fazendo uma análise dos Anos Internacionais

e Europeus, se verifica, também, uma progressão do geral para o particular (tal como a ocorrida na emissão e ratificação dos documentos internacionais analisados anteriormen- te). Existe um processo de refinamento do objeto de análise e de intervenção social (que espelha, no fundo, a progressão político-social que caracterizou o próprio movimento de emissão e ratificação dos diferentes diplomas), revelador de uma crescente maturidade da consciência coletiva, bem como um fenómeno de espelho das preocupações sociais de um determinado momento político-social.

De um primeiro ano, em 1968, dedicado aos Direitos Humanos (dezoito anos após a Con- venção sobre esses mesmos Direitos), em que, certamente não por acaso, coincidiu com um crescendo da disfunção sociopolítica resultante da Guerra do Vietname e a incontável perda de vidas no país que começava a assumir-se como a principal potência mundial, verificamos uma recentração na Mulher, em 1975. Neste ano, com uma maior evidência dos Movimentos Feministas resultantes das vagas de que falávamos anteriormente, viveu- se o Ano Internacional da Mulher, que serviu de arranque a uma iniciativa sem preceden- tes: o dedicar toda uma década a um subgrupo populacional, neste caso a Mulher. Esta iniciativa, que pretendeu alertar a comunidade internacional para a condição feminina, defendeu que um efetivo desenvolvimento comunitário (local, regional e global) sustenta- do teria, obrigatoriamente, de colocar a mulher no papel de protagonista social de pleno direito.

Em 1994, as Nações Unidas voltam a centrar a sua atenção nas dinâmicas entre elementos familiares próximos. A atenção da ONU não é colocada no indivíduo (masculino ou femini- no) mas na unidade familiar, sendo dedicado este ano à Família. Parece-nos claro que esta foi uma iniciativa formal deste organismo máximo para tentar inverter um fenómeno que, hoje, parece claramente visível e incontornável – a deslocação da base social da família para o indivíduo (Singly, 2007).

Esta progressão do focus de análise internacional não nos parece aleatória. Utilizando (ainda que abusiva e provocatoriamente) o quadro conceptual de Urie Bronfenbrenner (1979) para analisar este processo desenvolvimental de atenção e intervenção política global, verificamos que houve necessidade de, num primeiro momento, centrar a refle- xão/intervenção sobre o Macrosistema (Direitos Humanos). Tentou-se estabelecer e defi- nir política, social e, também, moralmente os fundamentos basilares para uma convivência global. Só após o estabelecimento dos limites e regras mínimas para os agentes sociais individuais (na sua globalidade), definindo um quadro estrutural teoricamente estável, é

que foi possível aprofundar o eixo reflexivo, iniciando um conjunto de incursões em dife- rentes Microsistemas sociais, entre os quais o feminino. Mediando a análise destes dife- rentes agentes sociais, foi sendo recentrado o focus político e social a um nível Mesosis- témico, mais complexo devido à exigência resultante de interação entre Microssistemas que, no concernente a esta reflexão, foi a Família, em 1994, no Ano Internacional da Famí- lia.

Apesar de reconhecermos que, a posteriori, quase todas as análises são possíveis, afigura- se-nos como interessante constatar que o desenvolvimento social desta análi- se/intervenção das Nações Unidas pretendeu contribuir para uma mudança na maneira como os estados percebem e lidam com os seus settings sociais, o que nos parece ser uma apropriação clara, a um nível social, do conceito de desenvolvimento do autor.

Development is defined as a lasting change in the way wich a person perceives and deals with his environment. (Bronfenbrenner & Morris, 1999)

Utilizando este quadro referencial durante mais alguns momentos, e numa perspetiva historicista de análise, percebemos que todo este movimento social evolutivo de preocu- pação sobre os atores, as suas interações e as suas dinâmicas, refletem as (e interferem nas) mudanças de expectativas e de vontade de intervir dos próprios agentes sociais. O conceito de Macrotempo (enquanto elemento caracterizador de um Cronossistema), lido neste contexto, remete-nos para a história vivenciada, não pelo indivíduo mas pela socie- dade em desenvolvimento, assim como para as expectativas em relação ao futuro que esta venha a elaborar. O Macrotempo parece-nos ser um elemento crucial na constante redefi- nição das intervenções e reflexões sociais que são elaboradas. Esta dimensão temporal permite-nos contextualizar as diferenças e idiossincrasias de cada tempo histórico-político, possibilitando avaliar o que já foi adquirido e auxiliando no desenho de intervenções mais capazes e reajustadas. Estamos perante uma evolução cumulativa de intervenção num fenómeno social. Estas constantes revisitações a que a violência contra a mulher tem sido alvo, têm implicado uma complexificação quer da análise do fenómeno, quer da resposta ao mesmo.

Não podemos, também, deixar de referir que uma movimentação semelhante parece sur- gir no contexto mais restrito da União Europeia. Contudo, a União Europeia parece ter

beneficiado, claramente, do trabalho pioneiro e exploratório das Nações Unidas, tendo podido operacionalizar o seu trabalho com uma outra intensidade.

A partir de 1983, o Conselho da Europa, passa a mobilizar-se em torno de um tema agre- gador, com o duplo objetivo de sensibilizar o cidadão europeu e os diferentes governos enquanto coloca assuntos sensíveis na agenda política internacional.

O primeiro Ano Europeu relacionado diretamente com a Mulher foi em 1999 - Ano Euro- peu da Recusa Total de Violência Contra as Mulheres. A preocupação com a visibilidade pública do fenómeno foi um objetivo claro: “Está na hora de a violência dos homens contra as mulheres se tornar visível e de sublinhar as consequências desta violência para a saúde das mulheres.” (Eriksson, 1997, p. 19), reforçando mais uma vez a necessidade de uma campanha europeia que

deveria aproveitar e reforçar as iniciativas das ONG e das autoridades dos Esta- dos-membros [...]. Sobretudo, deveria ter como objetivo a proteção e a informa- ção, bem como a prevenção, e centrar-se tanto nos serviços de apoio às mulheres afetadas como na tomada de consciência por parte da sociedade no seu conjunto para que não reste uma sombra de dúvida: a violência contra as mulheres afeta- nos a todos e a cada um de nós (Ibidem, 1997, p. 21).

Verifica-se, também, um cruzamento entre as iniciativas mais globais (ONU) e as regionais (Europeias). Este Ano Europeu foi uma tentativa de reforçar e operacionalizar as conclu- sões da 4ª Conferência Mundial Sobre as Mulheres (Pequim, 1995), organizada pelas Na- ções Unidas, onde participaram todos os Estados-Membros da União Europeia (Eriksson, 1997). Esta Conferência foi um marco na nova abordagem da violência contra as mulheres. O resultado destes trabalhos traduziram-se na «Declaração de Pequim e a Plataforma para Ação», tendo determinado, de entre outras medidas, prevenir e eliminar a violência contra as mulheres.

A Comunidade considera a igualdade entre as mulheres e os homens como um princípio fundamental. Os direitos das mulheres e das raparigas são inalienáveis, indivisíveis e fazem parte integrante dos direitos universais do homem.

As políticas e os programas devem insistir nas medidas em favor do reconheci- mento do papel fundamental desempenhado pelas mulheres nos processos soci-

ais, económicos e políticos, da participação das mulheres na administração do poder e do seu acesso à independência económica. (Europa, 1995, para. 3)

Parece-nos claro que todos estes contributos sociais implicaram, direta e indiretamente, uma visibilidade cada vez mais pública de fenómenos que, durante séculos, foram pouco explícitos, invisíveis e escassamente valorizados. Ressalvamos que estes dispositivos que permitiram uma progressiva “publicitação social” não serviram exclusivamente a violência doméstica mas, devido ao objeto da reflexão, é sobre ela que nos interessa colocar o en- foque.

Da análise das movimentações políticas e sociais, resulta a constatação de que nos encon- tramos perante um movimento de duplo sentido. A violência doméstica, fundamental- mente com o decorrer do século XX, assume um cariz crescentemente social. A experiên- cia feminina é validada. Mesmo os contributos extremistas, tal como o de Valerie Solanas, são integrados naquilo que se afigura como uma dialética hegeliana, servindo de antítese ao machismo, e servindo para que, progressivamente, se construa uma síntese social. Politicamente, no entanto, encontramos um movimento contrário. Verificamos que há uma necessidade de intrusão controlada em esferas cada vez mais específicas. Dos macro- sistemas referidos anteriormente, dos grandes elementos estabilizadores sociais, surgem mecanismos reguladores de esferas semipúblicas e privadas. A religião, as etnias, o próprio “ser-se” masculino ou feminino começam a ser alvo de intervenção e análise.

Estas movimentações não constituem, no entanto, movimentos distintos. São parte inte- grante de um devir cada vez mais exigente que, analisado parcelarmente, não nos permite compreender nada mais do que meros entendimentos temporalmente localizados de momentos crono-históricos. Um conjunto de Daseins, diria Heidegger (2003), de diferen- tes “ser-aí”. O historicismo, no entanto, permite-nos ultrapassar as limitações do aqui e agora e compreender a direccionalidade da construção realizada. Neste caso concreto, permite-nos perceber que a preocupação com a mulher, apesar de tardia e secundária, tem vindo a assumir uma preponderância cada vez maior. A sua afirmação só está a ser possível, no entanto, devido à construção prévia de uma realidade social sensível aos pró- prios agentes e às regras de articulação entre eles.

Seguidamente iremos analisar os instrumentos legislativos que foram sendo construídos em Portugal que, histórica e presentemente, parecem traduzir a sensibilidade social para com o problema da Violência Doméstica, enquanto balizam a intervenção na mesma.

Capítulo III | Os Produtos Legislativos

A violência doméstica configura uma grave violação dos direitos huma- nos, tal como é definida na Declaração e Plataforma de Ação de Pequim,

da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1995, onde se considera que a violência contra as mulheres é um obstáculo à concretização dos objetivos de igualdade, desenvolvimento e paz, e viola, dificulta ou anula o gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais.

odos somos produtos do nosso tempo. A legislação, contudo, parece ser um exemplo último do modo como o homem entende o momento social que vive, bem como o tenta disciplinar.

Em Portugal, a legislação específica para o fenómeno da Violência Doméstica surge apenas na década de 1990. Naturalmente que, aquando do seu surgimento, estes diplomas legais foram, por um lado, ao encontro de um conjunto de recomendações europeias desenvol- vidas no âmbito do combate à Violência Doméstica (Dias, 2000) e, por outro, respeitaram os preceitos constitucionais da atual Constituição Portuguesa.

Neste capítulo, analisaremos brevemente a evolução da Constituição Portuguesa e, segui- damente, os artigos mais importantes do Código Penal relativamente a esta problemática, finalizando com a atual legislação específica.