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Capítulo II | A emergência da centração na mulher

2.2 O enquadramento social

2.2.1 Os feminismos enquanto elementos de complexificação social

O contributo do feminismo, enquanto movimento sociopolítico organizado, para a visibili- dade do fenómeno da Violência Doméstica, parece-nos preponderante.

Sem querermos estabelecer qualquer história do feminismo, recorreremos, brevemente, a alguns elementos caracterizadores que consideramos determinantes para a contextualiza- ção do fenómeno.

Se entendermos o feminismo como o referido anteriormente, ou seja, como um movimen- to organizado que visa defender os direitos e interesses das mulheres, então, os finais do século XVIII e o século XIX surgem-nos como os momentos de arranque destes movimen- tos que emergem quer na Europa, quer na América do Norte.

As suas origens, contudo, não parecem ser simples de definir. Tradicionalmente, relaciona- se o surgimento dos primeiros movimentos feministas (século XIX) ao Liberalismo e à Re- volução Industrial. O conceito de “feminismo” parece ter, nesse momento histórico, espa- ço de emergência devido ao primeiro e possibilidade de operacionalização devido à se- gunda (LeGates, 2001). Naturalmente que os ideais liberais, materializados em consequên- cia das revoluções francesa e americana, fundamentalmente, em muito contribuíram para a reflexão e, posterior implementação de conceitos abstratos como a igualdade e liberda- de. Se num primeiro momento a igualdade, tal como definida por Rousseau (Rousseau, trans. 2003), era aplicável apenas a um conjunto muito específico de indivíduos, logo co- meça a desenhar-se como imperativo geral, dadas as necessidades económicas e sociais, agora explícitas.

Parece-nos, fundamentalmente, que ambas as revoluções (francesa e americana), mais do que um apanágio para ideais liberais, permitiram (exigiram) que se criassem mecanismos de organização para uma nova consciência social que se veio a revelar mais complexa que a anterior, com novos atores sociais e com novos espaços para o desempenho social dos mesmos.

No entanto, e por mais que reconheçamos que as movimentações sociais e as necessida- des económicas tenham tido um papel preponderante e, também, por mais sedutor que seja tentarmos encontrar elementos únicos de génese do fenómeno, estes contributos não foram os únicos. Como defende LeGates (2001), a relação entre os diferentes desen- volvimentos (económicos, intelectuais e políticos) e o feminismo é demasiado complexa para ser limitado a uma fórmula única.

A evolução do movimento feminista é apresentada, normalmente, em três vagas (Kaplan, 1992), historicamente distintas. No entanto, há autores que nos remetem para a existên- cia concomitante de várias vagas, afirmando que determinados países (dos quais consta Portugal, onde o desenvolvimento sociopolítico ocorreu a um ritmo mais lento que o dos

seus congéneres do centro e norte da Europa) as vivenciaram em momentos históricos distintos dos países centro-europeus e americanos (Lovenduski, 1986) e, por vezes, simul- taneamente. Contudo, o definido por cada uma destas três vagas parece corresponder a posições e objetivos distintos que são importantes e exigem uma análise breve.

Os primeiros movimentos formais feministas, quer europeus, quer norte-americanos, dei- xaram de ter uma forma e uma duração fugaz apenas a meio do século XIX, assumindo-se, a partir de então, como mais permanentes e organizados. Esta solidificação marca o início da primeira vaga, que termina com os movimentos sufragistas e a conquista do direito ao voto por altura da I Grande Guerra Mundial (LeGates, 2001).

Os objetivos destes primeiros movimentos feministas centravam-se fundamentalmente na tentativa de melhorar a posição legal das mulheres casadas, bem como em criar a possibi- lidade de independência económica para mulheres solteiras (LeGates, 2001). Estes objeti- vos correspondiam à operacionalização de direitos civis e direitos do trabalho. O movi- mento sufragista do início do século XX reflete claramente esta luta da mulher pela con- quista dos direitos do homem. A igualdade desejava-se, fundamentalmente, no plano dos grandes direitos sociais.

No início do século XX, muitas mulheres europeias e americanas beneficiavam, como re- sultado destas lutas sociais, do acesso a uma melhor educação, novas profissões (até en- tão destinadas exclusivamente a homens) e de leis mais abrangentes no que se refere ao divórcio e à propriedade partilhada com o marido.

Também em Portugal houve movimentações no sentido de uma melhor integração social e projeção feminina. Em 1914 é fundado, por Adelaide Cabete, o Conselho Nacional das Mu- lheres Portuguesas, que é uma extensão do Conselho Internacional de Mulheres. Este Conselho português tenta promover a emancipação feminina. Possui um Boletim próprio – o “Alma Feminina” e consegue realizar, em 1924, o “I Congresso Feminista e de Educação” e, em 1928, o “II Congresso Feminista” (Rebelo, 2004).

Parece-nos que estes ganhos, contudo, não devem ser entendidos como diretamente e exclusivamente relacionados com os movimentos feministas. O acaso sociopolítico, com os seus necessários constrangimentos económicos, parece ter tido um papel relevante. A título de exemplo veja-se o acesso a novas profissões, resultado inequívoco das referidas necessidades, particularmente visíveis aquando da I Grande Guerra. A falta de homens, destacados para a frente dos combates, obrigou a que a indústria bélica empregasse, qua- se em exclusivo, a força produtiva feminina.

Independentemente da real influência da mulher na indústria da guerra, este período foi sentido como uma melhoria. Devido à abertura destes (e outros) espaços sociais às mulhe- res, um conjunto de mudanças muito pragmáticas teve de ser efetuada: As mulheres “res- peitáveis” puderam passar a contribuir economicamente para o rendimento familiar; pu- deram deixar de ser constantemente acompanhadas/supervisionadas; começaram a usar roupas mais práticas (saída do espartilho e entrada de saias mais curtas no guarda-roupa do quotidiano); e, as mais ousadas, a usar penteados mais curtos ou com o cabelo apa- nhado (LeGates, 2001).

No final da I Grande Guerra, contudo, este movimento crescente sofre uma clara inflexão. A pressão social gerada pelos eventos públicos das feministas num contexto social caracte- rizado pela Grande Depressão, a consolidação do Fascismo e dos seus líderes totalitários, criou um sentimento de aversão contra o feminismo, como sendo, curiosamente, apolítico e positivamente pouco importante. A consciência política das décadas de 1930 e 1940 não se revia nos movimentos feministas. Pelo contrário, foi nutrida uma clara aversão a estes movimentos que foram considerados como uma luta menos importante que as dos restan- tes subgrupos sociais (proletariado) e que, inclusivamente, a poderia dividir e enfraquecer (Greene, 1991).

O feminismo “formal” não ficou dormente por muito tempo. Um segundo reaparecimen- to, uma segunda vaga dos movimentos feministas, ocorre a partir dos anos 1960. Os anos das revoluções estudantis, da revolução sexual, revelaram também uma centração nas questões da sexualidade feminina (contraceção, reprodução, aborto, homossexualidade, luta contra os estereótipos sexuais, ...).

O focus da reflexão passa de uma preocupação de cariz mais legal e comunitária, para uma esfera mais inter e intrapessoal.

O que foi considerado como “desvantagem feminina”, i.e., o papel de submissão numa sociedade marcada pela opressão androcêntrica, foi evidenciada em inúmeros protestos públicos contra o domínio patriarcal da sociedade. O papel tradicional feminino nas esfe- ras privadas (família) e semipúblicas (trabalho) foi evidenciado, contestado e posto em causa em ações altamente visíveis e mediáticas como a queima de sutiãs (e de outros utensílios de tortura, como foram chamados na altura: sapatos de salto alto, lacas, pesta- nas postiças, ...), em 1968, nos Estados Unidos, por cerca de 400 mulheres da Women’s Liberation Movement, em protesto contra o concurso Miss América, ou ainda a colocação

de uma grinalda, agora na Europa, na estátua do Soldado desconhecido, em Paris, home- nageando a mulher do mesmo (Amorim, 2008).

Progressivamente, estes movimentos que visaram a nivelação social, definindo e regulan- do iguais direitos entre os sexos, deram origem a outros que, por sua vez, procuraram exi- bir as diferenças entre os sexos, realçando as qualidades inerentes ao sexo feminino. O focus passou a ser colocado na autonomia e não tanto na igualdade. Esta terceira vaga de feminismo é referenciada por Kaplan (1992) como um pós-feminismo.

A visão tradicional feminista é colocada em causa. Há análises que revelam que os objeti- vos foram alcançados, outras que referem que a mulher perdeu qualidade de vida (Kaplan, 1992). Parece-nos claramente que um pouco dos dois terá ocorrido.

O feminismo, com as suas múltiplas variantes, contribuiu indubitavelmente para um alar- gamento das grelhas de leitura sociais e políticas, complexificando a vida social, enrique- cendo-a, através da inserção no discurso público de agentes sociais que se encontravam num segundo plano. Contudo, obrigou a uma reestruturação dos alicerces da sociedade ocidental, nomeadamente o quadro de valores tradicionais, concretamente o familiar. O processo como o fez, no entanto, teve os seus exageros, o que contribuiu para que as perspetivas feministas não fossem sempre bem aceites pelos grupos já acomodados soci- almente.

Apesar de tudo, e adotando uma perspetiva analítica desenvolvimental, parece-nos legíti- mo este fenómeno – quando se habituam a não nos ouvir, por vezes temos de gritar. É necessário perceber e reconhecer, no entanto, quando o discurso é gritado. Esta não contextualização amplifica e distorce o exagero (programado) inicial. Outras vezes, é apenas necessário gritar um pouco menos.

No genuine social revolution can be accomplished by the male, as the male on top wants the status quo, and all the male on the bottom wants is to be the male on top. The male “rebel” is a farce; this is the male's “society”, made by him to satis- fy his needs. He's never satisfied, because he's not capable of being satisfied. Ul- timately, what the male “rebel” is rebelling against is being male. The male changes only when forced to do so by technology, when he has no choice, when “society” reaches the stage where he must change or die. We're at that stage now; if women don't get their asses in gear fast, we may very well all die. (Sola- nas, 1968, para. 52)

As amplificações exageradas dos movimentos niveladores feministas fizeram (e fazem-se ainda) notar. De posições claramente exageradas na análise social que elaboraram, como o Manifesto SCUM (Society for Cutting Up Men) de Valerie Solanas, do qual retirámos o excerto anterior, passámos para posições mais subtis, mas não menos exageradas, como as hipérboles sintáticas, ainda que com evidente menor importância, com que o tratamen- to interpessoal atualmente se reveste (e.g., “Minhas Senhoras... Meus Senhores...”; “Por- tuguesas... Portugueses...”) que, quando não é usado, é considerado por alguns como uma clara violência simbólica.

Como qualquer radicalismo, também o feminista nos parece disfuncional. A substituição de um tipo de opressão, a masculina (que, apesar de tudo, foi historicamente contextuali- zada e construída, nas sociedades ocidentais, ao longo de séculos), não pode ser substituí- da por outra, a feminina, apenas porque aquele “jugo” foi levantado. O feminismo é um contributo extremamente válido para a dinâmica social mas, como qualquer outro, neces- sita de ser enquadrado e inserido numa análise complexificadora mais global.

Deste modo, e independentemente das críticas que lhe possam ser dirigidas, o feminismo continua presente, plural e crítico:

Presente e organizado. Uma das características comuns aos movimentos femi- nistas (independentemente da vaga a que pertencem), é a organização (formal e informal) inerente aos mesmos. Desde cedo estes movimentos apresenta- ram-se como grupos de pressão que, com o tempo, se afiguraram como mais organizados e influentes. Atualmente são uma efetiva força política. Exemplo disto é o Lobby Europeu das Mulheres.

Plural e contraponto. Os movimentos feministas, atualmente, revelam posturas e estratégias diferenciadas, sendo uns mais agressivos e provocadores e outros mais conservadores e integradores. Os diferentes movimentos feministas reve- lam também diferentes focus atencionais, muito mais específicos do que ante- riormente (movimentos centrados nas questões da maternidade, do direito la- boral, da violência doméstica, na participação política, ...).

Crítico e revisionista. A maturidade que apenas o tempo permite tem possibili- tado uma maior autorreflexão sobre o feminismo, revelando as suas crescentes multiplicidades. Estas são apresentadas, por alguns autores (Snitow, 1990), como um fenómeno “dividido”: Feminismos radicais, culturais, existencialistas

e pós-estruturalistas. Os diferentes progressos científicos (da Medicina, Psico- logia, ...) contribuíram para uma conceção cada vez mais plural da realidade feminista.

Pensamos, assim, que não será exagerado afirmar que os fenómenos sociais dos últimos 100 anos, não sendo necessariamente feministas, foram influenciados por estes movimen- tos.

2.2.2 Os dispositivos de sensibilização social - Os “Anos…” Internacionais e Eu-