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Capítulo V | As violências domésticas e a sua interrupção

5.1 Violência doméstica – Do conceito aos impactos

Ao definir o campo de análise de um qualquer estudo, seria legítimo pressupor-se que a definição do seu objeto seria o ponto inicial e basilar no qual se assentaria toda a reflexão subsequente. No âmbito do pressente estudo, contudo, a definição inicial de um dos seus objetos não é pacífica. Os comportamentos disfuncionais entre indivíduos que partilham uma relação de intimidade têm sido definidos e reenquadrados em diferentes constructos, como violência doméstica, violência familiar, violência nas relações de intimidade ou vio- lência conjugal, entre outros.

Consideramos que esta é uma discussão de profundo interesse, pois só definindo e bali- zando o fenómeno o poderemos tornar moldável e comparável. Salientamos, tornando-o nosso, o defendido por Johnson (2008), que refere que a literatura se encontra repleta de mal-entendidos e desentendimentos, oriundos da incapacidade de fazer distinções entre os diferentes tipos de violência em contextos de intimidade. Assim, a adoção de um ou outro termo para definir este constructo traz, necessariamente, implicações de cariz epis- temológico. A seleção e adoção de um ou outro termo parece implicar, fundamentalmen- te, o posicionamento do investigador em relação ao fenómeno em causa.

Desde a emergência contemporânea da violência doméstica enquanto problema social que se tem vindo a assumir, implícita e explicitamente, que este é um fenómeno clara- mente relacionado com o género, em que, maioritariamente, o feminino é remetido para

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um papel de vítima e o masculino para o de agressor. Diferentes autores (Bograd, 1990; Dobash & Dobash, 1998; Saunders, 1990; Yllö, 1990) têm-se debatido para que este cons- tructo seja analisado em função do género, remetendo esta violência na intimidade para uma violência contra mulheres, lutando ativamente para que esta não seja ocultada atrás de conceitos mais neutros como abuso conjugal ou violência doméstica (Nixon, 2011). Ultimamente, contudo, a noção de que as mulheres são vítimas únicas ou primárias, tem sido desafiada por diferentes investigadores que colocam em evidência vários estudos em que homens são as vítimas frequentes de violência por parte das suas companheiras (Dutton & Nicholls, 2005; Stets & Straus, 1989). Diferentes estudos apresentam um con- junto de outros elementos que não o género como justificadores da violência doméstica. Dutton (1994), por exemplo, conclui que são os fatores ligados à construção da intimidade e à psicopatologia e não propriamente o género, os responsáveis pela violência nas rela- ções de proximidade.

Hoje em dia, esta discussão continua e tem-se revelado profícua nos diferentes trabalhos que tem originado. Sublinhando a importância deste elemento nomenclador, não é, con- tudo, preocupação deste trabalho contribuir para esta problematização. Como certamente já foi percetível ao longo deste documento, assumimos o recurso ao termo Violência Do- méstica para definir o que se encontra consagrado no artigo 152 do Código Penal Portu- guês, já abordado em capítulo anterior, e que a APAV (2010) sintetiza como “a prática de um ou mais crimes no contexto de uma relação de parentesco, adoção, afinidade ou sim- plesmente intimidade” (p. 11).

Assumimos a utilização do conceito violência doméstica justificando-a, fundamentalmente, por dois grandes motivos:

Pragmáticos – No sentido em que quer as técnicas entrevistadas, quer os pró- prios documentos estruturantes que, em Portugal, enformam esta realidade (e.g.: Plano Nacional Contra a Violência Doméstica), se referem ao fenómeno mediante este constructo, o que permite assumirmos uma linguagem inicial comum neste processo de construção;

Etimológicos – Atendendo à riqueza e multiplicidade de leituras que a palavra latina original – domus – permite: por um lado remete-nos para o que ocorre dentro do espaço de intimidade (em que as “quatro paredes” do contexto do- méstico se apresentam como mais emocionais e relacionais do que físicas) en- quanto, por outro, nos remete para o domínio (palavra com a qual partilha a

mesma raiz etimológica), elemento fundamental de uma dinâmica relacional violenta.

Independentemente da definição utilizada ou dos conceitos adjacentes ou complementa- res pelos quais se possa optar, parece-nos consensual assumirmos que este tipo de violên- cia viola claramente os direitos humanos e se apresenta como uma questão fundamental de saúde pública (Lees, Phimister, Broughan, Dignon, & Brown, 2013), tratando-se de um fenómeno de dimensão universal que ultrapassa qualquer fronteira cultural, social, eco- nómica, étnica, religiosa, de idade ou género (Richards, Letchford, & Stratton, 2008). Este cariz universal, por um lado, e a sua prevalência nos espaços de intimidade, por outro, transforma este género de violência num fenómeno particularmente nocivo, atentando contra a qualidade de vida da vítima mas, também da própria comunidade (Lisboa, Vicente, & Barroso, 2005; Lourenço & Carvalho, 2001).

O espaço de emergência que a violência doméstica, como analisado nos capítulos anterio- res, tem vindo a ocupar, tem permitido o desenvolvimento de um conjunto de vários mo- vimentos orquestrados: a nível político e social (como os diferentes planos nacionais con- tra a violência doméstica); a nível interventivo (como as inúmeras campanhas de sensibili- zação levadas a cabo por diferentes organizações não governamentais ou a criação de um maior número de serviços de atendimento a vítimas); e a nível científico, com um corpo crescente de literatura a abordar diferentes faces de um mesmo fenómeno. Esta atenção crescente tem permitido, para além de um extenso processo de caracterização, ir apro- fundando diferentes níveis do saber sobre este fenómeno social, bem como concretizando os múltiplos impactos da violência doméstica. Estes impactos a um nível mais proximal (seja num espetro maior – na comunidade – ou num menor – no indivíduo), interessam- nos, pelo que refletiremos brevemente sobre eles.

A um nível comunal, a violência doméstica apresenta um conjunto de consequências de forte impacto. Dificilmente uma mulher vítima poderá, adequadamente, contribuir de forma produtiva, quer para a sua vida familiar, quer para a economia (quando analisada em sentido lado). A violência doméstica implica, complementarmente, uma maior sobre- carga nos diferentes sistemas sociais existentes, concretamente os judiciais, laborais e de segurança e apoio social (Hagemann-White, Katenbrink, & Rabe, 2006).

De acordo com o relatório sobre as medidas e ações que têm vindo a ser tomadas nos estados que pertencem ao Conselho da Europa (2006), a violência doméstica parece con-

tribuir para reduzir o nível de literacia, a instrução, a mobilidade e o potencial de inovação de uma proporção significativa da população. As mulheres que são vítimas, as crianças que crescem e se desenvolvem testemunhando diferentes tipos de violências mas, concreta- mente, a doméstica e, inclusivamente, os perpetradores, acabam restringidos no seu po- tencial pessoal, nunca alcançando um desenvolvimento pleno, o que impacta de modo evidente a sociedade como um todo.

Ainda numa perspetiva global, mas agora numa vertente economicista, os impactos da violência doméstica também se fazem sentir pungentemente, implicando elevados custos económicos para os diferentes estados. A título de exemplo e não saindo de uma análise ao nível do Conselho da Europa, estima-se que, na totalidade dos seus estados, os custos com a violência doméstica sejam cerca de 34 biliões de Euros anuais (Quaresma, 2012).

Apesar da violência doméstica poder vitimar homens e mulheres, parecem ser estas as mais afetadas. Calcula-se que, na Europa, 12% a 15% das mulheres com mais de 16 anos, se encontrem numa relação abusiva (Hagemann-White, et al., 2006). De modo mais con- creto, em Portugal, e de acordo com os resultados do inquérito de vitimação realizado em 2007, 6,4% das mulheres de Portugal continental, com idade igual ou superior a 18 anos, foi alvo, nos 12 meses anteriores, de atos de violência física, sexual e/ou psicológica, sendo a percentagem de 2,3% a proporção correspondente nos homens (Lisboa, Barros, & Cerejo, 2008; Lisboa et al., 2010).

De acordo com Lisboa, Barroso, Patrício e Leandro (2009), que recorrem à tipologia inter- nacional da violência contra as mulheres (física, sexual e psicológica), “quando se analisa a vitimação a partir dos tipos de violência, as vítimas de violência psicológica destacam-se de um modo evidente. Refira-se ainda uma percentagem considerável de mulheres que são vítimas de mais do que um tipo de atos (36%)” (p.39). De acordo com os dados de 2007 obtidos por estes autores, de uma amostra representativa de 1000 mulheres, a tipologia de violência distribuía-se da seguinte forma:

 Física, psicológica e sexual (5%)

 Psicológica e sexual (11%)

 Física e sexual (1%)

 Física e psicológica (18%)

 Psicológica (45%) e

 Física (9%).

A nível de impacto individual, vários têm sido os estudos e relatórios, particularmente no domínio da Saúde, que se têm debruçado sobre as consequências da violência doméstica. Esta violência implica um número de consequências que ultrapassa claramente os feri- mentos imediatos, como hematomas, fraturas e funcionamento físico diminuído. Recor- rendo novamente, ao relatório sobre as medidas e ações tomadas nos estados do Conse- lho da Europa (Hagemann-White, et al., 2006), os estados membros evidenciam que as consequências mais comuns a nível da saúde incluem problemas psicossomáticos, desor- dens alimentares, stress pós traumático, fobias, pânico, depressão e ansiedade.

Em Portugal, num estudo de Lisboa, et al. (2008) sobre os custos sociais e económicos da violência exercida contra as mulheres, verificou-se que as vítimas, quando comparadas com mulheres não vítimas, apresentavam mais:

 Feridas (100%)  Coma (94%)  Hemorragias (94%)  Equimoses/hematomas (82%)  Intoxicações (79%)  Lesões genitais (73%)  Obesidade (57%)  Asma (46%)  Queimaduras (46%)  Palpitações (44%)  Tremores (43%)  Colite (42%)  Cefaleias (40%)  Vómitos frequentes (40%)  Dermatite (37%)  Dificuldades respiratórias (37%)  Úlcera gastroduodenal (37%)  Sudação (36%)  Hipertensão arterial (26%).

Também a nível das consequências psicológicas, o estudo anteriormente referenciado evidencia um conjunto de sintomas, doenças e lesões com maior probabilidade de ocor- rências em mulheres vítimas de violência doméstica, quando comparadas com mulheres não vítimas, concretamente:

 Tentativas de suicídio (600%)

 Sentir-se desesperada (556%)

 Sentir-se vazia (479%)

 Com sensação de desmaio (200%)

 Auto desvalorizada (128%)

 Sentir-se desanimada (368%)

 Sentir-se culpabilizada (355%)

 Triste e pesarosa (344%)

 Com ideação suicida (300%)

(117%)

 Ansiosa (112%)

 Desesperançada (61%)

 Só (58%)

Por seu lado, Stark & Flitcraft (1988, as cited in(Stark, 2001) referem que as mulheres víti- mas de violência doméstica, quando comparadas com mulheres não vítimas, apresentam: a) cinco vezes maior probabilidade de cometer suicídio; b) 15 vezes maior probabilidade de abusar de bebidas alcoólicas; c) nove vezes maior probabilidade de abusar de drogas; d) seis vezes mais probabilidades de reportar abusos para com crianças e e) três vez mais probabilidades de ser diagnosticada como depressiva ou psicótica. Os mesmos autores acrescentam ainda que 19% das mulheres vítimas de violência doméstica tentam o suicídio pelo menos uma vez na vida; a 38% é-lhes diagnosticada depressão ou um outro distúrbio psiquiátrico e 10% tornam-se psicóticas. Complementarmente, mulheres vítimas de vio- lência doméstica parecem encontrar-se em maior risco de recorrer abusivamente ao álco- ol, nicotina e medicação. Estas mulheres parecem necessitar, ainda, de quatro a cinco ve- zes mais cuidados psiquiátricos (Hagemann-White, et al., 2006).

Se as consequências e impactos que a violência doméstica implica se encontram devida- mente documentadas, estudadas e aceites, as dinâmicas violentas assumem-se como um território de saber mais delicado e suscetível. De seguida abordaremos estas questões que nos levarão a uma outra: Porque é tão difícil abandonar uma relação violenta?