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Capítulo I | A arqueologia das respostas iniciais de acolhimento a mulheres

1.1 Do género como problema ao desenho das primeiras soluções

A violência doméstica, sendo um fenómeno transversal a elementos como a idade, a raça, a cultura e a economia (Tjaden & Thoennes, 2000; WHO, 2005), parece ser igualmente alheia a elementos cronológicos (Davis, 1987), manifestando-se, provavelmente, desde o início das interações humanas. Assumindo a violência doméstica esta componente quasi intemporal, poder-se-á argumentar que uma resposta específica a este fenómeno tardou em surgir, dado que as primeiras casas abrigo contemporâneas datam do início da década de 70 do século passado.

Este processo iniciado nos anos de 1970 parece ser o culminar de todo um movimento de releitura da violência doméstica, agora como um efetivo problema social e não apenas como um efeito colateral de uma dimensão mais individual traduzida num casamento pau- tado pela existência de fatores externos funestos, como ter sorte com o casamento. Não pretendemos aqui refletir sobre os fatores alicerçantes, objetivos e subjetivos, que estive- ram na origem desta definição coletiva, como diria Blumer (1971), da violência doméstica como problema social. Interessa-nos, sim, e fundamentalmente, compreender os elemen- tos que se encontram na génese e qual a tradução institucional desta preocupação sobre o fenómeno da violência doméstica, ou seja, como é que as forças sociais se mobilizaram inicialmente para responder à violência contra a mulher e quais as instituições que edifica- ram.

Uma primeira observação, fundamentada nas características sócio-específicas do ser hu- mano, como defende Norbert Elias (1993), prende-se com a necessidade de se compreen- der o entendimento que se faz, num determinado contexto socio-histórico, da ideologia de género, pois uma análise evolutiva das respostas sociais que, desde o início, se têm preo- cupado com estas questões vitimológicas, permite-nos perceber que estas sempre se afi- guraram como centradas no género. E se, atualmente, a violência doméstica é entendida como um fenómeno relacional complexo e multidimensional, em séculos anteriores (entre

o século XVI e o século XIX, fundamentalmente) era encarada como um problema diminu- to e inserido numa área problemática muito mais abrangente – as mulheres.

De acordo com Sherrill Cohen (1992), as mulheres sempre foram problemáticas para as sociedades ocidentais. O regime predominantemente patriarcal sempre escrutinou, julgou e corrigiu o comportamento feminino quando este se desviava dos caminhos de género androcentricamente estabelecidos. Durante o século XVI e até aos finais do século XIX, o papel da mulher parecia claro e pré-designado entre três possíveis percursos, englobados em duas esferas morais antagónicas: a esfera da virtude, com os caminhos possíveis do casamento (a mulher dedicada à família, enquanto esposa e mãe); e da religião (com a mulher dedicada a Deus, enquanto freira); e a esfera da desviância e do pecado, com a prostituição como resposta possível e provável. Parece-nos ser nesta esfera da desviância que se centram as atenções iniciais dedicadas à mulher. Se a mulher casada parecia não se assumir como problemática, a mulher desprovida de supervisão (controlo masculino), pa- recia revelar-se como um objeto social de extremo interesse interventivo.

A componente moral inerente à desviância parece-nos fulcral neste entendimento e pro- blematização inicial (e por mais camuflado que esteja hoje em dia ainda exerce um papel significativo) pois o princípio do movimento institucionalizador parece encontrar-se inti- mamente relacionado, ainda que não exclusivamente1, com a Reforma Protestante e com o seu contraponto histórico-político – a Contra-Reforma católica (Cohen, 1992).

Com o objetivo de revitalizar a intervenção da Igreja, tornando-a socialmente ainda mais visível/interventiva, estes movimentos católicos centraram as suas atenções no objetivo medieval de reconverter a mulher prostituta, enquanto “mulher caída” (que se prolongou pela Idade Moderna e início da Idade Contemporânea). Este objetivo foi suportado social- mente por questões de saúde pública, resultantes de uma propagação massiva da sífilis na Europa do século XVI, sendo a mulher prostituta o principal agente desta difusão, bem como por uma apropriação sócio-religiosa do caráter destrutivo desta doença, agora en- quanto tradução do pecado individual e comunitário. A sífilis assumiu-se como uma doen- ça particularmente problemática por afetar a genitália, quer feminina, quer masculina, enquanto instrumentos últimos da sexualidade humana, convertendo aquilo que era en- tendido como origem de vida em origem da morte (Foa, 1990). A recuperação da virtude

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Não podemos, naturalmente, ignorar todo um conjunto de forças e de inter-relações entre as dimen- sões política, social, cultural e económica. Contudo, concordamos com Cohen ao defender a estreita relação com a(s) Igreja(s) enquanto elemento basilar do desenvolvimento destas instituições.

feminina tornava-se, então, central ao processo de purificação social, com a higienização sexual como instrumento principal.

A virtude feminina parecia estar bem definida nestes séculos, sendo operacionalizada em questões de poder, com subjugação ao pai e, posteriormente, ao marido, e em questões sexuais, com um papel de recato e de procriação. A desviância maior a este papel de géne- ro era, assim, materializada na mulher prostituta, balizada num rótulo de género particu- larmente elástico (Ruggiero, 1990) onde cabiam um número significativo de desviâncias, todas inversoras do conceito de honra feminina associada à imaculidade da virgem e à fidelidade da esposa. A castidade era a virtude feminina mais valorizada pois, de acordo com a moral da Contra-Reforma, a mulher incasta estaria em perigo de perder todas as outras virtudes, assim como poderia colocar em causa quer a ordem social quer a salvação da alma masculina (Perry, 1992). Apesar de a prostituição assumir, durante alguns perío- dos da história um importante papel social, chegando a ser subsidiada em algumas cidades europeias para evitar “males maiores”, como a sodomia entre homens ou a violação de mulheres respeitáveis (Otis, 1985), sempre assumiu um papel dúbio e dual que mereceu a atenção da Igreja.

É neste contexto que surgem as primeiras instituições direcionadas a mulheres. As respos- tas sociais iniciais pareciam tentar encontrar soluções para as questões de género de en- tão, tentando impor um sentido de moralidade através dos primeiros dispositivos normali- zadores da virtude feminina – os mosteiros e conventos.

De acordo com Cohen (1992), as cidades-estado italianas, por terem características de maior flexibilidade política e social, parecem ter servido de tubo de ensaio para as institui- ções europeias que se seguiram, tendo sido nelas que se desenvolveram as primeiras para mulheres.

Não deveremos entender, naturalmente, que os mosteiros e conventos surgem apenas no século XVI. Estas respostas, já na altura, eram seculares (ainda que tenham conhecido um crescimento significativo nos séculos XII a XIV). Contudo, é no século XVI, que os conventos e mosteiros se assumem como respostas sociais organizadas que, com toda a sua carga simbólica, encorpam o caminho da moralidade e da redenção, assumindo-se como os pri- meiros recetáculos para mulheres que necessitavam de apoio, das quais as prostitutas merecem lugar de destaque, sendo objeto principal, mas não único, da intervenção. É nes- te século que surgem as primeiras respostas de cariz religioso especificamente para mu- lheres prostitutas convertidas, como o Convento de Santi Giacomo e Filippo, conhecido

como Convento das Convertidas (Convento delle Convertite), fundado em 1559, em Firen- ze, Itália (Cohen, 1992), sendo um dos mosteiros medievais mais antigos para penitentes (Ferrante, 1990).

É, contudo, a partir do Concílio de Trento (1545 a 1563), que se começa a verificar uma complexificação nas respostas sociais de apoio a mulheres. Tendo sempre a prostituição como pano de fundo social, verifica-se que as próprias comunidades se começam a organi- zar, desenvolvendo instituições laicas (ainda que, quase sempre, com laços à Igreja), com o objetivo de dar abrigo a mulheres, em estruturas autónomas dos conventos. Um dos exemplos mais famosos, e tido como a primeira resposta para mulheres vítimas de violên- cia doméstica, é a Casa das Mulheres Malcasadas (Casa delle Malmaritate), criada em 1579 em Florença (Deusen, 2001). A criação desta casa esteve inserida numa preocupação social de maiores dimensões, por parte da família Medici, face aos problemas sociais emergentes colocados às mulheres. Tendo como objetivo de fundo a criação de alternati- vas a uma vida de prostituição, Cosimo I e seus filhos criaram cinco abrigos para meninas órfãs ou abandonadas, mas desenvolveram/reformularam três outras instituições que visaram a proteção de mulheres mais velhas: um lar para mulheres idosas (Orbatello), uma casa de transição para mulheres que tentavam sair da prostituição (Casa delle Convertite) e a Casa delle Malmaritate, destinada a mulheres presas a casamentos complicados e vio- lentos (Terpstra, 2010). Apesar de alguma tolerância social a questões de violência domés- tica, uma mulher continuadamente sujeita a situações de violência apresentava grandes probabilidades de fuga de casa, pelo que, devido à inexistência de espaços socioeconómi- cos para mulheres autónomas, de modo quase que inevitável acabaria para enveredar pela prostituição. A Casa delle Malmaritate surge, assim, como o primeiro registo, precur- sor das atuais casas abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica, conjugando o imperativo religioso de manutenção do casamento, com a viabilidade de alternativas para situações familiares disfuncionais.

Mesmo revolucionando os padrões de acolhimento da altura, esta casa acabava por obje- tivar a minimização de um mal menor, traduzida nas palavras da cortesã florentina Veroni- ca Franco:

There are many women that, out of poverty or sensuality or for some other rea- son, lead a dishonorable life... They could easy withdraw from ill-doing if they had some reputable place to repair to, where they might maintain themselves and

their children... Because there is no provision for such cases, they persist in... This abominable crime among others: that women in need sell the virginity of their own innocent daughters. (as cited in Terpstra, 2010, p.25)

Apesar de manter ligações com o clero, a Casa delle Malmaritate apresentava-se como uma instituição laica que oferecia alternativa a mulheres que não pretendiam uma solução de cariz religioso, i.e., enveredar por uma vida de clausura e devoção a Deus. Através de trabalho honesto, esta casa, com a capacidade para 30 mulheres, oferecia abrigo para uma reconstrução da vida da mulher e dos filhos.

Outras casas surgem igualmente neste período como a Casa del Soccorso di San Paolo, fundada em 1589, em Bolonha. Esta casa aceitava mulheres pobres, com má reputação (“mulheres caídas”), mas com desejo de redenção e que, por falta de dote, não poderiam ingressar em instituições monásticas, como o Convento das Convertidas (Ferrante, 1990). O objetivo desta casa era a reintegração na sociedade através do casamento, da conversão à vida religiosa ou de qualquer outro modo honorável (Ferrante, 1990). Apesar de igual- mente dirigida a mulheres que pretendiam abdicar da vida de pecado, a Casa del Soccorso parece inserir-se numa praxis diferenciada face às casas laicas para apoio a mulheres, no- meadamente a nível dos pagamentos iniciais (dotes) para o acolhimento, revelando aquilo que poderíamos considerar uma hierarquia nesta tipologia de respostas. A entrada numa instituição religiosa, sendo mais económica que um dote de casamento, era mais dispen- diosa que o necessário para a admissão numa instituição laica e, mesmo dentro destas, parecia haver alguma disparidade, com a Opera dei Poveri Mendicanti, ainda que não des- tinada exclusivamente a mulheres, como a mais económica (Ferrante, 1990).

As ligações à Igreja, para além de funcionais, espelhavam-se igualmente na gestão quotidi- ana da vida comunal, com um modelo similar aos mosteiros e conventos, pautado por um ambiente de reclusão e austeridade, com a privação de visitas, imposição de silêncio, se- paração do mundo e meditação (Ferrante, 1990), reforçando o papel simbólico da austeri- dade como elemento redentor. As funções dos símbolos em toda esta intervenção inicial é, como veremos, crucial na definição e balizamento do campo de atuação institucional.