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A parte empírica deste trabalho é constituída por dois grandes estudos de natureza metodológica distinta, qualitativa e quantitativa, cuja integração se define por desenho de métodos mistos. Ao utilizar os métodos mistos numa única abordagem, o investigador combina técnicas, métodos, perspectivas, conceitos e linguagens qualitativas e quantitativas (Johnson & Onwuegbuzie, 2004).

O paradigma subjacente à utilização de métodos mistos na investigação emerge da necessidade de se ultrapassar o argumento dicotómico de puristas de ambos os métodos, que defendem a incompatibilidade de integração dos mesmos, inscrevendo assim as opções de natureza metodológica da presente investigação no domínio da filosofia pragmática. Esta filosofia (e.g., Charles Sanders Peirce, William James, John Dewey) advoga que as opções metodológicas da investigação devem relevar da natureza do fenómeno em análise, sendo a combinação de métodos equacionados no sentido de melhor captar o objecto de estudo (Johnson & Onwuegbuzie, 2004). O princípio fundamental dos métodos mistos (Johnson & Turner, 2003, cit. in Johnson & Onwuegbuzie, 2004) emerge precisamente da compreensão

das vantagens e desvantagens inerentes a cada método e da procura por uma abordagem mais compreensiva, porque mais completa relativamente a estudos que privilegiam uma abordagem monométodo. Subjacente à combinação de metodologias qualitativas e quantitativas reside então o conhecimento das suas principais limitações e fragilidades, acreditando-se que o enviesamento introduzido pela escolha de um método poderá neutralizar ou cancelar aquele que é introduzido por outro método (Creswell, 2003). Sinteticamente, as metodologias de carácter qualitativo caracterizam-se na sua generalidade por uma abordagem indutiva, exploratória, de geração de hipóteses, sendo o investigador o principal instrumento de recolha e tratamento de dados (Johnson & Onwuegbuzie, 2004). Algumas das vantagens deste método residem no facto de os dados emergirem das próprias categorias de significado dos participantes e permitirem a proximidade de forma aprofundada ao fenómeno em estudo, sendo passíveis de captar processos mais complexos (Johnson & Onwuegbuzie, 2004), nomeadamente no que se refere a domínios mais descurados da investigação dos processos e resultados na psicoterapia (Hill & Lambert, 2004).

As principais desvantagens prendem-se com a generalização dos resultados a outros indivíduos e settings, dificultando assim o poder preditivo dos resultados, e com o facto da análise dos mesmos ser um processo demorado e mais sujeito ao viés inerente a características idiossincráticas do investigador (Johnson & Turner, 2003), que subsequentemente se pode manifestar na dificuldade em determinar a validade e a fidelidade dos dados e dos juízes (Hill & Lambert, 2004). Esta última desvantagem merece-nos, contudo, uma atenção particular, na medida em que pensamos não ser exclusiva das metodologias qualitativas, sendo para nós, tal como refere Onwuegbuzie (2002), uma falsa questão da ciência o argumento veiculado por positivistas modernos da necessidade exclusiva de recurso a métodos objectivos (como sendo a metodologia quantitativa) na verificação e falsificação do conhecimento científico. Isto porque a subjectividade e a intersubjectividade são processos inerentes à produção de conhecimento do ser humano e qualquer processo de investigação implica escolhas de carácter não objectivo, tais como a escolha do objecto de estudo, a selecção e construção de instrumentos que procurem captar o fenómeno que o investigador identifica como sendo central no seu estudo, a escolha de testes estatísticos e

alpha ou de p. ou mesmo a valorização da magnitude de efeito), a decisão de quais os resultados a enfatizar, nomeadamente em publicações, a interpretação dos resultados e as conclusões a retirar (Johnson & Onwuegbuzie, 2004). Por isso mesmo, advogamos que toda a produção de conhecimento, nomeadamente no que respeita à produção de conhecimento científico, implica uma leitura crítica que nos permita, tanto quanto possível, analisar as implicações das nossas limitações e deformações epistemológicas, para que as possamos contornar ao longo do processo de investigação e para que sejam de forma transparente devolvidas à comunidade científica enquanto linhas delimitadoras na compreensão do objecto de análise. Será do desenho destas limitações que emerge precisamente o potencial evolutivo da ciência, tal como refere Edgar Morin (1995):

O conhecimento é sempre tradução e construção. Daí resulta que toda a observação e toda a concepção devem incluir conhecimento do observador que concebe. Não há conhecimento sem auto-conhecimento (...) O conhecimento do conhecimento permite reconhecer as fontes da incerteza do conhecimento e os limites da lógica dedutiva-identitária. O surgimento de contradições e antinomias em um desenvolvimento racional nos assinala as camadas profundas do real. (p.201)

Fischer (2009), no mesmo sentido, fala-nos da necessidade dos investigadores no uso de bracketing, que traduzimos por parentesear, e que habitualmente se caracteriza pela identificação por parte do investigador de experiências pessoais, factores culturais e pressupostos subjectivos que poderão influenciar a forma como o investigador significa os resultados do seu estudo. O autor fala-nos da necessidade de estender a utilização desta técnica, em nosso entender postura, a todo o processo de investigação, não se restringindo apenas à interpretação dos resultados. Apesar de ter especificado o uso da técnica do parentesear (bracketing) nas abordagens qualitativas, o autor refere que a sofisticação da investigação, quer no domínio qualitativo, quer quantitativo, beneficiaria da abordagem reflexiva e hermenêutica. Pensamos por isso que, apesar das abordagens qualitativas implicarem diferentes processos de validação dos resultados, a competência reflexiva do investigador é um determinante contributo para a evolução da ciência, seja ela no domínio

das ciências exactas ou humanas, ou nas metodologias quantitativas e qualitativas. Também neste domínio destacamos o contributo de Bowlby (1988):

In this day to day work it is necessary for a scientist to exercise a high degree of criticism and self criticism: and in the world he inhabits neither the data or the theories of a leader, however admired personally he may be, are exempt from challenge and criticism. There is no place for authority (p. 43).

Feito este parêntesis, retornemos às especificidades das metodologias, neste caso quantitativas. As vantagens inerentes às metodologias quantitativas prendem-se precisamente com a possibilidade de testar e validar teorias sobre um determinado fenómeno, replicar resultados junto de diferentes populações e sub-populações (Johnson & Onwuegbuzie, 2004), e compreender num grau mais preciso a relação entre determinadas variáveis e o seu poder na determinação dos resultados. É também um método mais rápido e menos dispendioso. As desvantagens prendem-se com o enviesamento confirmatório subjacente a esta metodologia, dado o enfoque na testagem de teorias e de hipóteses, escamoteando desta forma a emergência de fenómenos não considerados no desenho do estudo. O conhecimento produzido poderá revelar-se também bastante difícil, porque abstracto, aquando da aplicação a contextos, realidades e indivíduos específicos (Johnson & Onwuegbuzie, 2004).

Uma variação das metodologias quantitativas, também contemplada no presente trabalho, prende-se com a investigação orientada para a descoberta (discovery-oriented) ou exploratória, que consiste na construção por parte dos investigadores de medidas específicas a serem utilizadas na investigação (Hill & Lambert, 2004). A construção de novas medidas permite que os investigadores acedam ao fenómeno em análise sem ideias pré-concebidas (Hill & Lambert, 2004) que possam implicar algum viés na forma como o objecto de estudo é observado e captado. As desvantagens emanam também do facto de se tratar de novas lentes, impossibilitando a agregação dos resultados entre estudos e a sua comparação.

Tendo em conta as especificidades inerentes a cada uma das metodologias supracitadas e a preocupação que é transversal no presente trabalho de adoptarmos uma perspectiva

vectores orientadores da presente investigação, que correspondem aos 3 desafios actuais da investigação em psicoterapia enunciados por Muran (2009).

Um primeiro vector relaciona-se com a pluralidade metodológica, ou seja, com a opção de abordarmos o objecto de estudo, representações do psicoterapeuta sobre as implicações das suas características pessoais e profissionais na prática clínica, utilizando uma metodologia mista de investigação, dado constituir-se enquanto tema negligenciado na investigação em psicoterapia, tal como já havíamos referido anteriormente (Garfield, 1997). Daí resulta, por isso, a relativa inexistência de um corpo consistente e coerente de investigação que, autónomo dos modelos teóricos de intervenção, ofereça um quadro conceptual compreensivo e nos permita uma abordagem não exploratória ao tema. Surge como consequência deste estado da arte, o escasso investimento em instrumentos, quer de natureza qualitativa, quer quantitativa, que permitam a captação e o estudo do fenómeno em análise. Assim, optámos por recorrer a um procedimento de métodos mistos sequencial, que se caracteriza pela existência de dois momentos de recolha de dados com recurso a metodologias distintas, sendo que ambos adquirem igual estatuto no processo de investigação. Os dois momentos respondem, portanto, a questões de investigação diferenciadas do estudo, sendo que num primeiro momento a escolha por uma abordagem qualitativa se prende com o facto de ser o método considerado como sendo mais eficaz, quer em fases exploratórias do processo de investigação (Patton, 1990), quer na identificação de variáveis pouco referenciadas pela literatura (Stern, 1980), quer ainda na obtenção de dados sobre fenómenos complexos tais como sentimentos, processos cognitivos e emoções, difíceis de apreender através de metodologias de investigação mais convencionais (A. Strauss & Corbin, 1990). Os dados recolhidos neste primeiro momento inspiraram o desenho do estudo subsequente de cariz quantitativo em três níveis de análise:

(i) na delimitação e caracterização das especificidades do objecto de estudo a privilegiar no segundo momento de recolha, dado a panóplia e a complexidade de variáveis emergentes aquando do primeiro momento de recolha;

(ii) na selecção e desenho de instrumentos a utilizar na captação das variáveis em análise, dado o exaustivo investimento realizado neste domínio;

(iii) na selecção do enquadramento teórico a privilegiar na compreensão dos dados. No entanto, a integração destes dois momentos não se verificou apenas aquando do desenho metodológico da presente investigação, mas também na compreensão e interpretação dos dados. Verificamos, portanto, que os dois momentos, apesar de terem um destaque claramente diferenciado ao longo do processo de investigação, são chamados a dialogar num movimento dedutivo e indutivo em diversos momentos do processo de investigação, nomeadamente na compreensão e interpretação dos resultados, algo que procuraremos devolver ao longo do presente capítulo. Da reflexão desta dialéctica emerge também a apreensão dos nossos limites epistemológicos enquanto investigadores na observância do objecto estudado, assunto que teremos oportunidade também de retomar mais à frente. Num segundo momento, foram utilizadas metodologias quantitativas de forma a captar o fenómeno em análise num grupo mais extenso e heterogéneo de participantes. O objecto de estudo torna-se mais específico na medida em que procuramos captar as dimensões da história pessoal, desenvolvimental e profissional do psicoterapeuta que concorre para explicar um estilo particular de intervenção psicoterapêutica, designadamente, e entre outros aspectos, o modo como estabelece e significa a relação psicoterapêutica. É também neste segundo momento que adoptamos como referencial teórico a teoria da vinculação (Ainsworth & Bowlby, 1991; Bowlby, 1979, 1988), dado o seu contributo na problematização de aspectos centrais da história desenvolvimental do psicoterapeuta e das suas implicações para a construção da relação psicoterapêutica (Matos, no prelo).

Este enquadramento teórico consubstancia-se em si mesmo, como dizem Waters e Cummings (2000), enquanto plataforma de base segura na exploração dos resultados da presente investigação, dado o seu enfoque obedecer a uma lógica integrativa e relacional, demarcando-se assim de perspectivas herméticas e conceptualizações fechadas. Contexto para nós incontornável na emergência de leituras compreensivas.

Like a secure attachment, a well-formed scientific theory encourages exploration, organizes experiences, and helps one work effectively under uncertainty. In a era dominated by domain scientific theory, the Bowlby-Ainsworth tradition is a rare example of a more general and “grand theory” that makes prediction about

behavior and emotion across multiple domains of psychological functioning and across the life span. (Waters & Cummings, 2000, p. 164)

Um segundo vector norteador da presente investigação contempla o desafio de Muran (2009) de se considerar a subjectividade no campo mais geral de investigação em psicoterapia. Relevamos a subjectividade, visto que a desvalorização da pessoa do psicoterapeuta enquanto objecto de estudo passa pela tecnocracia da representação da prática psicoterapêutica, ou seja, pelo facto da investigação se centrar no estudo das terapias enquanto conjunto de métodos, técnicas e procedimentos, que são eficazes por si só no tratamento de desordens psicológicas e psiquiátricas, escamoteando assim o papel de características relacionais e pessoais dos psicoterapeutas (Orlinsky & Rønnestad, 2005). O estudo integral do psicoterapeuta e a subjectividade implicam que se amplie as potencialidades das características profissionais e pessoais do psicoterapeuta e que se ultrapasse o reducionismo das suas implicações unicamente às suas escolhas teóricas. Assim, sublinhamos a importância da prática acumulada e reflectida dos psicoterapeutas na presente investigação, nomeadamente quando procuramos, através das entrevistas com psicoterapeutas experts, relevar representações das experiências pessoais e profissionais significadas como tendo impacto na prática psicoterapêutica ao longo de todo o processo que caracteriza o tornar-se psicoterapeuta. Procuramos, assim, através da subjectividade, aproximar a investigação da prática clínica, diversificando mais uma vez as possibilidades metodológicas da presente investigação. Como refere Goldfried (2000), é precisamente da intersecção entre prática e investigação que emerge o material mais consistente e significativo aquando do estudo da psicoterapia.

Psychotherapy research and clinical practice both focus on the same phenomena, but do so from very different methodological vantage points. To the extent that they arrive at comparable conclusions, the resulting findings are likely to be quite robust. It is here that we should look to our core. (p. 15)

O terceiro vector, a contextualização, último dos desafios propostos por Muran (2009), releva da subjectividade anteriormente enunciado e prende-se com a preocupação transversal de integrar dimensões da história pessoal e profissional na compreensão das representações da

prática psicoterapêutica. Na figura abaixo, encontra-se graficamente representado o desenho metodológico do presente doutoramento. Verificamos, no primeiro momento metodológico de cariz qualitativo, o enfoque na intersecção entre dimensões pessoais, desenvolvimentais e profissionais, na compreensão de variáveis inerentes à prática clínica, tais como experiências mais relevantes no desenvolvimento do psicoterapeuta e principais mudanças nas representações da prática e do papel enquanto psicoterapeutas. Aqui, este espaço integrativo emerge de um processo espontâneo de construção narrativa de 20 psicoterapeutas experts. Numa etapa intermédia entre os dois momentos, optou-se por operacionalizar a intersecção das dimensões pessoais e profissionais numa variável dependente - representações do psicoterapeuta enquanto figura de base segura. Trata-se de um construto, como teremos oportunidade de desenvolver posteriormente, cujo enquadramento teórico compreende dimensões profissionais e pessoais no estudo das implicações do psicoterapeuta na prática clínica. Num segundo momento de cariz quantitativo, é através do recurso a uma abordagem estatística (alargamos o estudo a uma amostra mais alargada de psicoterapeutas) que procuramos estudar o contributo de variáveis independentes relacionadas com a dimensão profissional (e.g., anos de experiência, satisfação com a prática, orientações teóricas), pessoal (e.g., sexo, idade) e desenvolvimental (e.g., história de vinculação, regulação emocional) nas variáveis anteriormente operacionalizadas, ou seja, na forma como o psicoterapeuta se representa enquanto figura de base segura para os seus clientes.

Por último, importa sublinhar que o presente processo metodológico contempla apenas as representações dos psicoterapeutas acerca da sua prática clínica, sendo que os dados devem ser sempre analisados sobre este enquadramento, não tendo, portanto sido reportados dados de clientes ou observadores externos. Como podemos ver na figura 6, num primeiro momento, foi utilizada uma abordagem fenomenológica para aceder às representações retrospectivas dos psicoterapeutas, o que implica também a possibilidade de enviesamento subjectivo emergente da construção de significados atribuídos ao percurso desenvolvimental e a desejabilidade social pelos psicoterapeutas, dado o não anonimato entre investigador e participante. Num segundo momento, foi utilizada uma abordagem transversal no sentido de compreender as implicações de traços e estados observáveis e inferidos nas representações de

procuramos características relacionais e de intervenção mais estáveis, escamoteando pois as especificidades inerentes às dinâmicas relacionais que caracterizam a irrepetibilidade do encontro psicoterapêutico.

Figura 6. Desenho metodológico da investigação, metodologia mista

Concluído o desenho das delimitações metodológicas, iniciaremos o capítulo referente à parte empírica de todo este processo de investigação, conscientes, no entanto, que a maior (de)limitação do conhecimento emerge precisamente da sua natureza ser inevitavelmente humana.

L'homme est l'être qui ne peut sortir de soi, qui ne connaît les autres qu'en soi, et, en disant le contraire, ment.

Capítulo III