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Capítulo II A Teoria da Vinculação e a Psicoterapia

3. Aplicação da Teoria da Vinculação ao Contexto da Psicoterapia

3.2. Psicoterapeuta: uma figura de vinculação?

Kobak e Shaver (1987, cit in Farber, et al., 1995) defendem numa comunicação que o estado de stress emocional, que normalmente acompanha o cliente quando este procura ajuda profissional, surge como contexto natural para que o terapeuta se constitua como figura de vinculação.

Num artigo bastante referenciado de Farber, Lippert e Nevas (1995), The therapist as attachment figure, os autores advogam as múltiplas comunalidades entre a vinculação parental na infância e a relação psicoterapêutica, nomeadamente no que se refere à significação do terapeuta enquanto objecto de afecto intenso durante a formação, desenvolvimento e término da relação psicoterapêutica. No entanto, os autores referem que, apesar de o terapeuta se poder constituir para os clientes enquanto figura de vinculação, mesmo depois do término da terapia, existem importantes diferenças entre a díade psicoterapêutica e a relação de vinculação na infância no que concerne principalmente às fronteiras temporais, logísticas, éticas e financeiras que caracterizam a relação psicoterapêutica. Adicionalmente,

no próprio sentido de identidade e de vida dos seus pais e que este facto imprime claramente uma diferenciação em relação ao papel do terapeuta.

(...) it probably makes a huge difference that parents are usually genetically invested in their children, and each of their children plays an enormous role in their own sense of significance and self-worth. For a therapist, although each client clearly does and should matter to therapist’s sense of significance and well-being, the investment in any particular client is not likely to be as intense or prolonged as a parent’s investment in a child. (p. 411)

Para Dozier e Tyrrell (1998), o terapeuta é talvez um exemplo prototípico de uma figura de vinculação na adultícia, sendo uma relação não recíproca e, por vezes, mais difícil que a relação mãe-filho, dada a experienciação precoce da não disponibilidade e rejeição das figuras de vinculação primárias41. Os modelos internos dinâmicos construídos sobre uma

história de rejeição e de não disponibilidade dos caregivers primários poderão ser projectados numa percepção do terapeuta enquanto figura rejeitante e não empática (Dozier & Tyrrell, 1998). Assim, tal como supracitado, uma das tarefas cruciais na terapia para a revisão dos modelos internos dinâmicos é a exploração do cliente da própria relação que estabelece com o terapeuta. As diferenças enunciadas entre a relação psicoterapêutica e a relação mãe-filho são de uma importância central na definição do papel do terapeuta no contexto da teoria da vinculação, na medida em que se pretende que o terapeuta regule o distanciamento emocional (Mallinckrodt, Daly, & Wang, 2009), enquanto técnica relacional correctiva que permita o desafio de estruturas relacionais de significado como são os modelos internos dinâmicos. Tópico que retomaremos mais adiante.

Mais recentemente, diversos desenvolvimentos teóricos e empíricos no domínio da teoria da vinculação vêm corroborar a ideia de que a relação psicoterapêutica partilha

41 A não reciprocidade patente na definição de Dozier e Tyrrel (1998) releva a natureza diferenciada desta

mesma relação comparativamente com as relações de vinculação estabelecidas na infância com as figuras parentais e na adultícia com o par romântico.

importantes semelhanças com a relação de vinculação que se estabelece na infância com a figura de vinculação, a saber:

(i) Porto seguro e protesto de separação. Geller e Farber (1993) constatam que os clientes tendem a recordar os seus psicoterapeutas quando experienciam sentimentos de grande sofrimento emocional, sendo que num outro estudo (D. L. Rosenzweig, Farber, & Geller, 1996) se verifica que estes mesmos pensamentos tendem a desencadear sentimentos de protecção, de conforto e de segurança. Num estudo de Barchat (1989, cit. in Farber, et al., 1995), que se debruçou sobre as consequências da separação dos clientes e psicoterapeutas nos períodos de férias, intitulado de fenómeno de Agosto, observou que os clientes mencionam sentimentos de raiva, desconfiança, abandono, e portanto exibem o protesto de separação independentemente dos seus padrões de vinculação, ainda que se verifiquem diferenças a nível da expressão de acordo com o padrão de vinculação dos clientes: enquanto clientes com um padrão ansioso-evitante questionam a continuidade da terapia depois do regresso do terapeuta, os seguros tendem a exprimir e a discutir o quão vulneráveis se sentiram perante a separação.

(ii) O terapeuta enquanto figura forte e sábia (stronger and wiser). Num estudo realizado por Parish e Eagle (2003), 150 clientes (em processo psicoterapêutico de orientação psicanalítica há pelo menos 6 meses) preencheram o Component Attachment Questionnaire (CAQ)42 para a figura do terapeuta e para a sua figura de vinculação

actual. Adicionalmente, os clientes preencheram também o Relationship Style Questionnaire (RSQ, Bartholomew & Horowitz, 1991)43. Neste estudo identificamos

42 O Component Attachment Questionnaire é um questionário de auto-relato com 45 itens, baseado em 9

componentes da vinculação, a saber: procura de proximidade; protesto de separação; base segura; porto seguro; figura forte e sábia; disponibilidade; emoções fortes; carácter único (insubstituível); representação mental (Parish, 2000).

43 O Relationship Style Questionnaire é uma medida de auto-relato amplamente utilizada na investigação no

domínio da vinculação e que consiste no posicionamento face a 4 parágrafos descritivos de 4 estilos de vinculação, a saber: seguro, amedrontado, preocupado, e desligado. Este questionário permite uma abordagem

três resultados que poderão oferecer importantes contributos para a compreensão dos processos de vinculação presentes na psicoterapia. O primeiro resultado deve-se ao facto de 5 dos 150 clientes terem sido excluídos da análise por identificarem o terapeuta como sendo a figura de vinculação primária, impossibilitando assim a sua comparação. Num segundo resultado, os autores apontam claramente para o facto dos psicoterapeutas serem significados pelos clientes enquanto figuras de vinculação, dado que os scores de todas as componentes do CAQ se encontravam acima do ponto médio, quer para os psicoterapeutas, quer para as figuras de vinculação primárias (à excepção do protesto de separação para os psicoterapeutas). Verificaram-se, no entanto, dois padrões de interacção diferencial. A primeira prende-se com diferença entre os padrões seguro e desligado, no que se refere às componentes de vinculação. Assim, observaram-se correlações positivas entre o padrão seguro e a medida geral de vinculação (somatório de scores de todas as componentes), a procura de proximidade, a base e porto seguro e a disponibilidade da figura, e correlações negativas entre o padrão desligado e precisamente a medida geral de vinculação, a procura de proximidade, base e porto seguro, a disponibilidade e emoções fortes. Ademais, a frequência e a duração das sessões estavam associadas à medida geral de vinculação, sendo que a duração da terapia se associava positivamente com o padrão seguro e negativamente com o padrão amedrontado e desligado. O segundo padrão de interacção diferencial prende-se com o facto de se verificarem diferenças significativas na maioria das componentes identificadas, incluindo a medida geral de vinculação, apenas quando a primeira figura de vinculação enunciada é o par romântico. Assim, no caso em que a primeira figura de vinculção enunciada é um amigo ou familiar, não se verificam diferenças entre as componentes de vinculação no que respeita à primeira figura e o

parágrafo que melhor caracteriza os seus sentimentos nas relações de proximidade e, por outro, é pedido que os respondentes se posicionem em cada um dos parágrafos numa escala de 1 a 5. Esta abordagem permite assim que a avaliação da vinculação ultrapasse a escolha forçada de um padrão e possibilite a complexificação na avaliação da vinculação, através da possibilidade de combinação dos diferentes estilos para uma compreensão idiossincrática da especificidade da vinculação em cada indivíduo.

psicoterapeuta. Num terceiro resultado, os autores constataram que os clientes pontuaram mais em duas componentes do CAQ, - figura forte e sábia e disponibilidade - para a figura do terapeuta do que a figura de vinculação primária, sendo que na componente base segura não se verificaram diferenças significativas. Apesar dos resultados nos indicarem a presença de componentes da vinculação na relação psicoterapêutica, mormente no que se refere à representação do psicoterapeuta enquanto figura forte e sábia e na disponibilidade, estes resultados devem ser interpretados com algum cuidado e à luz de características dos clientes e de especificidades inerentes ao próprio processo psicoterapêutico, por exemplo a duração do mesmo. Mais à frente retomaremos a discussão destes resultados.

(iii) Associação positiva entre representação do psicoterapeuta enquanto base segura (aferida através do Service Attachment Questionnaire - SAQ)44 e os resultados da terapia.

Num estudo realizado por Goodwin, Holmes, Cochrane e Madson (2003), com 154 clientes de Serviços de Saúde Mental do Reino Unido, os autores verificaram que a percepção do serviço enquanto contexto de base segura estava associada à sua satisfação face aos resultados da terapia. Note-se, no entanto, que este resultado baseia-se apenas nas representações dos clientes, não existindo uma medida de avaliação de eficácia psicoterapêutica alternativa que possibilitasse a compreensão da possível inferência de efeitos de desejabilidade social ou de possíveis efeitos halo dado que todos os clientes se encontravam nesse momento a beneficiar de acompanhamentos nos mesmos serviços de saúde.

Apesar de os estudos serem ainda escassos e apresentarem algumas limitações metodológicas, nomeadamente no que se refere ao uso exclusivo de abordagens transversais

44 O Service Attachment Questionnaire SAQ (Goodwin, Holmes, Cochrane, & Mason, 2003) consiste numa

medida de auto-relato com 25 itens que se centra nas representações dos clientes sobre: (1) sentirem-se ouvidos durante o processo psicoterapêutico, (2) a confiança da continuidade e na consistência da relação psicoterapêutica (3) a confiança no apoio social mesmo depois de terminado o processo psicoterapêutico, (4) a percepção de um ambiente seguro e não castrador e restritivo, 5) a confiança na criação de relações de apoio incondicional e que não imponham juízos de valor e na percepção de não estigmatização e

numa perspectiva unicamente representacional do cliente, apontam para a possível presença de componentes da vinculação na relação psicoterapêutica. No entanto, parece-nos não ser consensual que a relação psicoterapêutica por si só se possa assumir enquanto relação de vinculação e o psicoterapeuta enquanto figura inequívoca de vinculação.

Bowlby (1988), em A Secure Base, estabeleceu um importante paralelismo entre as figuras de vinculação primárias e o terapeuta no que consiste em providenciar uma base e um porto seguro. Embora Ainsworth (1991) nos fale da possibilidade do psicoterapeuta se constituir enquanto figura de vinculação, attachment figures cast in the parental mold might be mentors, priests or pastors, or therapists (p. 36), expressa, no entanto, alguma relutância no que concerne à persistência da vinculação com estas figuras, cuja relação é muitas vezes limitada em termos temporais (Schuengel & van Ijzendoorn, 2001). Congruentemente, no estudo de Parish e Eagle (2003) supracitado, verificámos a associação positiva entre a duração do processo psicoterapêutico e a percepção da medida geral de vinculação ao terapeuta, assim como uma associação positiva entre as componentes de vinculação na relação psicoterapêutica com clientes que exibiam estilos de vinculação seguros e associação negativa com estilos de vinculação desligados. Este resultado poderá sugerir que a duração do próprio processo psicoterapêutico, tal como as características de personalidade e a história relacional de vinculação dos clientes, poderão constituir importantes contributos na compreensão da relação psicoterapêutica à luz da teoria da vinculação.

Para Weiss (1991) a definição de relação de vinculação é inerente às próprias características da díade em relação, independentemente de se tratarem de relações parentais, amorosas ou terapêuticas:

Not all pair bonds, relationships of adults and their parents, relationships of patients to therapists, and parental relationships are attachments, nor is impossible for friendships, work relationships, or kin ties to be attachments. However, some of these relationships are likely to be attachments, others unlikely. The question is wether the relationship displays attachment properties. (p. 67)

Baseado nas características da vinculação no adulto por West e Sheldon (1994)45,

Mallinckrodt (2000) considera que, apesar de nem todos os processos psicoterapêuticos implicarem relações de vinculação, quando o cliente se envolve emocionalmente num processo psicoterapêutico esta relação é passível de reproduzir processos de vinculação do adulto.

(…) if psychotherapy is a form of attachment, the relationship will be influenced by (a) both the client’s and therapist’s memories of past attachments, (b) expectations about how self and other will behave in the therapeutic relationship, (c) strategies for maintaining goals in the therapeutic attachment, and (d) strategies for regulating distress when the goals are frustrated (Mallinckrodt, p. 251)

Parece-nos assim que, dada a complexidade e a variabilidade de conjugação relacionais da díade psicoterapêutica, a utilidade da aplicação da teoria da vinculação à psicoterapia não se reduz à definição inequívoca de se considerar todas as relações psicoterapêuticas enquanto relações de vinculação. Ao invés, oferece-nos um quadro teórico compreensivo das características relacionais dos clientes que contribuem para a representação do terapeuta enquanto figura empática, de apoio incondicional e desafio, em síntese de base segura.