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63 “Ofício n. 21 de José Maria da Silva Bitancourt para o Ministro da Guerra Manoel da Fonseca Lima e Silva,

em 31 de março de 1836.” AN-IG5 2 – Série Guerra/Fundo Fábricas.

Bitancourt, indignado, partilha com o ministro seu descontentamento com os livres assalariados, que novamente foram afastados.

Um tal acontecimento mostra bem até que ponto tem chegado o espírito de vertigem, incutido, e exacerbado, pelas insinuações de pessoas mal intencionadas, e ambiciosas, a quem nem tem escapado este retirado estabelecimento; mas asseguro a V. Exa. que não contemporizo com tais atos, nem com tais homens que me temem contas; porém só as darei a quem mais dever tomar, e jamais aos meus súditos. Se eles fossem militares eu os teria feito entrar depressa nos seus deveres.65

Tensões deste tipo certamente contribuíram para a adoção, duas décadas depois, de trabalhadores militarizados ao invés do investimento em civis livres e assalariados, quando pensaram em substituir os escravos e tutelados. Como dizia o diretor, “se eles fossem militares eu os teria feito entrar depressa nos seus deveres”, já que estariam sujeitos às regras e sanções próprias das organizações militares. Veremos, contudo, que as aspirações de Bitancourt não se deram exatamente como planejava, pois até mesmo os soldados se insubordinavam.

Os cuidados com a vigilância da pólvora deveriam ser tarefa dos soldados, mas a fábrica nunca recebeu número suficiente deles, a julgar pela quantidade de requisições de militares pela diretoria, encontrados em vários dos ofícios consultados. Desta forma, contar com os operários livres era a saída para evitar extravios e apropriações, sobretudo por parte dos trabalhadores compulsórios.

Quanto à vigilância e subordinação de escravos da nação e africanos livres, como já afirmamos, também eram tarefas de livres. Os feitores exerciam papel crucial nos momentos em que estes trabalhadores retiravam-se de seu serviço nas oficinas ou, mais diretamente, nos serviços da fazenda da fábrica e cortes de madeira para o carvão.

Ao menor sinal de “agitação”, como se referiam os administradores, um destacamento de soldados encarregados da vigilância era acionado, e junto deles os operários civis. Todos se mobilizavam com o fim de prevenir possíveis revoltas, por isso tanto uns, como outros, deveriam ser de confiança da administração. Um exemplo bem claro deu-se quando o Juiz de Paz do distrito de Inhomirim, Vicente José de Almeida Vidal, comunicou ao diretor José Maria Bitancourt que havia suspeitas de insurreição dos negros da fábrica. Nesta ocasião, o diretor tomou as medidas cabíveis para evitá-la, “revistando todas as senzalas dos escravos do estabelecimento, à meia-noite de domingo, quando eles não esperavam”.66 As suspeitas, porém,

65 Ofício n. 21. Op. cit. Grifos nossos. 66

“Ofício de José Maria da Silva Bitancourt para o Ministro da Guerra Manoel da Fonseca Lima e Silva, em 22 de dezembro de 1835.” AN-IG5 1 – Série Guerra/Fundo Fábricas. Em dezembro de 1835, às vésperas de

não se confirmaram, mas o diretor ressalvou que tinha “ordenado que todos os empregados estejam prontos a comparecerem armados a um dado sinal, a fim de abafar qualquer tentativa.”67

Em 1838, a diretoria voltou a suspeitar de rebelião, de novo sem fundamento. Mas, como na primeira vez, “forçoso se fez que os empregados do estabelecimento o guardassem e rondassem durante a noite”, o que gerava outro problema, pois os tornava “incapazes de servir nas oficinas durante o dia”. Desta forma, reforçava o pedido de militares, pois, naquele momento, a fábrica contava somente com “quatro soldados e um cabo de esquadra e, no depósito, um alferes e sete soldados, quase todos estropiados”.68

Além de observar os trabalhadores compulsórios na sua lida diária, os operários livres das oficinas deveriam também acudir nos momentos de tensão e suspeita de insurreições e rebeliões. E, pelo que indicam as nossas fontes, estes modos de disciplina e controle parecem ter tido efeito, pois, com a exceção de uma rebelião de escravos da nação ocorrida em 1833, não houve mais nada neste sentido que não fossem simples suspeitas.69 Notamos outras

formas de resistência e indisciplina entre os escravos e africanos livres que, às vezes, ganhavam aliados antes tidos como “inusitados”. No mês de agosto de 1849 o escravo da nação Aleixo “recusou-se” a carregar os sacos com farinha de mandioca na lancha da fábrica e, segundo o fiel Manoel Bento da Silva, “passou a insultar o patrão da mesma lancha Francisco Antônio a ponto de se querer atracar com ele.”.70 Na querela contra o patrão, o soldado de artilharia

Martins José Lagoa, que fazia a guarda no local, ao invés de apaziguar a briga juntou-se ao escravo e chamou seus companheiros para colaborar. Não sabemos se o patrão se livrou das investidas do escravo e do soldado mas, dias depois, Aleixo foi severamente punido com

completar um ano da Revolta malê na Bahia o governo e os senhores precaviam-se em toda parte do Império para evitar uma nova guerra contra os escravos. João José Reis aborda a questão no seu: João José Reis.

Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês. São Paulo: Brasiliense, 1986.

67 Idem.

68 “Ofício de José Maria da Silva Bitancourt para o Ministro da Guerra Sebastião do Rego Barros, em 04 de

maio de 1838.” AN- IG5 2 – Série Guerra/Fundo Fábricas.

69 Em janeiro de 1833, 53 escravos da nação requisitavam à diretoria que eles tivessem folga aos domingos e

aumentos nas rações diárias. Como a diretoria não atendeu à primeira das exigências, eles iniciaram uma revolta. Prontamente o diretor mandou chamar o destacamento que estava no depósito de Inhomirim para sufocar a revolta. Após a identificação dos “líderes”, eles foram surrados publicamente para servir de exemplo aos outros. “Ofício do diretor João Vicente Gomes para o Ministro da Guerra, Antero José Ferreira de Brito, em 25 de janeiro de 1833.” AN- IG5 1 – Série Guerra/ Fundo Fábricas.

70

“Ofício n. 96 do diretor João Carlo Pardal para o Ministro da Guerra Jerônimo Francisco Coelho, de 10 de agosto de 1844.” AN-IG5 4 – Série Guerra/Fundo Fábricas.

castigos físicos, e o soldado foi removido para o corpo de origem na Corte “para ser castigado.”

Outros episódios de fuga, como a do africano livre Leôncio, em 1840, revelavam as resistências destes trabalhadores em permanecer na fábrica71. Houve ainda o caso de um grupo

de sete africanos livres e cinco escravos da nação que foram presos na cadeia de Vila Inhomirim por “serem encontrados em danças na casa de negócios de Feliciano Gomes de Albernaz, que fica pouco distante desta fábrica72. Segundo o diretor interino Luiz Guilherme

Wolff, eles saíram das senzalas “após as revistas incertas, escapando-se às vistas das patrulhas com que se policia o estabelecimento”. Freqüentemente, na leitura dos ofícios, encontramos referências negativas e pedidos de remoção destas casas da localidade.

A resistência dos trabalhadores em se sujeitar às severas normas de uma instituição fabril militar, tanto livres como escravos e africanos livres, provavelmente influenciou na escolha de substituí-los por artífices militares durante as reformas de 1865 e 1860. Ao discurso sobre os custos de sustento e vigilância dos compulsórios e dos salários dos livres, somava-se a vontade do Estado de contar com trabalhadores militares. Estes davam maior possibilidade de sujeição e obediência do que os livres. Para comandar os artífices, havia um capitão no interior da própria companhia. Neste momento, observamos que a hierarquização e a disciplina do estabelecimento faziam-se, mais do que nunca, sob as regras e códigos militares.

Entretanto, ainda que o sistema militar fosse, em tese, mais eficaz para manter a disciplina dos artífices, não conseguiu evitar outros problemas, sobretudo na década de 1860, quando eles eram mais numerosos na fábrica. Encontramos ofícios em que a diretoria solicitava a substituição de alguns soldados artífices por “relaxamento”, “insubordinação”, “insolência”, “má conduta” e tantos outros adjetivos que denunciavam a resistência deles para os serviços públicos. Houve um episódio em que o diretor Gabriel Militão de Villanova Machado oficiou ao ministro Sebastião de Rego Barros a briga de dois soldados “tidos como capoeiras”, na madrugada de 10 de maio de 1860.73 O projeto de controle e dominação sobre

71 “Ofício número 37 do diretor João Carlos Pardal para o ministro da Guerra José Clemente Pereira, de 19 de

maio de 1841.” AN- IG5 2 – Série Guerra/Fundo Fábricas

72 “Ofício número 87 do diretor Luiz Guilherme Wolff para o ministro da Guerra João Paulo dos Santos

Barreto, de 20 de junho de 1848.” AN- IG5 4 – Série Guerra/Fundo Fábricas.

73

“Ofício do diretor Gabriel Militão de Villanova Machado para o ministro da Guerra Sebastião do Rego Barros, de 11 de maio de 1860.” AN- IG5 8 – Série Guerra/Fundo Fábricas

os trabalhadores militares não saiu exatamente como planejavam aqueles que substituíram parte dos escravos, africanos livres e livres assalariados.

Isto se relacionava às condições de recrutamento destes indivíduos “escolhidos” para incorporar as fileiras do Exército. Os alvos preferidos pela polícia, autoridades judiciais e provinciais eram os homens livres, solteiros, sem ofício ou profissão definida, especialmente os de cor branca ou parda e que tivessem idade entre 18 e 35 anos.74 Somava-se à indisposição

destes soldados para o serviço militar, como vimos, o medo de trabalhar com explosivo e a distância da Corte.

2.5 – Condições de vida e trabalho na fábrica

Retomemos o episódio ocorrido no dia 20 de janeiro de 1833, em que um grupo de 53 escravos da nação dirigiu-se ao diretor da fábrica, João Vicente Gomes, para requisitar aumento das rações diárias e folga aos domingos, de forma que pudessem “agenciar alguma coisa.”75 Na requisição havia um tom de ameaça, de que, se não fossem atendidos, “iriam para

o mato”. O diretor perguntou-lhes sobre a ração, e eles entregaram uma “que devia ser de um décimo de farinha, três quartos de carne e uma onça de toucinho, para cada preto; e meia quarta de feijão para trinta pretos por dia; mas que senão dura exata”. Saíram com a promessa de que suas refeições seriam aumentadas, mas que não teriam o domingo de folga “porque se iam embriagar e fazer desordens”. Informava o diretor ao ministro da guerra que o vice- diretor, encarregado dos trabalhadores, costumava entretê-los até a hora do almoço e que “depois se dava licença aos mais capazes para agenciar alguma coisa”. Claramente insatisfeitos, os escravos se revoltaram no dia seguinte ao encontro com o diretor. A insurreição logo foi sufocada por um destacamento de 11 soldados, que depois identificou e puniu os líderes com surras públicas.

Salta aos olhos uma noção do que era de direito para os escravos: ter acesso a uma alimentação decente e poder folgar aos domingos, a fim de descansar ou desempenhar serviços que lhes permitissem ganhar algum dinheiro. Podemos facilmente identificar questões típicas

74 H. Kraay. “Repensando o recrutramento militar”, p. 3 75

“Ofício do diretor João Vicente Gomes para o Ministro da Guerra, Antero José Ferreira de Brito, em 25 de janeiro de 1833.” AN- IG5 1 – Série Guerra/ Fundo Fábricas.

de classe através da luta por direitos que estavam sendo violados, tal como identificou E. P. Thompson para a formação da classe operária inglesa no século XVIII.76

Este episódio pode remeter a várias interpretações, mas aqui gostaríamos de destacar as condições de trabalho e vida dos escravos, que viriam a ser, dois anos mais tarde, semelhantes às oferecidas aos africanos livres. Os escravos deveriam trabalhar diariamente e só alguns, “dos mais capazes”, ou seja, aqueles que, por seu comportamento ou simpatia do feitor, inspiravam confiança teriam direito a circular livremente aos domingos. Os outros, embora pudessem descansar, não poderiam se ausentar da fábrica, pois corriam o risco de não voltar durante o dia e se “embriagar”. A contrapartida pelo trabalho, na visão dos administradores, era o sustento; para os escravos, significava refeições fartas e a possibilidade de terem para si ao menos um dia na semana.

A pressão pelo direito de poderem ter o domingo “para si”, ao que tudo indica, estava sendo violada na gestão de João Vicente Gomes. De acordo com um ofício de 1843 do diretor interino João Carlos Pardal, existia “neste estabelecimento o antigo uso do tempo da Fábrica da Lagoa de Rodrigo de Freitas de se ocuparem os escravos depois da missa e mais serviços ordenados (...) com licença, uns na agricultura de pequenas porções (...) que tem nos quintais dos empregados que lhes pagam e outros em diferentes gêneros de indústria.”77 Como dizia o

diretor, “é do produto de semelhante trabalho que eles adquirem alguns vinténs para as suas indispensáveis necessidades, porque sinto, em meu entender, que também os escravos as têm”. Sendo um costume, o hábito de liberá-los para “agenciarem alguma coisa” variava no entendimento de cada gestão. E, ao que tudo indica, os escravos que se insurgiram em 1833 lutavam pela manutenção deste “uso antigo” na fábrica.

Observamos que os escravos da nação, e isso se estendia também aos africanos livres, ganhavam do Estado apenas o seu sustento. Todos eles tinham direito a refeições diárias, que eram compostas de “três quartos de carne seca”, “uma onça de toucinho”, “um duzentos e quarenta avos de alqueire de feijão” e “um e quarenta avos de alqueire de farinha de mandioca”.78 Em setembro de 1836, o Ministério de Manoel da Fonseca Lima e Silva

76 E. P. Thompson. Formação da classe operária inglesa I – A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1997.

77 “Ofício de João Carlos Pardal para o Ministro da Guerra Salvador José Maciel, em 26 de julho de 1843.” AN-

IG5 3- Série Guerra/Fundo Fábricas.

78

“Ofício de José Maria da Silva Bitancourt para o Ministro da Guerra Manoel da Fonseca Lima e Silva, em 01 de setembro de 1836.” AN-IG5 2 – Série Guerra/Fundo Fábricas.

determinava dar somente meia cota de “ração” diária para os menores de 10 anos de idade, de forma a diminuir os custos com o sustento de “improdutivos”.79 Além das rações, os homens

ganhavam, anualmente, uma manta, um barrete, duas camisas, três calças e uma japona de algodão; as mulheres recebiam dois vestidos, uma “roupinha”, uma saia, uma manta e três camisas de algodão. Elas também recebiam tecidos de algodão para vestir as crianças.80 A

maioria vivia em senzalas de “pau-a-pique”, cada uma com suas cozinhas, divididas por sexo, na qual havia “tarimbas”, ou camas.81 Alguns, por sua “idade e comportamento moral”, tinham

“licença para dormir em seus ranchos, arruados e sujeitos a fácil policiamento”, como relatava José Joaquim Rodrigues Lopes ao ministro da Guerra, em fevereiro de 1851.82

No ano de 1843, estimava-se que cada cota diária de alimentos equivalia ao gasto de 111 réis para o Estado. Contando que havia 303 escravos da nação e africanos livres adultos e 52 menores que recebiam meia ração, o Estado gastava anualmente com “comedorias” 13.329$435 réis, do valor do qual deduzia-se 1.971$000 réis com a produção de mandioca da fábrica, totalizando 12.519$135 réis.83 Todo o vestuário era produzido na própria fábrica de

pólvora e, com isso, gastavam anualmente 2.530$612 réis.84 Deduz-se que com os escravos e

africanos livres, que na época calculava-se em 355 indivíduos, dos quais parte não estava inserida nos serviços, o Estado gastava aproximadamente 15.049$747 réis. Estimava-se, neste mesmo ano, que eram gastos 35.679$500 com os salários de empregados da administração, civis e militares, e com os operários livres da fábrica, que totalizavam 106 indivíduos.85 Desta

forma, comparando os custos com salários e sustento dos escravos e africanos livres, é óbvio

79 Idem. A medida gerou protestos do diretor, que interviu pedindo que a meia ração fosse dada apenas para os

menores de 02 anos, pois até esta idade eles recebiam o leite materno. O Ministério não cedeu às pressões e concedeu o benefício da ração inteira para os menores e somente no ano de 1839, a idade caiu para 07 anos, embora o diretor houvesse pedido que tal redução fosse apenas para os menores de quatro ou cinco anos. “Ofício de José Maria da Silva Bitancourt para o Ministro Conde de Lages, em 29 de dezembro de 1836.”

AN-IG5 2 – Série Guerra/Fundo Fábricas.; “Ofício de José Maria da Silva Bitancourt para o Ministro

Conde de Lages, em 04 de dezembro de 1839.” [O ministro respondeu no cabeçalho deste último ofício em 14 de dezembro de 1839.] AN-IG5 2 – Série Guerra/Fundo Fábricas.

80 “Cálculo C- Preço do vestuário que anualmente se deve distribuir à escravatura e africanos libertos.” In:

BRASIL.Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra, apresentado à assembléia Geral Legislativa