• Nenhum resultado encontrado

Ponta Negra na cartografia internacional de desejos e paixões À semelhança de muitos outros lugares litorâneos do Nordeste do Brasil, as praias

1. De praia de pescadores a ecologia de lazer e turismo

Até meados do século XX, Ponta Negra era uma pequena comunidade de pescadores. Com fracas acessibilidades e separada da cidade de Natal por mais de uma dezena de quilómetros, até essa altura a povoação encontrava-se relativamente isolada, numa situação periférica face à sede do município. Além da pesca, os seus moradores dispunham de aproximadamente 550 ha de terras comunitárias em que podiam fazer as suas roças e assegurar produtos agrícolas fundamentais para a economia doméstica (Sá 2010: 114). Não tendo sido individualmente apropriadas e legalizadas, nas décadas de 1950 e 1960 a maioria destas terras foi alvo de apropriação ilegal (grilagem) por parte de privados e de um “roubo institucionalizado” a grande escala, no qual estiveram envolvidas “três forças uníssonas” – Estado, mercado imobiliário e Igreja Católica – que destinaram uma parte da área em causa para a edificação do complexo militar da Barreira do Inferno (idem: 114-117). Estava então aberta a porta para uma forte expansão e especulação urbanística que, em conjunto com os novos hábitos de lazer das elites locais, viria a alterar a fisionomia de Ponta Negra. Como destaca Souza (in Semurb 2009: 203), “em meados do século XX, a elite natalense aportou à beira-mar construindo aí suas casas de veraneio. Nos anos 70, a expansão urbana povoou a parte alta deste bairro [Ponta Negra] com a construção de conjuntos habitacionais”.

A praia que até então tinha sido palco da faina piscatória e frequentada quase que em exclusivo pela comunidade local começa, gradualmente, a ser apropriada como espaço de lazer pelas pessoas dos estratos mais afluentes da sociedade potiguar, que aí iam construindo casas para consumo dos prazeres balneares, procurando, desse modo, entrar na moda nacional da segunda residência (Júnior 1997, Silva e Fonseca 2010). Na fase que antecedeu o turismo de massas, a praia era também frequentada por jovens “alternativos”, “[…] que encontravam neste espaço paradisíaco, distante da cidade e com acesso precário, as condições suficientes para experiências sociais mal toleradas pela ordem político-moral dominante, incluindo aquelas ligadas ao sexo e ao consumo de estupefacientes” (Ribeiro e Sacramento 2006: 164). Com esta crescente procura de Ponta Negra como ecologia de lazer e prazer, muitos habitantes da vila, que haviam sido espoliados das suas terras,

procuraram novas fontes de rendimento, além da pesca: no artesanato, nas barracas de praia e noutras actividades informais direccionadas para os visitantes (Bezerra e Sá 2008: 7). Começava, assim, a esboçar-se uma estrutura, embora muito rudimentar, de exploração comercial do consumo da praia, da qual ainda hoje, como veremos, restam algumas reminiscências.

Mais tarde, já durante a década de 1980, o sector do turismo em Natal começa definitivamente a ganhar escala e dinamismo, fruto de políticas específicas de incentivo ao sector, de processos de urbanização pensados em função das suas principais exigências e da construção de inúmeras ligações rodoviárias e equipamentos estruturantes (Furtado 2008: 57-67). De todas as iniciativas, o projecto Parque das Dunas/Via Costeira é comummente apontado como o factor primordial de desenvolvimento turístico da cidade (Cavalcanti 1993, Cruz 1995, Júnior 1997, Silva 2003, Furtado 2008, Costa 2008, Sá 2010),130 em especial para sul, para Ponta Negra, que se torna o cenário paradigmático do turismo natalense. Com uma extensão de cerca de uma dezena de quilómetros, a Via Costeira atravessa sempre junto à orla do mar a área ecológica protegida do Parque das Dunas e liga as praias de Ponta Negra e Areia Preta. No seu enfiamento foram sendo construídos os maiores e mais prestigiados hotéis de Natal, que até então praticamente não dispunha de unidades hoteleiras com características para competir no mercado turístico internacional. Delineado no quadro de políticas públicas de fomento do turismo coordenadas pela Empresa de Promoção e Desenvolvimento do Turismo do Rio Grande do Norte (Emproturn)131, este mega-projecto, iniciado em 1979 e inaugurado em 1983, foi pensado para funcionar como o grande catalisador inicial da organização e do desenvolvimento do sector rumo à sua massificação. Como conclui Furtado (2008: 59), “nesse momento, o turismo passa a adquirir relevância no contexto da economia urbana e se faz sentir mais fortemente”. Actualmente, na Via Costeira estão sedeados 11 hotéis, de quatro ou cinco estrelas. Alguns deles pertencem a cadeias hoteleiras europeias, como é o caso do Pestana Natal-Beach Resort, do grupo português Pestana.

Ainda no início dos anos 80 do século passado, a Avenida Eng.º Roberto Freire (antiga Estrada de Ponta Negra-Natal, v. fig. 2) foi duplicada, assegurando uma articulação mais eficiente do eixo Via Costeira – Ponta Negra com a BR101, principal acesso ao                                                                                                                

130 Aliás, a ideia dos responsáveis políticos seria criar uma espécie de Copacabana local (Júnior 1997) que

funcionasse como o grande ícone e pólo de dinamização do turismo na cidade.

131 Este organismo foi criado em 1971 pelo Governo estadual e extinto em meados da década de 1990.

Algumas das suas competências mais importantes estão agora sob a responsabilidade da Emprotur, uma entidade que funciona com capitais mistos e é tutelada pela Setur-RN.

aeroporto internacional e, em sentido contrário, ao centro de Natal. Esta avenida rapidamente se transformou no principal eixo da urbanização turística de Ponta Negra (Júnior 1997, Furtado 2008). Para quem procede de Natal, do seu lado esquerdo, está o Parque das Dunas e, já em pleno Bairro de Ponta Negra, uma área non aedificandi132, a partir da qual, na encosta da praia, se edificaram unidades hoteleiras e alguns empreendimentos imobiliários. Os grandes espigões de apartamentos destinados à classe média natalense e aos turistas, e os demais espaços de consumo para residentes e visitantes têm sido construídos do lado oposto da avenida. Na paisagem urbana desta zona do bairro sobressaem as tipologias habitacionais impulsionadas pelo capital turístico-imobiliário (Ferreira, Bentes e Clementino 2006) e que têm estado associadas à expansão do turismo residencial europeu (Clementino 2009, Silva e Fonseca 2010); uma modalidade de turismo reveladora de maior vinculação ao lugar que, nalguns casos, pressupõe a formação de relacionamentos mais consistentes e/ou duradouros com mulheres locais.133

Com a Via Costeira, a Avenida Eng.º Roberto Freire e, mais tarde, a Rota do Sol (faz a ligação às restantes praias do litoral sul) estavam constituídos os principais eixos da expansão urbano-turística de Ponta Negra e da afirmação da sua centralidade no espaço natalense. O turismo e as grandes dinâmicas urbanas – por exemplo no âmbito imobiliário e na verticalização da paisagem construída (Silva 2003, Clementino 2004) – foram propagando-se do centro de Natal (via Avenida Eng. Roberto Freire) e das suas praias (através da Via Costeira), que nem uma onda, em direcção a Ponta Negra (Furtado 2008), transformando-a numa praia eminentemente transnacional e num dos principais pólos de internacionalização da região durante a última década do século passado. Este processo decorreu num ambiente de forte divergência de interesses, sobretudo em relação à organização e uso do areal ao longo da Rua Erivan França.

A génese da disputa social pelo espaço da praia remonta ao início da década de 1990, quando os hoteleiros, proprietários e empresários do sector imobiliário134 da orla costeira apresentaram um processo no Ministério Público a requerer a remoção das antigas

                                                                                                               

132 Integrada na ZET-1 e destinada a preservar a democraticidade da visualização da praia e do Morro do

Careca.

133 O turismo residencial diz respeito a “[…] enduring practices and lifestyles which result from a channeled

flow of consumption-led, permanent or semi-permanent migration to a particular destination. […] a lifestyle that is oriented around patterns of leisure and consumption, in which work imperatives are minimal or nonexistent; and it takes place permanently or semi-permanently in a particular destination, outside one’s traditional socio-geographical milieu” (McWatters 2009: 3).

134 Organizados num movimento associativo de que viria a resultar a Associação dos Moradores,

barracas (cerca de uma centena) do areal135. Embora o discurso destes agentes destacasse a necessidade de democratização e modernização da praia, e enfatizasse as preocupações ambientalistas e de saúde pública – chamando atenção para a falta de condições higiénicas, o impacto visual e a poluição provocada pelas barracas –, o seu maior interesse era meramente económico: assegurar o controlo comercial da praia, o dos hoteleiros e donos de restaurantes; criar condições para a valorização fundiária da orla costeira, o dos proprietários e especuladores imobiliários (Sá 2010: 123-139). Em resposta a esta ofensiva dos interesses instalados a escassos metros do areal, os barraqueiros organizaram-se através da Associação dos Barraqueiros de Ponta Negra (ABPN), procurando defender o seu direito a um lugar na praia e ao exercício da actividade. Para tal foi invocada a antiguidade das barracas e a sua extraordinária importância na economia doméstica de muitas das famílias da vila.

Depois de uma longa disputa pública entre as partes e de decisão judicial favorável à salvaguarda da actividade dos barraqueiros, em 1995 foi aprovado o projecto de urbanização da orla de Ponta Negra. Neste documento era proposta a construção de um calçadão com cerca de 3 km e a demolição das barracas. O plano de ordenamento do espaço da orla tinha subjacente uma estratégia de segmentação da praia, que, no seu essencial, passava por reservar uma secção somente para quiosques na área de maior densidade de restaurantes e bares, e por estabelecer novas barracas num segmento da praia mais a norte. Todavia, muitas destas ideias acabariam por não sair do papel. Depois de derrubadas, em Agosto de 1999, as barracas não mais foram edificadas. Em alternativa instalaram-se no calçadão três dezenas de pequenos quiosques, ao longo de mais de dois quilómetros, muito para lá do segmento de praia que lhes havia sido reservado no projecto. Nestes quiosques foram acomodados alguns dos antigos barraqueiros, que aí mantêm a comercialização de bebidas e comidas, um pouco à semelhança do que antes faziam. Outros foram instalados nos 54 pontos136 para locadores de cadeiras entretanto criados pela prefeitura. Nas zonas do areal correspondentes a uns e outros são colocadas mesas,

                                                                                                               

135 Os barraqueiros começaram a instalar-se na praia na década de 60 do século passado. Nas barracas que

construíram de forma mais ou menos improvisada vendiam bebidas e preparavam comida, sobretudo peixe e marisco. Muitas destas barracas foram sendo herdadas pelos filhos e netos. Alguns mantiveram o negócio de família, outros venderam-nas a terceiras pessoas, inclusivamente a estrangeiros.

136 Ao contrário dos quiosques, os pontos são apenas espaços de praia concessionados, não beneficiando de

uma estrutura de apoio fixa. As bebidas têm, por isso, de ser transportadas diariamente para a praia e acondicionadas em caixas de esferovite (isopor) cobertas de gelo.

cadeiras e espreguiçadeiras de plástico, juntamente com os indispensáveis guarda-sóis, que salpicam a praia com uma expressiva macedónia de cores.137

Do lado da rua do calçadão oposto ao dos quiosques e dos pontos, explorados por brasileiros, na sua maioria nativos, estão os estabelecimentos mais formais: pequenas unidades hoteleiras, restaurantes, lojas de conveniência, lan houses (internet e telefone), lojas de roupa e de produtos de praia, agências de viagens, empresas imobiliárias, espaços de venda de artesanato e souvenirs, entre outros. Uma boa parte dos proprietários ou arrendatários destes espaços comerciais são europeus, sobretudo italianos, um pouco à semelhança do que acontece na generalidade dos contextos do bairro mais frequentados pelos turistas. Embora alguns destes estrangeiros tenham feito investimentos iniciais avultados no desenvolvimento da actividade, muitos deles enquadram-se mais num registo de empreendedorismo de pequena/média escala. A sua mobilidade migratória (definitiva ou sazonal) para iniciar uma experiência de trabalho em Ponta Negra foi, como veremos, quase sempre precedida do consumo turístico do lugar e está, geralmente, associada à transnacionalização da intimidade. A sua presença (e a dos turistas estrangeiros em geral) provoca um certo incómodo entre os natalenses, que parecem experienciá-la como uma nova invasão, uma sequela da história colonial. É muito comum ouvi-los dizer que Ponta Negra é dos europeu’ e identificar expressões de ambivalência, tensão e/ou estigmatização face aos gringos, tal como se verifica, aliás, em muitos outros destinos turísticos (Zarkia 1996, Boissevain e Theuma 1998, Abbink 2004, Boissevain 2006, Simoni 2009, Bezerra 2010).

Ao contrário do que sucedeu num passado recente, agora os empresários hoteleiros e da restauração parecem já mais conformados com a presença dos quiosques e dos pontos do outro lado, no calçadão. E como não puderam vencê-los e assegurar o domínio comercial da faixa de praia, “juntaram-se” a eles, construindo estratégias mutualistas de encaminhamento recíproco de clientes e de complemento da actividade. Entre uns e outros, sem espaço fixo, circula um imenso fluxo de agentes da economia informal e alguns adolescentes que pedem a quem passa um ou dois reais para ir comprar crack numa dos vários pontos de venda (bocas de fumo) da vila. A constante abordagem do                                                                                                                

137 Como estratégia de charme, na acesa disputa dos clientes é bastante comum os guarda-sóis ostentarem

representações de diversas bandeiras nacionais. Destaca-se, desde logo, a do Brasil e as de países europeus como a Itália, a Noruega e a Suécia. O recurso a bandeiras ou a outros elementos que evocam a nacionalidade é uma estratégia bastante recorrente na generalidade dos estabelecimentos comerciais da praia e daqueles que se situam nos principais circuitos turísticos de Ponta Negra. O resultado é um ordenamento iconográfico em que coexistem, sobrepõem-se e interagem no mesmo espaço referentes simbólicos de diversos países.

turista por parte dos vendedores de rua (camelôs) transforma a praia numa densa área comercial a céu aberto138. Muitos deles são naturais da vila, outros vêm diariamente da zona norte e de outros bairros de Natal, outros ainda, como é caso dos artesãos rastafaris, vêm de outros Estados, fazendo longos périplos por alguns dos mais destacados destinos turísticos da costa brasileira. O seu posicionamento no campo da informalidade não significa que estejam numa situação marginal face a outros agentes e actores da estrutura económica da praia. Aqui, como em quase todo o lado, a economia informal não é um mundo à parte (Moser 1978, Portes et al. 1989, Chen 2005, Cunha 2006, Narotzky 2009). A interacção com os sectores de actividade mais convencionais é inevitável.

Destacando o papel relevante do sexo mercantil nas dinâmicas económicas de Ponta Negra, Ribeiro e Sacramento (2006: 349) mostram a permanente articulação das garotas de programa com vários outros actores da praia, tendo em vista criar condições para potenciar os proveitos de ambas partes junto dos gringos. Os taxistas e os proprietários e empregados de alguns quiosques e pontos são dos seus principais interlocutores nesta estratégia de benefício mútuo. Os primeiros ajudam na angariação de clientes, recorrendo, por vezes, a dossiês de fotografias e/ou de contactos (books) que exibem aos turistas que transportam. Em contrapartida, elas tornam-se usuárias assíduas dos respectivos serviços de táxi. Os segundos também funcionam, amiúde, como intermediários entre os turistas e determinadas mulheres, no pressuposto de que uns e outras retribuam; por exemplo, frequentando os seus respectivos espaços comerciais. Esta inserção da intimidade nos processos sócio-comerciais da praia é indissociável da massificação turística do lugar e da sua emergência como ecologia fortemente mercantilizada.

                                                                                                               

138 Durante as estadias de terreno em Ponta Negra registei mais de meia centena de actividades informais

realizadas na orla da praia, desde aquelas em que se transaccionam bens ou serviços socialmente aceitáveis (v.g. roupa de praia, CD, óculos de sol, fruta, milho verde, água de coco, café e bolinhos, gelados din-din, raízes de cheiro, ostras, massagens) até outros que afrontam os valores dominantes, configurando um crime (v.g. droga) ou sendo alvo de estigmatização (v.g. prostituição). Alguns destes produtos, em particular os de fabrico industrial, são adquiridos no Alecrim, uma área eminentemente comercial situada no centro de Natal, a cerca de 12 km. Para um conhecimento mais detalhado do dinamismo da economia informal em Ponta Negra, da estreita articulação com os sectores de actividade mais convencionais e da sua extraordinária importância socioeconómica num contexto de grande precariedade laboral, ver Silva et al. (2001) e Ribeiro e Sacramento (2008).

2. Políticas públicas, lógicas do desejo e internacionalização turística