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Em outros sítios, construindo uma etnografia plurilocalizada

Nos dois lados do Atlântico: percursos e contextos etnográficos O terreno é um elemento fundamental da prática e da identidade da antropologia e

4. Em outros sítios, construindo uma etnografia plurilocalizada

Até há cerca de quatro décadas atrás, a antropologia tinha como grande marca epistemológica o estudo de manifestações sociais e culturais características de pequenas comunidades, tendencialmente percebidas como entidades imobilizadas sob o território, adstritas cada qual a uma geografia precisa e circunscrita. Predominava então uma matriz analítica que, de forma mais ou menos explícita, associava uma cultura a uma população estabelecida numa dada localidade (Bruner 2004: 235). A maioria dos antropólogos tendia a referir-se aos seus objectos de estudo como se estes fossem reféns do espaço. No trabalho de campo, uma das primeiras preocupações passava pela definição de um contexto de pesquisa mais ou menos delimitado e territorializado. A vinculação deste contexto local a estruturas e mecanismos sociais situados num plano transnacional era, amiúde, negligenciada ou não devidamente ponderada (Marcus e Fischer 1999), dando a ideia de que o local seria a ecologia natural do social e a escala de afirmação da especificidade científica da antropologia.

Com a intensificação dos processos de globalização nas últimas décadas do século XX, as relações entre o “eu” e o “outro”, o local e o global e, mais importante ainda, entre o espaço e a sociedade reconfiguram-se de forma profunda (Gille e Riain 2002: 274). Daí resultam fenómenos sociais encaixados em múltiplos locais que não dependem de uma apropriação do espaço assente na contiguidade e presença (Gupta e Ferguson 1992), constituindo-se sob a forma de fluxos de pessoas, bens e culturas. Na tentativa de capacitar a antropologia para a conceptualização destas formações fluidas46, produzidas em diferentes sítios, Marcus (1986, 1995) foi dos primeiros a propor uma nova epistemologia do terreno e da prática etnográfica. No seu entender, o terreno antropológico poderia ser encarado como uma concatenação de múltiplos contextos sociais geograficamente dispersos, apreensível através de uma “etnografia multi-situada”, “[…] designed around chains, paths, threads, conjunctions, or juxtapositions of locations in which the ethnographer establishes some form of literal, physical presence, with an explicit, posited logic of association or connection among sites that in fact defines the argument of the ethnography” (Marcus 1995: 105). Com uma perspectiva semelhante, embora enfatizando ainda mais o fluxo em detrimento do lugar, Gupta e Ferguson (1997) propõem um entendimento desterritorializado do terreno como “political location”, admitindo mesmo a

                                                                                                               

46 Dificilmente apreensíveis quando se adopta um modelo estrito de trabalho de campo localizado, fundado

possibilidade de uma “ethnography without the ethnos” (idem: 2), fundada na mobilidade selectiva do antropólogo entre diferentes localizações (locations) possíveis nas paisagens sociais globais. O terreno antropológico tenderia, deste modo, a converter-se num terreno etnográfico com múltiplos espaços interconectados (Pujolar, Fernàndez e Subirana 2011).

Sob pena de se caminhar para a implosão conceptual do lugar, de se enveredar por um certo “globalocentrismo” (Escobar 2001) e de se hegemonizar analiticamente o movimento e a fluidez, estas novas orientações epistemológicas do trabalho de campo não deverão, apesar de tudo, implicar que se deixe de olhar para a localidade como referência incontornável na análise da (re)configuração das relações sociais contemporâneas (Gille e Riain 2002). Importa não esquecer que os transnacionalismos e a globalização são processos (também) manufacturados e experienciados localmente (Burawoy 2001)47. Ponta Negra é um bom exemplo disso e, enquanto pólo de circulação internacional de pessoas, configura mesmo o que Appadurai (1995) designa por “translocality”. No âmbito específico da intimidade, revela-se um contexto de grande proeminência na produção de espaços sociais que intersectam e encadeiam diferentes locais. Foi, justamente, esta posição de destaque na transnacionalização das relações íntimas que alicerçou a sua ascendência a lugar central, ponto de partida e referência transversal e agregadora na configuração do terreno.

A pesquisa empírica que aí realizei, como já ficou patente atrás, baseou-se num procedimento de observação participante, que, no essencial, pouco diferiu do que nos foi legado por Malinowski. A existirem algumas diferenças significativas, elas estarão, acima de tudo, relacionadas com as características do próprio contexto, nomeadamente com a sua volatilidade, cosmopolitismo e forte vinculação transnacional, e que obrigaram a uma constante atenção às inúmeras manifestações evocativas dos outros espaços a que se encontra associado. Esta atenção justificava-se, principalmente, por duas grandes razões: (i) para evitar o “nacionalismo metodológico” de que nos fala Beck (2000b) e começar a entender, desde a margem latino-americana, o lugar de Ponta Negra à escala transatlântica e a sua imbricação em paisagens de intimidade geograficamente mais amplas e dispersas, (ii) para identificar os contextos europeus mais densamente conectados a Ponta Negra nos processos de constituição daquelas paisagens, bem como as respectivas redes e actores sociais de articulação, de modo a organizar o trabalho de campo complementar na Europa.                                                                                                                

47 Este é, aliás, o pressuposto fundamental da “etnografia global”, centrada na “lived experience of

Embora localizada (place-based), a etnografia do lado brasileiro já estava, em certa medida, a contemplar muitos outros sítios (incluindo-se aqui os do cyberespaço) e a criar condições para, a posteriori, poder retomar o contacto com informantes cujas mobilidades, tal como as de todos aqueles que nem sempre vivem nos mesmos lugares, desafiam as tradicionais concepções do terreno (Passaro 1997, Silvano 2002). Foi, portanto, numa lógica de continuidade e complementaridade que ao trabalho centrado no lugar, intensivo e com aspirações holísticas, sucedeu, já na Europa, um trabalho plurilocalizado: “being there... and there... and there!” (Hannerz 2003). Inspirada nos procedimentos que caracterizam a “etnografia multi-situada” (Marcus 1986, 1995), esta etapa complementar de pesquisa foi realizada em vários locais dos países que mais se destacam na produção de trânsitos e vínculos com Ponta Negra, e ainda em sítios da internet que potenciam formas e relações de intimidade à escala global. Em concreto, destinou-se a acompanhar noutros contextos e circunstâncias sociais, alguns dos principais protagonistas da experiência de campo no Brasil48 e a conhecer através deles novos potenciais informantes. Desta forma, em linha com o sugerido por Gallo (2005), seria possível abrir o entendimento do que presenciei em Ponta Negra a uma visão transnacional, capaz de examinar os efeitos e os sentidos dos deslocamentos das pessoas entre diferentes lugares, e de captar continuidades, contradições, rupturas e reconfigurações nos seus discursos e práticas. Tratava-se, em suma, de conferir amplitude de escala à compreensão das ligações que se desenvolvem entre os dois lados do Atlântico e, consequentemente, transnacionalizar a perspectiva sobre a transnacionalização da intimidade.

Com a preocupação de evitar transformar o terreno numa mera soma de unidades desconexas e sem enquadramento, procurei seguir as pessoas, as suas histórias e enredos (Marcus 1995) tendo sempre Ponta Negra como o denominador comum e respeitando um critério fundamental proposto por Hannerz (2003: 206): “One must establish the translocal linkages, and the interconnections between those and whatever local bundles of relationships which are also part of the study”. Este exercício etnográfico, como foi dito atrás, começou a ser projectado à distância, ainda antes do regresso do Brasil. Já em Portugal, e depois de contactos assíduos via internet com os informantes entretanto estabelecidos na Europa, aquilo que, inicialmente, era um simples plano de intenções, envolto em condicionalismos e imponderáveis, foi ganhando contornos mais precisos.                                                                                                                

Só então me apercebi verdadeiramente da considerável extensão da rede social de pesquisa, da sua grande dispersão espacial e da multiplicidade de possíveis sítios e roteiros a incorporar na geografia do terreno. Foi necessário, por isso, fazer uma selecção dos sítios e informantes a visitar49. Para tal, segui três grandes critérios de escolha, conferindo maior ponderação aos dois primeiros: (i) principais contextos simultaneamente emissores de fluxos turísticos masculinos para Ponta Negra e receptores de fluxos migratórios femininos dali oriundos; (ii) perfis dos informantes, protagonismo por eles assumido até então na etnografia e empatia recíproca; (iii) dispêndio de tempo e de outros recursos. Como já esperava, estes critérios apontavam sobretudo para locais e pessoas da região mediterrânea, muito em particular da Itália. Uma excepção: a Holanda.

Foi precisamente neste último país, em Lelystad, uma cidade com 73.000 habitantes, a cerca de 40 km a nordeste de Amesterdão, num território conquistado ao mar, onde dei início ao périplo etnográfico europeu. Aí reencontrei a Nilda, uma mulher com 37 anos, desempregada (ex-cozinheira), natural da Baía, mas a morar na vila de Ponta Negra há muito tempo. Estava a passar uma temporada de três meses em casa do seu companheiro holandês, o Idesbald, um mecânico de 61 anos que antes não tivera a oportunidade de conhecer, embora ela me tivesse falado bastante dele. A relação entre ambos durava há cerca de três anos, sempre vivida à distância e em trânsito. Ao longo do ano, ele costuma ir a Ponta Negra pelo menos duas vezes e ela uma vez à Holanda, onde passa períodos consideravelmente longos. Desta vez estava já na fase final da estadia. Todavia, ainda pude seguir de perto, durante uma semana, o seu quotidiano de vida conjunta com o parceiro, o que me permitiu constatar, entre muitos outros aspectos, determinadas nuances da transnacionalização da intimidade que decorrem do deslocamento sócio-espacial das relações para a Europa. Como fiquei instalado na residência de ambos, tratou-se de um acompanhamento amplo e intensivo, ficando de foraapenas as tais “oito horas de sono, sonho e sexo” (Almeida 2004: 176)50. Esta experiência etnográfica culminou no aeroporto de Schiphol (arredores de Amesterdão), onde o Idesbald e eu próprio nos despedimos da Nilda, então de regresso ao Brasil. Na azáfama de um grande                                                                                                                

49 Esta é uma situação praticamente inevitável, como nota Hannerz (2003: 207): “[…] multi-site

ethnography almost always entails a selection of sites from among those many which could potentially be included”.

50 Ainda em Ponta Negra, a Nilda havia-me convidado, por diversas vezes, a visitá-la quando estivesse na

Holanda. Este convite não impedia, contudo, que me sentisse constrangido ao estar presente, diariamente, no espaço da sua vida privada. Embora mais notória neste contexto, uma certa sensação de invasão de privacidade acompanhou-me ao longo de quase todo o trabalho de campo. Essa sensação era produto da inevitabilidade epistemológica de ter pela frente um objecto de estudo cuja abordagem implicava a “intromissão” na esfera da intimidade dos meus interlocutores.

aeroporto foi bastante notória a vulnerabilidade por ela evidenciada naquela ecologia, contrastando profundamente com a autoconfiança inabalável que sempre lhe testemunhei do outro lado do Atlântico.

Nesse mesmo dia já não abandonei o aeroporto. Na madrugada seguinte iria voltar a Portugal. Aqui permaneci apenas o tempo necessário para ultimar a preparação de uma nova saída para o terreno. O destino que se seguiu, o norte de Itália, corresponde ao contexto europeu claramente mais representativo das conexões turísticas e migratórias (e de intimidade) com Ponta Negra e, por isso, aquele que acolhia ou de onde procedia a maioria dos meus informantes. A estadia prolongou-se por mais de um mês, repartida entre vários locais, com especial destaque para Milão, Aosta e Cesena51. Neste período retomei o contacto com alguns daqueles que havia acompanhado tempos antes e, como a nota de campo subsequente indicia, pude testemunhar directamente as circunstâncias das suas vidas de todos os dias e aceder a elementos etnográficos essenciais para um entendimento mais sustentado dos vínculos que, à distância, mantêm com o Brasil.

Depois do pequeno-almoço, encontrei-me em Aosta com o Gentile [48 anos, pedreiro na autarquia], um dos turistas italianos que segui mais regularmente em Ponta Negra ao longo de dois meses. Quando entrei no carro, deparei-me com os primeiros indícios do seu forte apego ao Brasil: um lenço de praia de mulher com as cores verde e amarelo a cobrir o banco do condutor e música

sertaneja, a sua preferida, a tocar no leitor de CD. Seguimos para Altaville, já na encosta da Alta

Montagna, a cerca de 10 km de Aosta. Mora sozinho numa pequena habitação herdada dos avós, que ele próprio recuperou. Fica a pouco mais de 100 metros da casa dos pais, onde passámos para eu os conhecer. À semelhança do carro, também o espaço onde vive está repleto de lembranças brasileiras, nomeadamente de Natal e de Ponta Negra. Num móvel da cozinha apinham-se vários ímanes evocativos da brasilidade, dentre os quais sobressai o de uma bunda feminina com um biquíni asa delta verde e amarelo. Enquanto conversávamos, vai adiantando as coisas para o almoço. Tinha de estar despachado antes da uma da tarde, hora a que combinou “encontrar-se” no

messenger com a sua namorada brasileira, de quem está prestes a tornar-se noivo. Disse-me que se

vêem e falam quase diariamente através da internet. Ela tem 44 anos, é de uma cidade do Estado de São Paulo, está separada há mais de 10 anos e tem dois filhos. Conheceram-se em Ponta Negra há uns anos atrás, numa altura em que também ela estava lá em turismo. […] Religiosamente, coincidem no messenger à hora marcada. O Gentile apresentou-nos. Conversei um pouco com ela e deixei-os a sós. Falaram aproximadamente durante meia-hora. De seguida, subimos à montanha. O denso nevoeiro não permitia vislumbrar aquilo que suponho ser uma paisagem deslumbrante. Seguimos até ao final da estrada asfaltada, a mais de 2.000 metros de altitude, onde quase todas as                                                                                                                

51 São três cidades com perfis muito distintos. Milão faz parte da região da Lombardia (a mais

industrializada e próspera do país), tem 1.262.101 habitantes (Istat 2013) e é considerada uma das cidades mais cosmopolitas da Itália e da Europa. A 180 km de Milão, no noroeste de Itália, localiza-se Aosta, um pequeno pólo urbano com 34.657 residentes (idem) da região do Valle d’Aosta, território de montanha com evidentes traços de ruralidade, mesmo junto à fronteira com a França e a Suíça. No extremo oposto, ainda que um pouco mais para sul, praticamente à beira do Mar Adriático, encontramos Cesena, cidade com 96.984 habitantes (idem), localizada numa região, a Emilia Romagna, em que o turismo se assume como uma importante actividade económica e de desenvolvimento regional (Dallari 2007).

manhãs, sobretudo nos meses de Verão, se encontra com os colegas. Ele trabalha numa equipa responsável pela manutenção e reparação de pequenas estruturas (paredes, pontes, abrigos) existentes ao longo dos percursos pedestres de montanha. Nos meses em que o clima é mais rigoroso, sensivelmente entre Novembro e Março, o trabalho é suspenso. Continua a receber salário, embora reduzido. É justamente neste período que, há mais de uma década, aproveita para ir todos os anos a Ponta Negra (notas de campo, Aosta, Itália, 10/10/2010).

Através dos informantes que reencontrei pude, também, conhecer várias outras pessoas52 e situações de interesse para o meu trabalho, nomeadamente: dois casais (eles italianos, elas brasileiras) a viver em Itália, mas cuja relação teve início em Ponta Negra; um outro com perfil idêntico, prestes a contrair matrimónio; e um caso de divórcio. Simultaneamente, procurei recolher elementos e referências fundamentais para uma visão mais integrada dos contextos sociais em que estes homens e mulheres vivem. Na manifesta impossibilidade de uma etnografia à semelhança da que havia desenvolvido no sítio de referência do terreno – uma etnografia a tender para o holismo preconizado por Malinowski (1997, 2002) – optei por centrar-me nos campos sociais (v.g. género, conjugalidade, família e imigração feminina em Itália), e respectivas articulações, mais imediatamente relevantes para a discussão das principais interrogações suscitadas pelo objecto de estudo53. De antemão, tinha consciência que não teria muito tempo disponível para tal e que não bastaria acompanhar, pontualmente, durante alguns dias, os informantes em cenários e circunstâncias dos seus quotidianos. Tomei, então, a opção de conjugar os exercícios de observação participante dispersos desta etnografia itinerante, quase peripatética (Marcus 1995), com entrevistas formais e informais a terceiras pessoas, cujo conhecimento, ocupação profissional ou simples trajectos e experiências de vida poderiam, à partida, proporcionar-me mais algumas coordenadas para o entendimento do modo como os campos sociais atrás referidos se organizam na sociedade italiana. O recurso às entrevistas é, aliás, bastante comum quando nos deparamos com uma considerável dispersão geográfica das pessoas que interessa abordar. Como conclui Hannerz (2003: 211), “probably the time factor has a part in making many multi-site studies rather more dependent on interviews than single-site studies. If the researchers have to handle more places in the time classic field work would devote to one, they may be more in a hurry”.

                                                                                                               

52 É interessante constatar que o conhecimento entre os meus informantes e algumas destas pessoas que me

apresentavam, num ou noutro caso suas conterrâneas, teve início em Ponta Negra.

53 A dispersão dos contextos e das pessoas a integrar na etnografia inviabilizava uma abordagem centrada

no lugar enquanto totalidade multidimensional integrada. Aliás, segundo Hannerz (2003: 209), “[…] most multi-site studies really also have built-in assumptions about segmented lives, where some aspect (work, ethnicity or something else) is most central to the line of inquiry, and other aspects are less so”.

Acabaria, assim, por desenvolver diálogos bastante produtivos e diversificados: com colegas da área das ciências sociais da Universidade de Milão, da Universidade Católica de Milão e da Universidade de Turim, com funcionários do consulado do Brasil em Milão, com o gerente de uma agência matrimonial implantada em regime de franchising em toda a Itália, com funcionárias e frequentadoras do Instituto Brasil-Itália (Ibrit) e, através destas, com as pessoas mais activas em duas importantes comunidades online sobre casamentos transnacionais entre italianos e brasileiras. Por via do Ibrit tive, ainda, a possibilidade de conhecer e entrevistar uma terapeuta brasileira que, durante vários anos, prestou aconselhamento psicológico a mulheres brasileiras radicadas na Suíça, muitas delas casadas com cidadãos desse país.

Apesar do considerável volume de informação já acumulado e da pouca disponibilidade de tempo para novas saídas prolongadas ao terreno, após a estadia na Itália havia ainda duas tarefas a cumprir: retomar o contacto com mais alguns informantes de Ponta Negra, em trânsito, estabelecidos ou, simplesmente, regressados à Europa; continuar e aprofundar a etnografia na internet, em sítios que fui identificando no terreno como espaços privilegiados de construção, negociação e exposição da intimidade. Decidi, no entanto, que as tarefas em causa seriam concretizadas de forma cronologicamente mais extensiva, mediante disponibilidades e oportunidades várias, conjugando-as com a organização e análise dos dados já colectados e com o trabalho de escrita. Entre outras razões, esta opção dar-me-ia a possibilidade de direccionar, se necessário, a recolha de dados num ou noutro sentido, tendo em vista aprofundar ou precisar certos aspectos etnográficos, e, acima de tudo, permitir-me-ia desenvolver uma perspectiva com maior espessura diacrónica sobre determinadas situações que estava a acompanhar desde que saí do Brasil.

A intensificar a diversidade dos locais de pesquisa, além dos vários sítios físicos percorridos, incluí, ainda, na exploração do terreno inúmeros sítios digitais da internet, utilizados na constituição de espaços sociais entre o Brasil e a Europa e na partilha de experiências de intimidade transnacionais. Nesta incursão etnográfica ao cyberespaço vistoriei, repetidamente, fóruns de discussão e comunidades online (v.g. mamma brasileira, brasileiros na Europa), blogues (v.g. diario de un gringo en Natal, verdadeira Itália, ser feliz longe do Brasil, verinha.blogg), redes sociais (v.g. orkut, facebook) e páginas de relacionamentos (v.g. badoo, OXL, latinEuro-etnnic dating). Considerando que a maioria destes sites foram-me referenciados pelos informantes, encarei a consulta dos seus respectivos conteúdos como um exercício de continuidade e complementaridade face ao

trabalho realizado nos demais contextos de pesquisa. Até porque “[…] the distinction of real and imagined or virtual community is not a useful one, and that an anthropological approach is well suited to investigate the continuum of communities, identities, and networks that exist […] regardless of the ways in which community members interact” (Wilson e Peterson 2002: 456-457).54

A dispersão articulada dos muitos locais geográficos e locais online para onde fui sendo encaminhado a partir do trabalho de campo em Ponta Negra deu origem a uma etnografia plurilocalizada, que implicou grande mobilidade e flexibilidade –“etnografia móvel [...com] trajectórias inesperadas” (Fradique 2003: 115) – e se concretizou através de “polymorphous engagements” (Gusterson 1997: 116) com o terreno. Neste percurso, a abordagem etnográfica revelou-se bastante pertinente na indagação de espaços sociais constituídos em e entre múltiplos sítios (Gille e Riain 2002), desvelando as intersecções das várias unidades de análise, e permitindo-me compreender as relações, os processos de negociação e as formas de expressão da intimidade de pessoas concretas através de