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Nos dois lados do Atlântico: percursos e contextos etnográficos O terreno é um elemento fundamental da prática e da identidade da antropologia e

1. Genealogia do terreno

Em Tristes Trópicos, Lévi-Strauss (1986) partilha as suas “Folhas de percurso” e mostra-nos como a ida para o Brasil, onde viria a conhecer os seus contextos etnográficos de eleição, se decide, súbita e inesperadamente, “[…] num domingo de Outono de 1934, às nove da manhã, com um telefonema” (idem: 41). Por se tratar de uma grande referência da antropologia, o seu caso é particularmente fértil para evidenciar que, amiúde, a escolha de um caminho no sentido de um terreno e de uma geografia, mais do que um acto pró-activo de cuidada planificação, faz-se caminhando e é bastante condicionada, como lembra Ribeiro (2010: 21-23), por pequenos acasos ou situações que escapam ao controlo individual8. Foi justamente ao querer dar continuidade a um percurso, em circunstâncias em que a intencionalidade se entrecruza com a coincidência e o imprevisto, que as manifestações transnacionais de intimidade e o contexto de Ponta Negra surgiram no horizonte das minhas perspectivas de investigação.

No período de 2001 a 2005 participei num estudo financiado pela FCT sobre prostituição feminina em regiões da raia hispano-portuguesa (Ribeiro et al. 2005), no âmbito do qual também realizei a minha dissertação de mestrado sobre a construção da masculinidade entre os clientes de sexo comercial (Sacramento 2005). A grande maioria                                                                                                                

das trabalhadoras sexuais que inquirimos durante o trabalho de campo era proveniente da América do Sul, destacando-se a presença de mulheres de nacionalidade brasileira. Deste modo, no relatório entregue à FCT, em jeito de sugestão de possíveis linhas de pesquisa complementares, considerávamos relevante a realização de estudos mais focados no conhecimento dos trajectos e condições que, nos respectivos países, as predispõem a emigrar para a Europa. Por outro lado, julgávamos também bastante pertinente acompanhar o regresso e a reintegração nos seus contextos de origem após a conclusão do projecto migratório. Tratar-se-ia de conhecer o antes e o depois das experiências de vida na prostituição e, assim, construir uma escala de análise verdadeiramente transnacional capaz de captar a sua condição de “global woman” (Ehrenreich e Hochschild 2002).

Das sugestões vertidas em texto à possibilidade de nós próprios procurarmos concretizá-las, assegurando a continuidade do trabalho recém-concluído, foi um pequeno passo, que depressa ganhou firmeza e convicção, beneficiando do apoio inequívoco de Manuela Ribeiro, à altura a coordenadora da equipa. Foi então decidido que a pesquisa de terreno seria realizada conjuntamente por Fernando Bessa, o impulsionador inicial da ideia, e por mim. Como nenhum de nós reunia condições profissionais para permanecer no Brasil durante um largo período de tempo, tivemos forçosamente de pensar apenas numa abordagem exploratória, que calendarizámos para o período das férias académicas de Verão desse mesmo ano de 2005.

Depois do tempo, faltava apenas o espaço da investigação e dar o primeiro passo no processo de configuração do terreno: identificar o contexto mais adequado para a estadia. A hipótese mais óbvia, ponderada num primeiro momento, foi Goiânia, capital do Estado de Goiás, em pleno coração do território brasileiro. A razão para tal era simples e lógica. No anterior terreno, no espaço transfronteiriço ibérico, havíamos constatado que um número bastante considerável de mulheres provinha dessa região do Brasil. Entretanto, esta possibilidade começa a desvanecer-se quando, no decurso de uma primeira e rudimentar delimitação do âmbito do estudo, surge a ideia de alargar o trabalho aos homens europeus que, em turismo, se envolvem em relacionamentos de sexo mercantil. A inclusão desta nova dimensão de análise parecia-nos pertinente, considerando que muitas das mulheres brasileiras com quem tínhamos falado já trabalhava na prostituição, nomeadamente em contextos de grande afluência turística, antes de vir para a Europa. Obrigou-nos, no entanto, a abandonar em definitivo a primeira hipótese cogitada para fazer terreno, pois Goiânia não é propriamente um destino do chamado turismo sexual. Mas a procura do lugar não se arrastou por muito tempo.

Fruto da conjugação de uma intenção sem resultados e de uma coincidência frutífera, ele é achado por Fernando Bessa ao fim de dois actos. No primeiro envia um e- mail para um colectivo de mulheres em Fortaleza, na tentativa de sondar a possibilidade e a pertinência de fazermos aí a pesquisa, bem como eventuais apoios institucionais na negociação do acesso ao terreno. Do outro lado a resposta não chega. Entretanto, num acto mais ou menos fortuito, consegue o que não havia sido logrado no anterior, pleno de intencionalidade. Em conversa casual, um amigo brasileiro a residir em Portugal fala-lhe de um compatriota, professor na Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), que havia feito trabalho de campo no nosso país sobre o movimento sindical de professores. Prontamente, Fernando Bessa estabelece contacto, invocando o amigo comum. Embora não sendo antropólogo nem com interesses de pesquisa similares, as suas referências e conhecimentos locais suscitam excelentes perspectivas. Por portas e travessas, estava encontrado o destino para o nosso trabalho e que, mais tarde, viria a ser o lugar de referência do meu terreno para a pesquisa de doutoramento: Ponta Negra, na cidade nordestina de Natal. Estava também estabelecido um vínculo transatlântico que viria a revelar-se fundamental na resolução de questões logísticas9 e no estabelecimento de contactos para uma construção rápida e eficiente da rede de informantes, permitindo a maximização do curto período de tempo disponível.

Figura 1: Contextualização geográfica de Ponta Negra

                                                                                                               

9 Foi ele que tratou do alojamento de Fernando Bessa, ainda antes da chegada ao Brasil, pedindo a um

Após os habituais afazeres da “pré-entrada” no terreno (Portela 1985: 15-18), o acesso concretiza-se a dois tempos. Num primeiro momento, no início de Julho de 2005, entra em acção Fernando Bessa. Não pude acompanhá-lo desde logo, pois estava a concluir a dissertação de mestrado. Ainda a escrever sobre o terreno dos quatro anos anteriores e, num horizonte muito próximo, já um novo terreno me esperava. Sem tempo para descansar de meses de escrita intensiva, chego a Ponta Negra no início de Agosto. Encontro Fernando Bessa com cerca de um mês de trabalho, adaptado ao contexto e com uma extensa rede de contactos, sobretudo no plano institucional. A sua presença e o conhecimento do meio foram essenciais para a minha rápida integração, suavizando o habitual choque cultural nos primeiros contactos com o campo10, que têm início no imediato. Logo na noite da chegada, o terreno, até então uma vaga referência geográfica, começa a ganhar forma, rosto(s), densidade social e identidade.

Depois de me instalar na pousada, passo um bocado pelas brasas. Por volta da meia-noite, o Fernando vem buscar-me. Saímos de Ponta Negra no Volkswagen Gol por ele alugado em direcção à casa da Maryneide (informante), num dos bairros mais antigos e degradados de Natal: as Rocas. Aqui também há prostituição. A clientela é essencialmente constituída por homens locais. Os turistas raramente vêm para cá. Já com a Maryneide, seguimos novamente em direcção a Ponta Negra. Vamos a um bar com música ao vivo e, algum tempo depois, decidimos ir para o

Merengue, um ponto (como se diz por aqui) muito frequentado por gringos e por garotas de programa. A entrada é gratuita para as mulheres. Só os homens pagam. O espaço do

estabelecimento, a sua iluminação e o ambiente em nada diferem de uma comum discoteca. Predomina a dance music, intercalada com alguns períodos de música brasileira. Apesar de consideravelmente amplo, o espaço está apinhado de gente. Mais mulheres que homens. Salvo raríssimas excepções, todas elas são brasileiras e estão à procura do seu programa com o gringo. Na sua maioria são jovens, mestiças, com idades situadas entre os 20 e os 30 anos. Evidenciam alguns cuidados estéticos com a forma de vestir, a maquilhagem e o cabelo. No que diz respeito aos frequentadores masculinos, predominam claramente os turistas europeus, sobretudo os de origem italiana. A maior parte deles situa-se no escalão etário dos 30-40 anos. […] A interacção entre ambas as partes está envolta numa forte sensualidade. A forma como as garotas dançam, olham, sorriem e “dispõem” o corpo está carregada de erotismo, abordando os turistas de modo aparentemente casual. A dança é um dos meios privilegiados para uma primeira interpelação, que se situa sobretudo no plano do contacto corporal. A partir daí, o papo vai rolando, quase sempre como se tratasse de um engate convencional. Elas não “atacam” os turistas de forma tão directa e explícita como as trabalhadoras sexuais nos clubes de Portugal e Espanha. […] Depois de feitos os primeiros contactos, alguns “casais” vão para uma parte mais reservada do edifício, situada no primeiro andar, que um letreiro existente à entrada identifica como “sala romântica”. O espaço está equipado com vários conjuntos de sofás, proporcionando um ambiente mais favorável a manifestações de intimidade (beijar, acariciar) e mais calmo para o acerto dos termos do programa que, geralmente, antecede a saída para um dos vários motéis existentes nas imediações de Ponta                                                                                                                

10 Este choque cultural inicial gera, com alguma frequência, um “síndrome de desadaptação” (Hammersley

Negra. No entanto, em muitos casos a interacção que precede a ida para o motel limita-se apenas ao espaço do bar, no rés-do-chão. Aqui tudo parece acontecer muito rápido, desde a abordagem inicial ao beijo e à interacção física mais íntima, culminando com a saída para fazer um programa que, geralmente, rende cerca de 150 reais (aproximadamente 50 euros) à mulher. […] À espera, no exterior, num ambiente verdadeiramente caótico, os taxistas (cerca de 15) guerreiam pela melhor posição para ganhar a corrida para o motel (notas de campo, Ponta Negra, 4/08/2005).

Embora não partilhássemos a residência – Fernando Bessa morava em pleno centro da vila e eu na pequena residencial Mar Azul, junto à praia – encontrávamo-nos quase todos os dias, nomeadamente para o trabalho de campo nocturno nos espaços mais frequentados pelos turistas e pelas garotas de programa. Tendo em vista rentabilizar a estadia o mais possível, no dia-a-dia organizávamo-nos para que, sempre que possível, cada um assegurasse a cobertura de diferentes dimensões empíricas do terreno. Por exemplo, o contacto com os estrangeiros à procura de intimidade com mulheres locais ficou mais sob a minha responsabilidade. Aliás, a escolha da pousada onde fiquei instalado, previamente feita por Fernando Bessa, deveu-se sobretudo ao facto de ser bastante frequentada por grupos de turistas masculinos provenientes da Europa e pelas respectivas companheiras que iam conhecendo durante a estadia.

Foi aí (e a partir daí) que foi construída uma boa parte da rede social de pesquisa da primeira experiência de trabalho de campo em Ponta Negra. O facto de se tratar de um espaço pequeno e com um ambiente muito informal facilitou bastante a aproximação aos hóspedes que interessava interpelar. Por outro lado, a conquista da confiança e da disponibilidade do gerente e dos dois funcionários – todos com uma relação de grande proximidade face a muitos dos clientes, seus conhecidos de anos anteriores – foi decisiva para uma rápida aceitação da minha presença. Da rapidez com que a posição de exterioridade inicial era ultrapassada dependia o êxito ou o fracasso do trabalho de campo. Se considerarmos que a maioria dos turistas já instalados na Mar Azul (e os que, entretanto, iam chegando) iria permanecer apenas algumas semanas, regressando depois aos respectivos países, era imperioso agir com celeridade na construção de relações sociais e na colecta de informação. Não havia grande margem de tempo para solidificar vínculos e reforçar empatias como acontece quando o antropólogo trabalha em contextos sociais menos voláteis. Assim, ao contrário do que consta na generalidade dos manuais de boas práticas etnográficas, muitas das entrevistas semi-dirigidas tiveram forçosamente de se realizar num curto período de tempo após os primeiros contactos e as primeiras conversas

informais11. A par dos seus testemunhos, alguns dos interlocutores assumiram ainda um papel importante, apresentando-nos às suas parceiras e a outros turistas.

A construção dos circuitos de acesso aos actores sociais fez-se, sobretudo, em três grandes palcos: as instituições que Fernando Bessa abordou no primeiro mês da sua estadia, a pousada e a praia propriamente dita. Dos escassos contactos iniciais, o círculo de informantes expandiu-se progressivamente, ganhando uma amplitude nem sempre fácil de gerir. Num efeito “bola de neve” (Polsky 1969, Downes e Rock 2007), as pessoas que íamos conhecendo viabilizavam o conhecimento de outras, que, por sua vez, nos permitiam aceder a mais pessoas, e assim sucessivamente. Em muitos casos, o acesso aos informantes estabeleceu-se através da intermediação de terceiros, o que contribuiu para ultrapassar desconfianças e resistências iniciais. Mas nem sempre foi assim. No trabalho de campo que tem por base a observação participante somos permanentemente confrontados com circunstâncias que não são esperadas e muito menos planeadas12. Algumas delas proporcionam mesmo oportunidades extraordinárias de recolha de informação, como é o caso da que a seguir se descreve.

Por volta das 23.00h, eu e o Fernando dirigimo-nos para o ponto do Cristiano, situado em pleno

calçadão da praia. Quando passámos junto ao restaurante Portugália (propriedade de um português

da Figueira da Foz), duas mulheres num automóvel ali estacionado chamam-nos. Partimos do princípio que seriam garotas de programa, o que acabou por se confirmar. Sem expressar palavra, olhamos um para o outro como que a dizer “eis aqui duas potenciais informantes!”. Vamos para junto do carro delas e acabamos por entrar. Praticamente logo após a apresentação, para evitar equívocos e precaver eventuais problemas, dissemos-lhes o que estamos a fazer em Ponta Negra e deixámos claro que não faríamos programa com elas. Mesmo assim, disseram-nos para ficar no carro a fazer-lhes companhia. Entretanto chega mais uma amiga. Têm as três vinte e poucos anos e moram nos arredores de Natal, em Parnamirim. Duas delas são estudantes do ensino superior privado, na Universidade Potiguar (UnP). Conversámos durante quase duas horas. Criámos uma grande empatia. Antes de as deixarmos, trocámos contactos e combinámos encontrar-nos de novo. Temos aqui, certamente, três informantes de referência (notas de campo, Ponta Negra, 28/08/2005).

À medida que se acumulavam experiências e factos etnográficos, começa a esfumar-se do nosso horizonte o propósito pioneiro da ideia de ir para o Brasil estudar os cenários sociais pré e pós-migrações das mulheres que passam pela indústria do sexo na                                                                                                                

11 Referindo-se às obrigações profissionais e domésticas como factores que poderão levar o antropólogo a

ter de optar, forçosamente, por saídas de campo mais curtas em detrimento de estadias muito prolongadas, Hannerz (2003: 212) afirma que “[…] ethnography is an art of the possible, and it may be better to have some of it than none at all”. O mesmo princípio poderá também ser adoptado para lidar com qualquer situação do terreno que, não estando dependente do investigador, interfere negativamente no processo e nas condições de recolha de informação.

Europa. Todo o interesse passa a ser direccionado para aquilo que na altura ainda designávamos sob o rótulo-estereótipo de turismo sexual. Poderão aduzir-se duas grandes razões para esta mudança de planos, que, em maior ou menor grau, está presente em qualquer trabalho etnográfico13. A primeira, e mais importante, resultou de uma evidência empírica inquestionável: encontrámos poucas mulheres que já tivessem trabalhado na prostituição na Europa ou que, não tendo estado lá, tencionassem migrar com esse propósito específico. Ao contrário das suas conterrâneas da zona de Goiânia, por exemplo, muitas das jovens de Ponta Negra que ponderam o trabalho sexual como destino não precisam de migrar para beneficiar da prosperidade económica dos europeus. Com a afluência turística masculina proveniente do Velho Continente, elas têm a Europa que mais lhes interessa à porta de casa. A segunda razão, mais ténue e subjectiva, decorreu de um certo deslumbramento antropológico com a extraordinária complexidade (exotismo?) das relações íntimas entre turistas e locais. Fruto destas circunstâncias, os intentos iniciais de pesquisa foram sendo calibrados e o objecto de estudo ganhou precisão e coerência. Aconteceu tudo muito naturalmente, sem grandes preocupações ou planificações. Não querendo resvalar para um certo empirismo ingénuo, diria que fomos deixando que o campo nos guiasse. Todavia, num registo de dialéctica permanente com os quadros teóricos presentes nas nossas mentes, em linha com o sugerido por Malinowski (2002: 9): “[…] the more problems he [antropólogo] brings with him into the field, the more he is in the habit of moulding his theories according to facts, and of seeing facts in their bearing upon theory, the better he is equipped for the work”.

Por estarmos a trabalhar sobre temáticas que não são propriamente de fácil acesso, à partida antevíamos uma pesquisa de campo bastante exigente e marcada por alguma turbulência, um pouco à semelhança do que havia sucedido no terreno anterior sobre prostituição feminina transfronteiriça e do que acontece em muitas experiências etnográficas. A observação participante é uma estratégia de recolha de informação intensa e “violenta” (Portela 1985, Iturra 1986, Soudière 1988). Provavelmente, aquela que, num plano físico e psicológico, mais exige do investigador14. Das situações mais complexas e que mais interpelaram a capacidade individual de resistência, pessoalmente destaco duas: uma forte insolação pouco tempo após a chegada, que me obrigou a permanecer de cama                                                                                                                

13 Naqueles em que não está presente será, provavelmente, porque não são de facto trabalhos etnográficos. 14 O controverso diário de campo de Malinowski (1989) é, provavelmente, um dos testemunhos mais

expressivos sobre os conflitos (sobretudo internos), vulnerabilidades e sofrimentos a que o antropólogo está sujeito quando se encontra num contexto que lhe é estranho. Em várias passagens, por exemplo, refere a necessidade de recorrer ao consumo de quinino e aspirina para enfrentar o cansaço, as dores de cabeça e a febre.

durante três dias, e, acima de tudo, a repercussão política desmedida de uma entrevista que concedemos ao Jornal O Poti (Azevedo 2005a: 3), valendo-nos a atribuição do título simbólico de persona non grata por parte da câmara de vereadores de Natal15. Ossos do ofício que, todavia, não deixaram sequelas para o futuro.

No dia 16 de Setembro de 2005, data do regresso desta primeira estadia, e depois de centena e meia de páginas de notas etnográficas e de mais de duas dezenas de entrevistas, saía do Brasil com a convicção de ter encontrado um contexto a que, certamente, iria voltar. Não existiam em mim sentimentos de despedida, de trabalho concluído e de “dever cumprido”. Nem havia justificação para que existissem. A relação com o terreno tinha dado apenas os primeiros passos e, mesmo com o retomar dos afazeres quotidianos em Portugal, ela continuou activa. As novas tecnologias de informação e de comunicação, em especial a internet, permitiram-me manter o contacto com alguns informantes e amigos natalenses, e estar ao corrente de alguns acontecimentos em Ponta Negra.

Foi através de e-mails de pessoas que conheci durante o trabalho de campo e, acima de tudo, da consulta dos sites dos jornais locais que, um mês após o regresso, comecei a acompanhar a transformação sócio-espacial do terreno, deliberadamente provocada por uma série de operações policiais de grande escala e de forte impacto social entre Outubro de 2005 e Abril de 200616. No seguimento das sucessivas intervenções das                                                                                                                

15 A entrevista em causa resulta da abordagem telefónica feita a Fernando Bessa por uma jornalista do

Jornal O Poti, que teve conhecimento da nossa presença em Natal junto de fontes/informantes comuns. Crítico de uma ciência social (supostamente) pura e neutra, e defensor do engajamento público dos cientistas sociais, em texto recente ele deixa transparecer as razões que o levaram a aceitar falar com a comunicação social: “[…] o dever de falar e a participação no debate público não se esgota no espaço que nos dá a nacionalidade. […] aquilo que me moveu, como investigador e como cidadão, foi (e é) a luta por uma agenda política emancipatória e progressista, que considere que a liberdade e a justa aspiração à felicidade dos seres humanos passam também pelo direito à fruição de uma sexualidade livre da moral familista e patriarcal […]” (Ribeiro 2011: 234). Na conversa com a jornalista, além do trabalho de campo em curso, foi também abordada a anterior investigação sobre prostituição feminina nas zonas da fronteira