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Ponta Negra na cartografia internacional de desejos e paixões À semelhança de muitos outros lugares litorâneos do Nordeste do Brasil, as praias

4. Registos hedónicos no espaço digital

A inscrição de Ponta Negra na cartografia dos prazeres, desejos e paixões transnacionais expressa-se no espaço físico e no tempo cronológico, mas também, cada vez mais, no espaço-tempo digital. A internet, como observa Piscitelli (2005) para a América do Sul, é decisiva na difusão a larga escala de determinadas identidades etno-sexuais femininas, contribuindo para a valorização e procura global de alguns lugares daquela área geográfica como destinos privilegiados para a concretização masculina de experiências e projectos de intimidade. A autora centra a sua análise num dos websites mais utilizados pelos designados “turistas sexuais”: o world sex archives. Os respectivos usuários diferenciam e qualificam sexualmente quatro grandes zonas mundiais – Sudeste asiático, América Central e Caribe, América do Sul e, com menor expressão, África Subsahariana –, evidenciando uma avaliação cada vez mais positiva da alegada autenticidade feminina

latino-americana em detrimento dos cenários sexuais do Sudeste asiático, tidos como mais artificiais (Piscitelli 2005).

De um modo geral, as regiões mais referenciadas pelos participantes do site coincidem com a geografia dos “porno-trópicos” que começou a ganhar forma no imaginário europeu colonial (McClintock 1995: 21-24) e com a localização dos destinos internacionais mais sexualizados, frequentados por mulheres e homens que procuram companheiro/a fora do seu país de origem (Belliveau 2006). Coincidem, ainda, com algumas das principais categorias (v.g. asian, latinas e ebony)173 em torno das quais se organizam muitos dos conteúdos da indústria pornográfica (Lehman 2006, Dines e Humez 2011).

No world sex archives e noutros sites semelhantes existe um número bastante considerável de entradas relativas ao Brasil, postadas maioritariamente por turistas ocidentais do sexo masculino que, assim, partilham as suas experiências íntimas durante as respectivas viagens. O Rio de Janeiro surge, de longe, como o contexto mais citado. As referências específicas a Natal/Ponta Negra são poucas. Todavia, a sua pegada digital como cenário de atmosfera hedónica projecta-se em muitas outras plataformas da internet, nas quais até nem é relevante, por sinal, a presença de conteúdos de teor sexual explícito. Independentemente da tutela (particular ou institucional), nacionalidade e configuração dessas plataformas, o turismo surge quase sempre como o eixo temático central da apresentação do bairro (Serafim e Barboza 2008: 13). Compreende-se, assim, a extraordinária profusão de imagens e discursos que, de forma mais ou menos directa, evocam os múltiplos prazeres que o contexto proporciona. Aliás, o turismo de sol e praia, em especial nos trópicos, tende a ser bastante associado a ambientes exoticamente paradisíacos de sensualidade, festa, diversão e euforia permanentes (Sheller 2004, Simoni 2009).

O YouTube é dos sítios mais privilegiados para o registo das manifestações de hedonismo que compõem a (re)produção da identidade de Ponta Negra no espaço digital global. Mediante a inserção de expressões de busca (tags) como “Ponta Negra, Natal”, nele podem encontrar-se cerca de 10.100 resultados174. Examinando de forma aleatória algumas dezenas destes resultados, em particular as suas estatísticas (video statistics), é possível constatar de imediato a existência de uma tendência muito vincada no que concerne à                                                                                                                

173 Trata-se de categorias abrangentes que expressam uma essencialização racializada da sexualidade, com

base numa estética de erotização dos diferentes fenótipos.

174 À data de 09/02/2012. O volume de informação aumenta consideravelmente se fizermos a procura

nacionalidade, género e idade do público do material em causa. Quase que invariavelmente, o Brasil, a Itália, a Espanha, Portugal, a Noruega, a Suécia e a Holanda surgem como os países com mais visualizações dos vídeos175, sendo que os homens entre os 25 e os 54 anos constituem, de modo indiscutível, a sua principal audiência. Uma boa parte destes vídeos sobre Ponta Negra e respectivos comentários são adicionados por turistas, nacionais e estrangeiros,176 revelando-nos, assim, a escala transnacional de construção identitária do local e, como diria Castells (2002), a sua conversão em “espaço de fluxos”. Revelando-nos, ainda, e por outro lado, a internet como “metaphor for the social life as fluid” (Urry, in Lemos 2009: 30).

Os turistas estrangeiros que participam de forma activa neste processo de “virtualização” turística (Molz 2004) de Ponta Negra via YouTube, inserindo imagens e/ou observações escritas, são, como já seria de esperar, maioritariamente homens europeus, com destaque para os italianos. Os conteúdos que dispõem online remetem, predominantemente, para os espaços e tempos mais associados às paisagens turísticas passionais, muito em particular a praia, à tarde e a praça, à noite. O mesmo acontece em certos vídeos de turistas internos e mesmo de pessoas da região potiguar. Nesses elementos audiovisuais é assaz frequente o registo de ambientes marcadamente recreativos, envoltos em grande agitação e em intenso convívio homossocial, onde a música e a bebida são presença assídua. Os turistas surgem, amiúde, como um misto de realizadores, narradores e protagonistas. É muito comum fazerem-se acompanhar de mulheres brasileiras177, com quem desenvolvem uma interacção pautada pela sensualidade das performances corporais – sobretudo na praia, onde os corpos se desvelam e dispõem de modo particularmente apelativo – ou, noutros casos, por uma certa cumplicidade romântica, a lembrar cenas íntimas de casais em férias. A inserção destes conteúdos pessoais na internet poderá ser entendida no quadro do progressivo enraizamento de uma cultura de desvelamento mediático do eu, que apela à exposição pública da própria intimidade nos escaparates do

                                                                                                               

175 Ainda que muito variável, o número total de visualizações de cada vídeo ascende, frequentemente, a

dezenas de milhares, comprovando, assim, o papel fundamental da internet na disseminação global de discursos sobre Ponta Negra e na atracção de fluxos de pessoas.

176 Esta é uma das numerosas práticas que integram as “tourist performances” de que nos falam Sheller e

Urry (2004: 7). O vídeo, tal como a fotografia, parece representar para o turista o grande suporte da narrativa da sua experiência, bem como a prova material de “ter estado lá” e de, supostamente, ter capturado a realidade do contexto (Abbink 2004: 277).

177 Os seus traços físicos comprovam-no. Além do mais, reconheço algumas delas do trabalho de campo. Nas

imagens que os gringos recolhem sobre as suas companheiras ou sobre outras mulheres que se encontram nas suas imediações pode depreender-se a tendência para enquadramentos focalizados no corpo, em especial nas suas zonas erógenas, como as nádegas e os seios. Quando se trata de filmagens em que as contempladas estão a dançar são habituais os planos de pormenor a incidir sobre o movimento (rebolar) das ancas.

cyberespaço, instituindo um “[…] verdadeiro festival de ‘vidas privadas’, que se oferecem

despudoradamente aos olhares do mundo inteiro” (Sibilia 2008: 27).

Determinados vídeos centram-se de forma inequívoca em cenários de erotismo, paixão e/ou romance protagonizados pelos gringos e pelas suas companheiras locais, geralmente num clima de exaltação mais ou menos explícita dos valores da masculinidade. Por vezes, a sua própria estrutura narrativa é, no essencial, organizada em secções temáticas baseadas nas categorias de género e sexualidade, como se pode comprovar na sequência de fotografias de um grupo de seis turistas italianos (ad. por CRTS0101 em 2008). Neste caso em concreto, o material carregado deixa transparecer uma estrutura seccionada, com diversos títulos e subtítulos, na qual se podem identificar, implicitamente, duas partes. A primeira, ao som da música Levada brasileira, de Daniela Mercury (2005),178 integra fotos distribuídas por várias rubricas, tais como consigli utili (cartazes alusivos ao turismo sexual e ao uso da camisinha, e chamada de atenção para a presença de transgéneros), la gente (sobretudo imagens de mulheres na praia) e la spiaggia di Ponta Negra (excertos do quotidiano balnear e das relações que aí se constituem). A segunda parte apresenta uma música em que sobressai o poderoso refrão “cachaça!!!” e é composta por secções temáticas cujos títulos (v.g. stati d’ebbrezza [embriaguez], noi [nós]) e respectivas imagens, centradas no grupo, configuram uma espécie de tributo à camaradagem viril. Ao contrário desta, em muitas outras composições audiovisuais do YouTube a carga erótica, a passionalidade e as manifestações homossociais associadas a Ponta Negra encontram-se mais esbatidas; imersas em imagens da praia, do bairro e de pontos turísticos da região.

Independentemente das configurações e nuances dos materiais postados, em quase todos o exotismo tropical, o ambiente cálido (do ponto de vista térmico e social), a música e a dança, a atmosfera recreativa e de intenso convívio masculino, o corpo feminino e a intimidade heterossexual tendem a ser glorificados como componentes elementares de um regime sensorial idilicamente hedónico, no qual o momento (o presente) e o lugar são concebidos como expressão máxima dos prazeres da vida. No breve relato a acompanhar um vídeo que reporta uma visão panorâmica do quotidiano da praia e em que um turista se expõe deliberadamente para a câmara, rodeado de algumas mulheres locais, é partilhado o seguinte testemunho: I was in November 2006 in Ponta Negra near Natal, Brasil. Brasil is

                                                                                                               

178 Cuja letra é, por sinal, ilustrativa de algumas das imagens mais estereotipadas sobre o Brasil, embora com

uma excepção bastante significativa, a do brasileiro trabalhador: “[…] Brasil de quê? Da morena que samba, do futebol que a torcida comanda; terra do Carnaval e do trabalhador […]”.

absolutely the place where the life is. There is no yesterday, no tomorrow -
the life is now

(ad. por JuhaVideos em 2006). Nos comentários que se seguem, um terceiro internauta refere-se a este aqui e agora hedonista179 como a essência do que é o Brasil: You've

captured the essence of Brazil (ad. por chaguanas em 2007). Um outro, ainda, declara a

sua forte ligação sentimental a Ponta Negra e o seu desejo de voltar: i love ponta negra!! i

have been there on febraury 2006!! i have met the best and beautfiul girl in the world there! I will come back in ponta negra! (ad. por maxverymax em 2007).180

Para muitos, a alegada essência brasileira tende a ser mais estrita e explicitamente fixada no erotismo ritmado, musical, da corporeidade feminina mestiça, como se pode constatar num pequeno vídeo, intitulado Creu!!!181 Che fisico!!!!, colocado online por um italiano. Nesta gravação são registadas imagens de uma mulher mulata a dançar ao som da música Dança do creu (MC Creu 2008) em plena praia, agarrada ao tronco de uma palmeira, numa performance marcada por movimentos de cariz erótico-sexual. Na nota que anexa em jeito de legenda, o respectivo autor enfatiza a singularidade da cena, denotando espanto e entusiasmo como se estivesse perante uma qualquer atracção turística: questo è

ciò che può succedere sulla spiaggia di ponta negra - natal -rn- brasile in un caldo pomeriggio di dicembre a 35 gradi. spettacolo!!! (ad. por tmarkino em 2008).

A corporeidade feminina, a música e a dança também constituem elementos centrais em gravações e comentários inseridos no YouTube sobre o ambiente nocturno da praça: Una notte all' [boate]. Il locale piu' bello e frequentato di Ponta Negra (Natal). In consolle Eddy dj (Italia) & Dj Pons (Spagna). Bella musica e belle ragazze tutte le sere

(ad. por triplounge em 2007). Por vezes, como acontece num vídeo sobre a eleição da miss dessa mesma boate, a carga erótica das imagens e/ou a linguagem usada nos comentários leva a administração do site a sinalizar o material em causa e a impor restrições à sua visualização: “This content may contain material flagged by YouTube's user community that may be inappropriate for some users. To view this video please verify you are 18 or older by signing in or signing up”. Esta advertência não deixa de ser ela própria um factor                                                                                                                

179 A fazer lembrar o “presenteísmo” e a exuberância dionisíaca, irreprimível e inalienável, de que nos fala

Maffesoli (1979, 1985).

180 Não foi possível apurar ao certo a nacionalidade das duas pessoas que adicionaram os comentários acima

transcritos, embora os erros ortográficos grosseiros, no segundo caso, permitam pressupor que não se tratará, por exemplo, de cidadão britânico. Quanto ao autor e responsável pela inserção do vídeo, foi possível apurar, mediante indagações adicionais (também no YouTube), elementos que indiciam o norte da Europa como a sua região de proveniência.

181 Palavra da gíria brasileira que, no contexto semântico em que é usada, equivale à expressão popular

portuguesa foda-se, numa acepção que remete para espanto e admiração. Noutros contextos é usada também para fazer referência ao acto sexual.

adicional de erotização do conteúdo a que se refere.

Através de narrativas mais ou menos impregnadas de elementos associados à sensualidade feminina, na esmagadora maioria dos vídeos ou das observações que os gringos postam no YouTube transparece de forma bastante nítida o elogio da brasilidade: il brasile è stupendo natal è fantastica (ad. por farfallasarah em 2009). Neste elogio, geralmente é concedida uma importância muito particular à esfera da intimidade, bem patente, aliás, na declaração, em jeito de reconhecimento, que se segue: Natal mi ha dato tutto amore moglie e figlio... Tutto maravilhoso como diz o brasileiros...
(ad. por matandy66 em 2011). Compreende-se, assim, a nostalgia que muitos manifestam ao se

referirem ao Brasil. Não raro, usam a palavra saudade e invocam elementos da cultura brasileira (v.g. música) para ilustrar o seu estado de espírito, como se pode constatar num vídeo intitulado saudade do Brasil, seguido deste comentário: Dopo un viaggio in brasile,

al rientro quello che si prova è espresso in questa magica canzone di Toquinho... nostalgia. (regra tres) (ad. por enzolone78, 2007). Por vezes, a saudade é mais

directamente vinculada à diversão, à intimidade e à alegada vantagem no balanço da oferta e da procura no mercado local da heterossexualidade: […] bella discoteca uomini pochi

donne a flotte [rodos]...non vedo ora di tornarci...saudade do brasil… (ad. por repubblichino73 em 2010).

As referências a Ponta Negra, a Natal ou ao Brasil em geral geram, por vezes, intensas clivagens e mesmo algumas discussões insultuosas, sobretudo quando aludem a aspectos da intimidade. Mais uma vez, a nacionalidade, o género e a sexualidade são as categorias com maior ascendência na definição dos argumentos em disputa. Vejamos, a título de exemplo, o acérrimo debate suscitado pelas fotografias do grupo de italianos (ad. por CRTS0101 em 2008) atrás analisadas. Pelo que é possível depreender, a discussão terá sido espoletada por um comentário depreciativo, que já não se encontra online, do internauta accuracy76. Segue-se um outro comentário de um(a) brasileiro(a), em jeito de censura moral dos protagonistas italianos que surgem nas fotografias – tu piache as putas

de natal heim??? kkkkk perche non andava com ragazza normal la? Kkkk (ad. por lidiani007 em 2009) – e um outro, que presumo ser de uma mulher italiana, a manifestar

explicitamente o seu apoio à primeira crítica: giusto accuracy! e poi molto meglio le

italiane!! la e tutto silicone ormai!! (ad. por lully1982 em 2010). Logo depois vem uma

série de réplicas bastante fortes a estas críticas dirigidas aos turistas e às mulheres brasileiras. As duas primeiras réplicas são de outros turistas italianos, as duas seguintes são, provavelmente, de um casal ítalo-brasileiro e a última de uma brasileira:

− […] per quelli che pensano che comunque in brasile si vada solo a troie [prostitutas], credete davvero che le brasiliane siano tutte prostitute con un tariffario a ora o che le donne italiane non calcolino il discorso soldi [dinheiro], quando si mettono con qualcuno? (ad. por

stocachetiba em 2010);

− perche le italiane nn vanno a letto, con tutti? almeno le brasiliane usano precauzioni!!!fatti meno seghe stupidotto! (ad. por SERVICEOLDCAR em 2011);

− accuracy76 la tua mamma è una puttana e l unico squallido è il tuo babbo che ti a fatto. natal è bellissima cmq sei un invidioso perche nn ci puoi pemetere di fare 10000 km per tuto quello perche brasile è TUTTO
(ad. por Adrianaeleonardo em 2011);

− lindooooooooo adorei o video!!!!!!e cmq accuracy76 seiii un finocchio [homossexual] di merda è vero siamo tt puttane e voi siete tt finocchio vai dai trans vai (ad. por

Adrianaeleonardo em 2011);

− bravo...poi il piu bello e` che le brasiliane fanno cagare..sono brasiliana, pero` che orende questeee... mamma miiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii-iiiiiiiiiiaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa-aa.. (ad. por

drika88100 em 2011).

Enquanto meio de circulação de imagens e de interacção social, a internet constitui um importante fórum de construção identitária, com repercussões que se estendem muito para lá do espaço digital, tornando pouco pertinente qualquer tentativa de estabelecer fronteiras entre o virtual e o real (Lemos 1996, Lévy 2001, Piscitelli 2005). O que lá se passa tem consequências bem reais. Como conclui Jungblut (2004: 102), “[…] muitos dos atos produzidos pelos mecanismos de virtualização são fatos sociais concretos, já que produzem efeitos na realidade e, assim, não pertencem ao reino do imaginário, não desaparecem do universo das ações sociais tão logo sejam desligados os mecanismos tecnológicos que permitiram sua existência ‘virtual’”. A inserção de Ponta Negra e de muitos lugares nas rotas do turismo de massas e na cartografia dos mercados afectivo- sexuais e matrimoniais internacionais tem sido amplamente potenciada pela internet. Desde logo, pela sua capacidade de amplificação e de difusão massiva da áurea de hedonismo, exotismo e sensualidade que, historicamente, envolve a identidade da nação brasileira. Mas também, como veremos mais adiante, pelo facto de contribuir, principalmente através das redes sociais e dos sites de relacionamentos, para a intensificação da electividade na esfera da vida privada e de proporcionar escalas sócio- espaciais mais amplas e novas possibilidades de configuração da intimidade.

Capítulo IV.