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Trânsitos, fronteiras e ordenamentos transnacionais da intimidade

5. Fluxos passionais: género, turismo e migrações

Os processos reflexivos que pautam a organização da intimidade, tornando-a num espaço de individualização e de electividade, construído com base em referências de diferentes sistemas culturais, contribuem de forma decisiva para a emergência de projectos passionais desencaixados de escalas locais e nacionais. A sua realização pressupõe, desde logo, fluxos transnacionais de pessoas entre geografias subjectivamente desejadas para a concretização de aspirações íntimas: erótico-sexuais, afectivas e conjugais. Embora heterogéneos e, por vezes, ambíguos e metamórficos, estes fluxos tendem a situar-se nos contextos do turismo e das migrações. De seguida procuro analisar a sua organização – trajectórias, características, dimensão económico-política e estrutura de género – e compreender como se articulam entre si e operam na constituição de espaços sociais de intimidade à escala transnacional, à semelhança do que acontece entre a Europa e o Nordeste brasileiro.

A opção analítica de desenvolver uma discussão conjunta dos fluxos turísticos e migratórios enquanto trânsito de afectos e desejos que proporcionam a construção de relações íntimas entre pessoas de diferentes países encontra imediatamente justificação em razões de ordem empírica. No quadro dos processos de transnacionalização da intimidade, como veremos, os fluxos em causa pressupõem-se de forma recíproca, são intrinsecamente complementares e, com alguma frequência, assumem características híbridas e evoluem para configurações distintas das que assumem num primeiro momento, pois as expectativas e comportamentos individuais podem mudar no decurso de um mesmo fluxo ou entre várias deslocações. Além do mais, os próprios actores sociais nem sempre vislumbram e classificam as suas respectivas mobilidades segundo designações estanques e rígidas como

turismo e migrações. Daí a necessidade de se considerarem estas duas categorias como pólos de um complexo, contínuo e gradativo espectro de mobilidades: “temporary movements [nomeadamente turísticos] and permanent migration, in turn, form part of the same continuum of population mobility in time and space” (Bell e Ward 2000: 88)110.

É fundamental ultrapassar as simplificações e arbitrariedades decorrentes das comuns definições de turismo como deslocação temporária (inferior a um ano consecutivo) para fora da residência habitual por outras razões que não a realização de um trabalho remunerado, e de migração como movimento que assume um carácter mais duradouro e cujas motivações pendem para outras esferas (v.g. laboral) que não a do lazer111. Adoptando uma maior plasticidade teórica, como destacam Hall e Williams (2002: vii), será possível enquadrar muitas outras manifestações empíricas de mobilidade que tendem a cair no vazio ou no caos conceptual e apreender formas de circulação emergentes que ligam lugares e pessoas de uma maneira inovadora, dificilmente traduzíveis pelas tradicionais referências analíticas do turismo e das migrações, sobretudo quando essas referências estão limitadas às respectivas demarcações disciplinares. No contexto em estudo, além dos convencionais trânsitos turísticos massificados e das migrações permanentes, abundam formas de circulação híbridas que apelam à flexibilidade da teoria e a uma maior interdisciplinaridade: as viagens de negócios, o turismo residencial, as deslocações em que se conjuga o lazer com um trabalho sazonal – “migrant tourist- workers”112 na terminologia de Bianchi (2000) –, as migrações temporárias, as migrações de aposentados (“retirement migration” [King, Warnes e Williams 2000]),113 entre outros                                                                                                                

110 Perspectiva semelhante é adoptada por vários outros autores: Lash e Urry (1994), Williams e Hall (2000,

2002), Hall e Williams (2002), Gustafson (2002), O’Reilly (2003), Butler (2003), Hall e Müller (2004), Hall (2005), Kopnina 2007, Haug et al. (2007), Mantecón (2008), Barretto (2009).

111 Estas definições mais correntes são quase sempre decalcadas de grandes instituições de referência, como

a Organização Mundial do Turismo (OMT) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM), respectivamente. Para a primeira, “[...] o turismo engloba as actividades das pessoas que viajam e permanecem em lugares fora do seu ambiente usual durante não mais que um ano consecutivo, por prazer, negócios ou outros fins” (OMT, in Ignarra 2003: 11). A segunda, por seu lado, refere-se à migração enquanto “[...] process of moving, either across an international border, or within a State. It is a population movement, encompassing any kind of movement of people, whatever its length, composition and causes; it includes migration of refugees, displaced persons, uprooted people, and economic migrants” (OIM 2004: 41). A recolha de dados estatísticos sobre os movimentos populacionais baseia-se, geralmente, nestas definições mais estandardizadas e de alcance internacional.

112 O turista-trabalhador, nomeadamente aquele que tem um emprego sazonal no próprio sector do turismo,

juntamente com os viajantes em negócios, enquadram-se na denominação de partial tourism proposta por Cohen (2004: 29): “[…] travelling for novelty and change is combined in varying degrees and forms with other non-instrumental or even instrumental purposes “.

113 São várias as condições estruturais que têm proporcionado a generalização destas novas mobilidades: os

progressos nos sistemas de transporte e comunicações, e a consequente “compressão do espaço-tempo” (Harvey 1992), as mudanças na estrutura das economias (sobretudo a estratégia pós-fordista de dispersão geográfica dos sistemas produtivos), o aumento do trabalho flexível, precário e sem perspectiva de

exemplos que irão surgindo na análise das dinâmicas de transnacionalização da intimidade. A diversidade de expectativas inerentes a estas mobilidades e o seu constante vaivém entre os dois lados do Atlântico, adensando as configurações sociais transnacionais e desafiando referências espácio-temporais usadas na definição de tipologias de fluxos, tornam inviável e desajustado o recurso a esquemas de análise rigidamente formatados pelo binário “turismo vs migrações”. A sua abordagem pressupõe uma certa libertação de amarras dicotómicas como “trabalho vs lazer”, “produção vs consumo”, “deslocação definitiva vs deslocação temporária”, “residência habitual vs residência secundária” e, porventura, até mesmo da oposição clássica da antropologia do turismo “hosts vs guests’” (Smith 1989a).

Para lá dos complexos hibridismos existentes entre o turismo e as migrações, os nexos entre estes dois campos estendem-se também a relações sistémicas de causalidade recíproca, que contribuem decisivamente para o desenvolvimento de circuitos sociais extensivos, a itinerância das culturas (Clifford 1997, Rojek e Urry 1997) e a formação de espaços e comunidades transnacionais. Como se pode deduzir da análise de Williams e Hall (2002), os diferentes tipos de fluxos tendem a produzir um duplo efeito de arrastamento: geram mais do mesmo e, por outro lado, estimulam novos fluxos com características distintas. O que acontece no quadro dos relacionamentos transatlânticos constitui um exemplo paradigmático desta bola de neve de mobilidades: o movimento de turistas europeus para Ponta Negra tem fomentado migrações com a mesma orientação, bem como deslocações turísticas e migratórias, sobretudo femininas, na direcção oposta, que, por sua vez, impulsionam novos trânsitos em ambos os sentidos. São vários os movimentos migratórios estimulados directamente pelo turismo, como a migração de pessoas reformadas e a migração laboral direccionada para a actividade turística (idem). Geralmente, como nota Barretto (2009), há mesmo uma ou várias estadias turísticas a preceder estes tipos de migrações, que poderão, por sua vez, fomentar novas formas de turismo, como é o caso da visita de amigos e familiares, mais conhecido sob a sigla VFR (visiting friends and relatives).

Considerando a complexa teia de interacções entre diferentes mobilidades, Williams e Hall (2002: 9-11) propõem um modelo de análise composto por quatro grandes estádios que configuram um ciclo de mobilidades: (i) formação de fluxos turísticos para uma determinada área, desenvolvimento gradual da indústria do turismo e grande procura                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 carreira, o envelhecimento demográfico nos países mais desenvolvidos, a agilização dos investimentos internacionais, a extensão dos direitos de propriedade através das fronteiras (Hall e Williams 2002, Hall 2005), as transformações da intimidade anteriormente debatidas e as alterações nos padrões de consumo e de lazer.

de mão-de-obra local; (ii) crescimento do sector, exigência de mais trabalhadores e de profissionais especializados, o que fomenta migrações internas e externas; (iii) massificação do turismo e emergência de movimentos migratórios internacionais decorrentes de antigos trânsitos turísticos, destacando-se as chamadas migrações de consumo, constituídas basicamente por pessoas reformadas (retirement migration), e as migrações laborais, associadas à procura de certas oportunidades profissionais, de negócio e, eventualmente, de algumas mudanças no modo de vida; (iv) as comunidades migrantes atraem a visita de amigos e familiares (VFR), podendo estes últimos acabar por seguir um trajecto migratório idêntico.

O turismo de massas representa, assim, um poderoso agente impulsionador de amplos e complexos encadeamentos de mobilidades. Aliás, tal como é destacado por Oigenblick e Kirschenbaum (2002), é bastante frequente as experiências turísticas proporcionarem referências sobre as condições socioeconómicas de um lugar que poderão vir a revelar-se decisivas na sua posterior eleição como destino migratório. A sondagem da viabilidade de uma hipotética e futura instalação permanente pode mesmo fazer parte, logo à partida, do conjunto de expectativas que os próprios turistas produzem sobre a viagem. A estadia de lazer representa, deste modo, também uma oportunidade de avaliar possibilidades de trabalho, negócio ou investimento e de recolha de elementos que permitam ter uma noção aproximada da qualidade e do estilo de vida que poderá ser usufruído. Deste exercício resultam factos e impressões a partir dos quais se estabelecem pólos de comparação entre o contexto de origem e o destino visitado, contribuindo para reforçar ou a atenuar a expectativa de concretização de um projecto migratório.

No contexto etnográfico em estudo, a intimidade representa o principal eixo de articulação do turismo e das migrações, as duas faces do mesmo complexo de fluxos passionais que dá forma a um espaço transnacional de expressão erótico-sexual, de relacionamentos esporádicos, de conjugalidade e matrimónio. A nível mundial são vários os exemplos de situações semelhantes e que, nos últimos anos, têm vindo a merecer bastante atenção por parte das ciências sociais, nomeadamente da antropologia. Contudo, este interesse tende a centrar-se no turismo enquanto veículo de transnacionalização da intimidade, embora, com alguma frequência, também se considerem as migrações que daí decorrem. Compreende-se, assim, a existência de um volume bastante considerável de investigação sobre o que comummente se designa por turismo sexual, uma designação controversa e que alguns autores evitam usá-la, ou só o fazem após um exercício prévio de clarificação conceptual.

Embora se possa admitir que estamos em presença de um fenómeno que existe em diferentes latitudes, incluindo a Europa e a América do Norte (Oppermann 1999), quase todos os trabalhos são realizados nos tais “porno-trópicos” (McClintock 1995) ou “sítios de desejo” (Mandersen e Jolly 1997) a que antes já se fez referência. Temos, assim, desde logo, investigação já desenvolvida em Ponta Negra e em praias vizinhas (Ribeiro e Sacramento 2006, Carrier-Moisan 2008, Cantalice 2009a, 2009b), noutras cidades eminentemente turísticas do Nordeste brasileiro, como Fortaleza (Piscitelli 2004a, 2004b, 2007c, Bezerra 2010), Recife (Carpazoo 1994) Salvador da Bahia (Filho 1998, Filho e Sardenberg 1998, Marquez 2009) e, mais para sul, no Rio de Janeiro (Silva e Blanchette 2005, Blanchette e Silva 2010). Na restante América Latina tropical são de relevar as pesquisas realizadas na área do Caribe, nomeadamente em Cuba, na República Dominicana e na Jamaica (Pruitt e LaFont, 1995, O’Connell Davidson 1996, Kempadoo 1999a, Taylor 2001, Brennan 2001, 2002, 2004a, 2004b, Cabezas 2004, Frohlic 2008, Simoni 2011). Do outro lado do Oceano Pacífico, o Sudeste asiático é, já há muito, uma geografia distinta no estudo do chamado turismo sexual (Cohen 1982, Truong 1983, 1990, Leheny 1995, O’Connell-Davidson 1995, Oppermann e McKinley 1997, Bishop e Robinson 1998, Rao 1999, Leung 2003). Aqui, destacam-se as Filipinas e, acima de tudo, a Tailândia, que, desde a presença militar americana nos anos 1960, se transformou numa espécie de capital sexual global (Cohen 2003)114. Em sentido oposto, o continente africano parece ainda não figurar como contexto cimeiro destes cenários, o que ajuda a explicar, de

                                                                                                               

114 A instalação de bases dos EUA no Sudeste asiático durante a guerra do Vietname, nomeadamente na

Tailândia, foi acompanhada pelo aparecimento de restaurantes, bares, casas de massagens, hotéis,

nightclubs e bordéis nas suas respectivas imediações (Cohen 2003: 60-61). Desta ecologia, que Cohen

(idem) designa por “pleasure belt”, resultavam diferentes tipos de relacionamentos, mais ou menos mercantilizados, entre os militares americanos e as mulheres tailandesas. Não se tratava simplesmente de prostituição. Era bastante frequente, por exemplo, a mesma mulher permanecer com o mesmo soldado durante a sua estadia no país, vivendo na mesma casa como se de uma esposa se tratasse. Era a chamada

rented wife. Algumas destas relações culminaram em casamento e, na maior parte dos casos, implicaram

a ida do casal para os EUA. A presença do exército norte-americano na Tailândia contribuiu, assim, para a disseminação global da imagem do país como destino sexual, à semelhança do que sucedeu noutros contextos de acolhimento de bases militares (Enloe 2000). Também em Natal, em plena Segunda Guerra Mundial, foram instaladas bases americanas com um contingente total na ordem de 10.000 homens (Júnior 1993), o que alterou significativamente a configuração do mercado passional local. Dessa época permanece ainda bem viva na memória colectiva da cidade a figura de Maria Boa (Maria Barros), dona de um grandioso cabaré que tinha como principais clientes as altas patentes militares norte-americanas. Ainda sobre o impacto das deslocações militares massivas na organização social da intimidade, veja-se Min (2003), que nos descreve como o Japão, durante a guerra da Ásia e Pacífico (1937-1945), mobilizou cerca de 200.000 jovens mulheres da Coreia (na altura colónia japonesa) para os bordéis das bases militares que haviam sido estabelecidas na China e noutros países do Sudeste asiático. Estas mulheres ficaram conhecidas como comfort women. Em 1999 tornaram-se “objecto turístico” com a criação do

alguma forma, o facto de a investigação relativa a esta área não ser muito abundante. O Quénia é uma das poucas excepções (Omondi 2003, Kibicho 2009).

Ao contrário do Sudeste asiático, a inserção da América Latina e, em concreto, do Nordeste brasileiro nos circuitos mundiais do turismo sexual terá sido mais recente. Recorrendo à análise dos conteúdos dos sites de viajantes à procura de sexo, Piscitelli (2005) constata que essa inserção tornou-se particularmente evidente em finais da última década do século XX. Apesar das suas especificidades, quase todos estes destinos têm em comum a presença conjugada dos quatro S’s do marketing turístico – sun, sand, sea, sex (Lowry 1993) – e são frequentados maioritariamente por turistas masculinos heterossexuais. Todavia, a presença de turistas mulheres nos mesmos lugares ou em contextos diferenciados, envolvendo-se com homens locais, começa também a ganhar alguma expressão (Phillips 1999, 2008, Taylor 2001, Herold, Garcia e DeMoya 2001, Frohlick 2008a, 2008b, Cantalice 2009a, 2009b), bem como o turismo gay, (Clift, Callister e Luongo 2002, Collins 2007). No entender de Phillips (2008), o turismo sexual feminino remonta à década de 1960, numa altura em que mulheres inglesas, alemãs e escandinavas se deslocavam em férias para o sul da Europa. Com a massificação do turismo terão começado a viajar para destinos mais distantes.

Quando se utiliza a designação de turismo sexual para qualificar os fluxos de pessoas para determinados lugares parece estar a identificar-se mais um tipo distinto de turismo, como o cultural, o balnear ou o rural. Até se poderá aceitar que assim seja no domínio do senso comum e no espaço mediático. Mais estranho é quando o meio académico dele se apropria de forma acrítica, não questionando a imensa carga de estereótipos, moralismos e pressupostos ideológicos que transporta. Alguns autores reconhecem, no entanto, que se trata de um conceito bastante problemático (Taylor 2001, Piscitelli 2004b) e de difícil operacionalização, como pude constatar no trabalho de campo em Ponta Negra. A principal razão para tal advém do facto de apresentar uma amplitude semântica incerta e uma grande volatilidade de sentidos, sendo usado para traduzir uma grande diversidade de cenários sociais em que o turismo e a expressão da intimidade estão relacionados. Impõe-se, por isso, que seja submetido a um exercício efectivo de precisão conceptual e de crítica epistemológica. Faço-o de seguida, partindo de linhas de análise sumariadas em texto prévio (Sacramento 2011).

Numa perspectiva francamente ampla, o conceito de turismo sexual é utilizado para fazer referência à circulação de pessoas, em tempo de lazer, que tem por base, ainda que não exclusivamente, expectativas de encetar relacionamentos afectivo-sexuais,

heterossexuais ou homossexuais, de natureza comercial ou não, com outras pessoas que se encontram nos destinos turísticos (Cohen 1986, Oppermann 1999, McKercher e Bauer 2003, Cabezas 2004). Aqui poderá enquadrar-se um conjunto bastante diversificado de situações, desde um extremo em que as relações evidenciam uma dimensão comercial, associada ou não à exploração e à coerção, podendo envolver crianças, até um outro caracterizado por relacionamentos não comerciais e voluntários entre adultos (Ryan 2000: 35-36). A par deste entendimento amplo existem visões mais circunscritas e estereotipadas, segundo as quais o turismo sexual corresponde a situações em que a experiência turística se entrecruza com a prostituição e a exploração sexual de mulheres e crianças, tendo subjacente uma estrutura de género que traduz o poder do homem sobre a mulher (Graburn 1983, Truong 1990, Hall 1996, Rao 1999, Enloe 2000). Nesta perspectiva, Jeffreys (in Taylor 2001: 749) defende que a designação mais adequada deveria ser “prostitution tourism”, destacando que o fenómeno resulta de uma socialização masculina ocidental na qual o uso comercial de mulheres para auto-satisfação sexual é tido como um direito natural da masculinidade.

Independentemente das suas diferentes acepções e utilizações, em regra o conceito tem sido empregue para traduzir as mobilidades de lazer de homens dos países ricos do hemisfério norte para determinados países pobres do hemisfério sul, onde acedem a relações sexuais com mulheres que se prostituem. Na argumentação de Enloe (2000: 36), o turismo sexual resultaria da convergência das seguintes circunstâncias: (i) conjugação de interesses entre as autoridades governamentais locais, ansiosas por assegurar novas fontes de renda, e o investimento estrangeiro no sector do turismo, disposto a apostar em viagens com uma forte componente sexual; (ii) mulheres do terceiro mundo economicamente desesperadas ao ponto de se envolverem em relacionamentos mercantis com os turistas; (iii) homens de sociedades afluentes à procura do que julgam ser mulheres mais submissas que as dos seus países de origem. As assimetrias económicas existentes entre ambas as partes são identificadas como o factor determinante de uma relação-transacção sexista e patriarcal em que a maior capacidade económica dos homens é invocada como o factor que lhes garante uma posição absolutamente dominante.

Quando o destino da mobilidade turística se situa num país desenvolvido do hemisfério norte deixa de ser tão consensual a utilização do conceito de turismo sexual, mesmo que o contexto seja fortemente sexualizado e acolha um grande número de

mulheres pobres do sul a trabalhar na prostituição, como é o caso de Amesterdão115. Ao que parece, só haverá verdadeiramente turismo sexual abaixo do equador, sendo o fenómeno apresentado como expressão neocolonialista (Graburn 1983, Krippendorf 1989, Ouriques 2005, Bem 2005), ideia que as próprias comunidades, por vezes, mobilizam nas suas cruzadas morais contra o que consideram ser as novas formas de exploração perpetradas pelas ex-potências colonizadoras116. Por outro lado, a utilização do conceito e a sua associação ao neocolonialismo parece só fazer sentido quando estamos em presença de turistas heterossexuais do sexo masculino. Ao se inverter o género dos intervenientes, ou seja, mulheres do Norte e homens do Sul, o uso do conceito deixa de ser tão taxativo. Geralmente é substituído por “turismo de romance” e os locais que se envolvem com as turistas designados por beach boys117 (Phillips 1999, Herold, Garcia e DeMoya 2001). Alega-se que eles desempenham um papel de mediadores culturais (Brown 1992) e que a relação assenta sobretudo na afectividade e não tanto numa contratualidade económica estrita (Pruitt e LaFont 1995, Dahles e Bras 1999, Dahles 2002, Cantalice 2009a)118. Nestas circunstâncias já não haverá prostituição nem opressão; simplesmente novas oportunidades de negociação e expressão das identidades de género (Dahles 2002). De igual modo, parece perder cabimento a tese da exploração neocolonial.

O estereótipo do turista sexual como um homem ocidental que se desloca a países pobres com o estrito propósito de se envolver sexualmente com mulheres vulneráveis revela componentes ideológicos e alguns enviesamentos, que importa considerar: (i) a                                                                                                                

115 Wonders e Michalowski (2001) destoam desta tendência ao considerarem Amesterdão um cenário de

turismo sexual, analisando-o no mesmo texto, lado a lado, com Havana.

116 Pela sua carga simbólica dou como exemplo destas cruzadas morais a “Marcha do grande pénis branco”,

realizada no dia 08/11/2006 em Ponta Negra, e cuja mobilização cidadã ficou a cargo do Movimento SOS Ponta Negra e do Grupo Pau e Lata. A acção de rua foi realizada num dos espaços nocturnos mais frequentados por turistas estrangeiros, conhecido pela Rua do Salsa, a que os locais frequentemente chamam Babilónia. Os participantes na marcha transportavam consigo uma escultura gigante, com cerca de dois metros, de um pénis de cor branca, na qual estavam desenhadas bandeiras de inúmeros países