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O mundo é formado não apenas pelo que existe, mas pelo que pode efetivamente existir

Milton Santos

Enquadrado no grande domínio da geografia humana, como já havia sido dito anteriormente, este estudo resulta de um processo de investigação que gostaríamos de situar no campo mais restrito de uma geografia urbana crítica assente em dois pressupostos – a cidade é injusta / a

cidade é uma construção social – sobre os quais se edifica o quadro teórico (epistemológico)

de referência. O nosso principal objetivo neste capítulo é trazer para a superfície as raízes éticas, políticas e ontológicas em torno das quais este projeto de investigação ganhou corpo, revelando aquilo que, em muitos casos, permanece oculto ou é silenciado. Evidentemente, procuramos fazê-lo a partir de uma visão eminentemente geográfica, não se tratando aqui de uma reflexão filosófica em sentido estrito, mas sim de um processo heurístico e construtivista, de revelação e descoberta, que visa sobretudo informar, enquadrar e orientar a presente investigação.

Neste sentido, começaremos por apresentar algumas das características gerais inscritas na configuração da geografia urbana crítica adotada neste estudo e relativamente à qual, gostaríamos de evidenciar, desde já, um olhar marcado pela humildade necessária à leitura de qualquer proposta que, à semelhança daquela que aqui apresentamos, não pretende afirmar-se enquanto expressão última, definitiva e acabada mas tão somente enquanto projeto em desenvolvimento, formulação incompleta e parcial que assume plena e imodestamente a sua “douta ignorância” (ver Santos, 2008). Depois, debruçamo-nos sucintamente sobre cada um dos pressupostos acima enunciados. O primeiro – a cidade é injusta – permite-nos aprofundar e clarificar algumas questões relacionadas com a reflexividade e o posicionamento do autor, em suma, com a orientação ético-política que preside a este estudo. O segundo – a cidade é

uma construção social – remete, por sua vez, para a perspetiva ontológica sócio-espacial

subjacente à presente investigação, oferecendo-nos por isso a possibilidade de explorar alguns dos seus aspetos mais significativos e definidores. Apesar da distinção estabelecida, consideramos que ambos os pressupostos devem ser vistos de um modo integrado e relacional, pois só assim a geografia urbana crítica tal qual a concebemos neste trabalho e à luz do qual este deve ser lido, pode formar um todo coerente.

Do nosso ponto de vista, a geografia urbana crítica encontra o seu espaço próprio de desenvolvimento no seio da vasta constelação de conhecimentos, saberes e experiências que constituem aquilo que se pode designar como teoria crítica (ver Calhoun, 2001; Moss et al., 2002). Em termos gerais, consideramos, na peugada de Boaventura de Sousa Santos (1999: 197), que esta é, muito simplesmente, «toda a teoria que não reduz a “realidade” ao que existe», visando, assim, a partir da crítica daquilo que nos é empiricamente dado a conhecer, compreender e avaliar o conjunto de alternativas existentes. Ao contribuir para a (re)construção do horizonte de possibilidades que o processo investigativo impulsiona, a teoria crítica reivindica também a necessidade de intervir no mundo porque é assim que nos tornamos capazes de «conceber realidades alternativas àquela que conhecemos, que poderão vir a existir através de práticas políticas, sociais e culturais que aliem a denúncia do que é considerado injusto, intolerável ou opressivo à construção dos movimentos sociais, instituições, subjectividades e práticas conducentes a transformações de sentido democrático e emancipatório» (Nunes, 1998/99: 16).

A nossa abordagem procura pois recuperar o sentido e significado originais da crítica e resgatá-los para os dias de hoje, à semelhança do exercício recentemente levado a cabo por José William Vesentini (2009). Nele, de um modo que acompanhamos, questiona-se a usual conotação negativa da crítica – enquanto censura, condenação e/ou julgamento desfavorável – e reafirma-se o seu significado etimológico primordial (do grego kritikòs) enquanto ato de exame e/ou julgamento que implica um momento de reflexividade esclarecida (mas não distanciada) assente na identificação dos fundamentos, limites e contradições daquilo que é estudado. Ao mesmo tempo, o lugar da crítica na nossa perspetiva está também associado a «um engajamento em algum projeto de libertação que amplie o espaço da democracia, que combata todas as formas de dogmatismo e de autoritarismo (…) [a uma contribuição] para a liberdade e a igualdade dos seres humanos, e nunca algo que justifique ou legitime qualquer tipo de ditadura, de autoritarismo ou de totalitarismo, de privilégios, de racismo ou de preconceitos» (ibid.: 36-37).

Num artigo provocatoriamente intitulado Uncritical critical geography?, Nicholas Blomley (2006) coloca em evidencia um conjunto de características comuns a muitos dos estudos situados na esfera de influência da geografia crítica, nomeadamente: i) a orientação emancipatória, libertadora e contestatária, não reformista; ii) o comprometimento teórico, o pluralismo e sincretismo conceptuais e a rejeição do empirismo, do positivismo e da “ciência

neutra”; iii) a abertura aos imaginários e representações como espaços de injustiça e dominação mas também de resistência e alternativa; iv) a confiança na capacidade de superação da alienação através da auto-educação reflexiva e das práticas progressivas e emancipatórias; v) a ligação profunda aos mundos do ativismo, da dissidência e da cidadania (ver Leitner e Sheppard, 2003).

Mais recentemente, Neil Brenner (2012), regressando aos fundamentos da Escola de Frankfurt, leva a cabo um exercício em torno da teoria urbana crítica, identificando um conjunto de quatro proposições-chave (mutuamente constituídas) que lhe dão corpo, designadamente: i) a teoria urbana crítica é teoria – pois assenta no primado da reflexão teórica acerca das dinâmicas urbanas existentes no capitalismo e não no desenvolvimento de fórmulas privilegiadas ou guias estratégicos para a transformação sócio-espacial imediata; ii) a teoria urbana crítica é reflexiva – pois baseia-se no pressuposto de que o conhecimento acerca de questões urbanas é situado (sendo liminarmente rejeitados quaisquer pontos de vista que afirmem estar acima e/ou fora dos contextos histórico-geográficos em que existem e das suas influências) e mediado através de relações de poder assimétricas (colocando-se o enfoque nas contradições, oposições e antagonismos existentes entre diferentes formas de conhecimento e saber); iii) a teoria urbana crítica rejeita a lógica da racionalidade instrumental – negando formas de análise e produção de conhecimento mecanicamente instrumentalizadas, tecnocráticas e orientadas para o mercado que promovem a preservação e reprodução das cidades existentes, exigindo, por contraposição, a vigilância atenta e interrogação constante das finalidades do conhecimento produzido sendo, por isso, eminentemente normativa; iv) a teoria urbana crítica sublinha a tensão entre o existente e o possível – pois preocupa-se com a “descoberta” e investigação das possibilidades alternativas e estratégias emancipatórias de urbanização que se encontram latentes nas cidades contemporâneas, não se esgotando na investigação e crítica das dinâmicas urbanas de exclusão, opressão e injustiça existentes no capitalismo neoliberal.

Não é incomum minimizar, desvalorizar e, no limite, considerar absolutamente irrelevante a teoria urbana crítica, sob o argumento de que ela se encontra completamente desligada da “realidade” concreta e das necessidades mais urgentes que exigem soluções imediatas. Sobretudo na geografia humana, disciplina que atribui um grande relevo à dimensão mais aplicada e instrumental do conhecimento, esta constatação elementar parece- nos justa e, por isso mesmo, a necessitar de contraditório. Peter Marcuse (2010), por exemplo,

enumera cinco grandes motivos que tornam a teoria urbana crítica relevante numa ótica eminentemente prática, designadamente: i) a sua capacidade para alcançar as raízes estruturais e sistémicas dos problemas urbanos (“desnaturalizando-os”) bem como as suas interligações económicas, culturais e políticas e determinar a configuração e posição relativa das diferentes forças em presença; ii) o efeito de lançar alguma luz sobre possíveis estratégias organizacionais, identificando possíveis parcerias, alianças e interesses comuns a partir dos quais se possam delinear objetivos de médio-longo prazo; iii) o facto de ir para além da mera avaliação e análise técnicas, auxiliando a interpretação abrangente dos prós e dos contras de diferentes propostas programáticas à luz da experiência histórica e das consequências das ações levadas a cabo pelos diferentes protagonistas; iv) a minimização das possibilidades de cooptação do protesto pelos poderes institucionais-formais, com a sua orientação eminentemente tecnocrata e programática; v) a função de auxiliar a politização das lutas sociais, sublinhando as suas implicações de médio-longo prazo e robustecendo a capacidade de confrontação no plano ideológico a partir do qual a resistência à crítica tende a ser mais intensa (distorcendo factos e princípios).

Por seu turno, Kurt Iveson (2010b), porventura incorrendo numa excessiva simplificação, colocou em evidência uma tensão que se estabelece entre as abordagens urbanas críticas (centradas na revelação e denúncia das relações urbanas marcadas pela injustiça) e as abordagens mais usuais (que colocam o enfoque nos desvios relativamente a determinados padrões de “normalidade”). Efetivamente, quando não alarga o horizonte de possibilidades urbanas alternativas, nem se desloca o seu foco para a formulação de propostas de esperança num mundo urbano mais justo, o momento crítico, sem dúvida fundamental, sublima um processo investigativo e fica aquém das suas reais capacidades. Por isso, na esteira de Iveson, consideramos que a superação desta limitação passa por privilegiar, nunca de um modo celebratório e superficial, o estudo de pistas ou indícios da existência de processos urbanos (aparentemente) alternativos, de resistência e antagonismo, que já hoje existam nas cidades contemporâneas. A este respeito, não podemos deixar de salientar a forte influência que exerceram sobre o nosso pensamento teórico alguns contributos-chave, tais como os provenientes das “utopias reais” (Wright, 2010), da “sociologia das emergências” (Santos, 2003b, 2006) ou das “artes de resistência” (Scott, 1990). Na geografia urbana crítica, tal qual a entendemos, os momentos de crítica, por um lado, e os momentos de revelação, proposta e afirmação construtiva das alternativas urbanas existentes, por outro, não sendo

mutuamente exclusivos, devem encontrar-se umbilicalmente ligados, estabelecendo entre si uma relação de grande cumplicidade que, não obstante, é também ocasionalmente marcada por alguma incomodidade e/ou desconforto.

O primeiro pressuposto em que assenta a geografia urbana crítica que preside a este trabalho – a cidade é injusta – diz respeito à realidade urbana que somos hoje, enquanto investigadores, capazes de apreender ou melhor, aquela que, como se de um(a) eco(grafia) se tratasse, nos é devolvida após sobre ela projetarmos o nosso posicionamento ético-político atual. Como salienta João Maria André (2009: 7), «hoje, como sempre na nossa história, experimentamos o mundo de muitos modos, com diversificadas cores, em espaços e tempos plurais, com densidades que nos tocam mais ou menos profundamente e a partir de memórias que, ao mesmo tempo que se inscrevem na nossa experiência de mundo, acolhem também na sua constituição os ecos dessas mesmas experiências e os fragmentos da sua dispersão». Por conseguinte, o reconhecimento de que a cidade é injusta não esgota o conjunto de significações e texturas (i)materiais constitutivas do mundo urbano contemporâneo. Constitui, no entanto, um retrato que nos interpela de modo tão pungente, vívido e inquietante que não podemos deixar de o considerar enquanto ponto de partida incontornável para o nosso estudo.

Apesar disso, a injustiça urbana não é experienciada de igual modo por todas as pessoas que nela vivem e coletivamente lhe dão corpo, dinâmica e transformação. Como é sobejamente conhecido, existem diferenças significativas no modo como diferentes grupos sociais são influenciados pela injustiça urbana. Não ficando indiferentes a esta realidade, a questão central que nos inquieta é afinal de uma grande simplicidade e, arriscamos dizê-lo, meridiana clareza – de que lado estamos? – E, embora a resposta aparentemente também o seja, a (incomensurável e paradoxal) complexidade do “real”, a natureza “híbrida” da nossa identidade de fronteira enquanto académicos/ativistas (ver Croteau, 2005; Fuller e Kitchin, 2004) e a tensão existente entre os diferentes “lugares” que ocupamos, levam a que nem sempre assim seja.

Assim, quando afirmamos que a cidade é injusta estamos plenamente conscientes de que ela é muito mais do que isso. É uma entidade altamente complexa e multifacetada que não se reduz àquilo que nesta investigação optámos por privilegiar a partir de um posicionamento ético-político que, não sendo estático, somos obrigados a “suspender” provisoriamente no âmbito da estratégia de investigação levada a cabo. No entanto, dado o papel central que a (in)justiça nela desempenha, pensamos que não apenas se justifica

plenamente a opção tomada como esta confere maior coerência ao estudo.

Para além disso, esta escolha encerra em si mesma um sistema de valores ético- políticos, o abandono de quaisquer pretensões de neutralidade e a rejeição de um posicionamento analítico exterior à realidade urbana que procuramos investigar. Assim, contrariamente ao que é mais usual – negligenciar, subalternizar, omitir ou (auto)censurar os valores ético-políticos subjacentes à investigação científica – optamos por destacar o importante papel que desempenham neste trabalho. No entanto, como é salientado por Gilian Rose (1997), ao integrarmos na nossa prática investigativa algo – valores ético-políticos – cujos significados nem sempre conseguimos controlar e compreender inteiramente, resta-nos tentar a sua identificação e revelação.

Na verdade, apesar de inscritos na arquitetura da investigação, a existência de sistemas de valores diferenciados, muitas vezes até antagónicos, leva a que nem sempre seja possível definir claramente qual o sistema de valores a privilegiar. Quando isso acontece, porém, devemos optar por aquele que faça mais sentido do ponto de vista do bem-estar e da satisfação das necessidades humanas. É isso que procuramos fazer ao afirmar que a cidade é

injusta. Deste modo, abandonamos definitivamente conceções relativistas nas quais é

atribuída igual validade e capacidade explicativa a todos os sistemas de valores ético- políticos. Ao invés, tomamos como nossa a posição defendida por Marshall Berman (1984: 123) que, ao refletir acerca do papel desempenhado pelos intelectuais de esquerda, dizia o seguinte: «nós, entre todos os movimentos políticos, orgulhamo-nos de prestar atenção às pessoas, de as respeitar, ouvir as suas vozes, preocupar-nos com as suas necessidades, criar laços com elas, lutar pela sua liberdade e felicidade. (Isto é como diferimos – ou tentamos diferir – das classes dominantes e dos seus ideólogos, que tratam as pessoas que governam como animais, máquinas, números ou peças num tabuleiro de xadrez, ou ignoram completamente a sua existência, ou que as dominam lançando-as umas contra as outras, ensinando-lhes que apenas podem ser livres e felizes às custas umas das outras)».

Ao defendermos que a cidade é injusta, mostramos não ser indiferentes a todas as pessoas cuja experiência quotidiana de vida urbana é marcada pela opressão, dominação e exploração nem à natureza sistémica, estrutural e institucionalizada dessa mesma condição existencial (e vivencial). Mostramos também uma grande preocupação com a dignidade, o respeito e a humanidade que a muitas pessoas é negada devido às características e dinâmicas inerentes à sua inserção no tecido sócio-espacial das cidades contemporâneas.

Na esteira de autores como Andrew Sayer (2011) ou Bent Flyvbjerg (2001), pensamos até que os valores ético-políticos não são algo que contamina ou ameaça o conhecimento científico, não são meramente subjetivos, dogmáticos ou irracionais, em suma, não são uma redundância ou manifestação de imaturidade e ingenuidade. Na verdade, consideramos que ciência e valores não são mutuamente exclusivos nem antagónicos e que é justamente quando o pensamento normativo (juízo de valor, posicionamento, reflexividade) se afasta do pensamento positivo (descrição, análise, explicação), retirando-lhe as bases de sustentação humana, que quaisquer ideias, conceitos e esquemas de interpretação acerca do mundo se podem tornar mais moralistas e irrealistas.

Efetivamente, em contraposição ao falacioso ponto de vista universal, neutro e objetivo (ver Porto-Gonçalves, 2006), assumimos que o conhecimento que procuramos aqui construir é inextricavelmente situado, contextual e frontalmente contra a cidade injusta. Como afirma Ramón Grosfoguel (2008: 119), «todo o conhecimento se situa, epistemicamente, ou no lado dominante, ou no lado subalterno das relações de poder (…) a neutralidade e a objectividade desinserida e não-situada da egopolítica do conhecimento é um mito ocidental». Para além disso, acrescenta ainda o autor, é também importante não esquecer que o simples facto do nosso “lugar social” se situar no lado oprimido das relações de poder, não significa que sejamos capazes de sempre e a todo o instante racionalizar e produzir conhecimento a partir dessa mesma posição. Existe uma tensão entre “lugar social” e “lugar epistémico” que não nos propomos evidentemente resolver neste estudo, mas sim sujeitar a uma constante autovigilância crítica que nos impeça de inadvertidamente pensar, escrever e argumentar como se fosse outro o nosso “lugar social” e locus de enunciação. Longe de significar a apologia do pensamento essencialista ou de uma mera reconfiguração da lógica do acesso privilegiado ao conhecimento, assumimos esta tensão que nos parece irresolúvel e, por isso, se devem sujeitar a uma constante negociação endógena e exógena. Em suma, trata-se aqui de reconhecer a existência de um conjunto de desafios inescapáveis ligados à incapacidade de transcender inteiramente os lugares sociais a partir dos quais investigamos, que são também aqueles de onde procuramos dar voz a comunidades a que não pertencemos e a pessoas que nos são relativamente distantes (ver Alcoff, 1991-1992).

O segundo pressuposto – a cidade é uma construção social – permite-nos, por seu turno, explorar a ontologia sócio-espacial do mundo urbano no duplo sentido em que este, por um lado, se encontra aberto à mudança, caracterizando-se pelo dinamismo e a transformação

constante e, por outro, é produto da ação humana que (i)materialmente o entretece e (re)constrói. Foi justamente essa a preocupação de Edward W. Soja (1980) que, num artigo pioneiro intitulado The Socio-Spatial Dialectic, no qual a influência do pensamento de Henri Lefebvre (1968/2012, 1970/2003, 1974/1991) é evidente, refletiu acerca da natureza do espaço (urbano). Nesse trabalho, o autor expressa uma preocupação, que partilhamos, com aquilo que se costuma designar fetichismo espacial, ou seja, a conceção do espaço (urbano) enquanto algo que é autónomo relativamente à história e ação humanas, independente e separado das estruturas, relações e dinâmicas sociais (ver Benno Werlen, 1993). Por vezes, atribuem-se ao espaço poderes e capacidades de causalidade quando, na verdade, pelo menos é esse o nosso entendimento atual, é à ação humana que deve ser imputada a capacidade agencial e transformadora. Efetivamente, a condição eminentemente espacial das múltiplas estruturas e relações sociais, aquilo a que Élvio Rodrigues Martins (2007) chama “fundamento geográfico do ser” e que Ruy Moreira (2004) designa como “geograficidade”, é algo inescapável à existência e desenvolvimento humanos e, por isso mesmo, torna-se fundamental integrar e (re)pensar conjuntamente as dimensões social e espacial.

Tanto ao nível das pré-condições (i)materiais da ação social, como dos seus significados constitutivos ou das suas interdependências contextuais e morfológicas, o espaço reveste, perpassa e influencia (contingentemente) toda e qualquer atividade humana (Sayer, 2000). A cidade, enquanto entidade material e imaterial, física e simbólica, concreta e abstrata, real e imaginária, é pois, uma construção social. Como afirma Soja, «o espaço em si mesmo pode ser primordialmente dado, mas a sua organização, uso e significado é um produto da tradução, transformação e experiência sociais. O espaço socialmente produzido é uma estrutura criada comparável a outras construções sociais resultantes da transformação de condições inerentes à vida na terra, do mesmo modo que a história humana representa a transformação social do tempo e da temporalidade» (ibid.: 210). Rejeitamos pois a conceção absoluta do espaço urbano como algo que é externo (ou paralelo) à existência humana e independente dela, que existe apenas enquanto recipiente, recinto ou palco (ver Smith e Katz, 1993) no qual a sociedade existe. Na verdade, perspetivamo-lo sempre enquanto algo que, não sendo apenas um mero reflexo da sociedade, pois a partir do momento em que é concebido afeta já aqueles que o geram na medida em que influencia as suas possibilidades de ação, é socialmente construído e se encontra em constante devir. O espaço configura-se, assim, enquanto espacialidade social (ver Schatzki, 1991; Shields, 1991; Simonsen, 1996).

Destacamos também a importância de equacionar sempre as implicações que a passagem do tempo tem na transformação do espaço urbano. A cidade é uma construção social que existe no tempo, não fora dele, o que implica que é simultaneamente o produto da sedimentação (i)material do tempo e uma construção permanentemente inacabada e aberta ao futuro, ou seja, à passagem do tempo. Doreen Massey (1992), por exemplo, salientou o erro de conceber o espaço enquanto algo fixo, em oposição à dinâmica do tempo. Do mesmo modo que o espaço é socialmente construído, também a sociedade é espacialmente construída e isso traduz uma dinâmica de transformação que não corresponde a uma conceção estática do espaço. A transformação do espaço influencia necessariamente o rumo de uma história que está longe de ser a-espacial. Assim, seguindo o raciocínio de Massey (ibid.), concebemos a cidade como um produto de complexas e intrincadas relações sociais que operam a todas as escalas espaciais (do local ao global) e cuja especificidade reside na sua “simultaneidade geográfica”.

Algumas implicações importantes desta abordagem relacional/multi-escalar da cidade são, por exemplo, a necessidade de repensar a noção de que as comunidades urbanas requerem sempre a existência de contiguidades espaciais, a dificuldade em definir as localizações exatas dos processos sociais responsáveis pela construção da cidade que podem hoje assumir formas menos tangíveis (ex: redes virtuais) e a existência de uma tensão permanente entre imobilidade e movimento que perpassa a experiência de vida urbana (Amin,