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2. Cidadania – a política em ato

2.1. Espaços: do urbano e da cidade

Muita da reflexão em torno dos espaços de cidadania tem colocado a tónica no papel reservado ao urbano, à cidade e aos seus múltiplos espaços constitutivos. Embora sigamos de perto esta leitura, gostaríamos de salientar que não temos da cidade uma visão fetichista, ou seja, não a concebemos enquanto entidade sócio-espacial mítica investida de qualidades “mágicas” e perenes relativamente ao desenvolvimento da cidadania. Por outras palavras, definida enquanto política em ato, julgamos que a cidadania não se manifesta exclusivamente em espaços urbanos, nem neles se esgota (ver Merrifield, 2011). Todavia, como veremos mais adiante, alguns dos atributos das cidades parecem efetivamente favorecer a sua emergência e desenvolvimento.

O projeto de esboçar um quadro interpretativo-analítico da cidadania a partir do urbano inspira, no entanto, alguns cuidados. Segundo Marisol García (2006), por exemplo, a noção de cidadania urbana pode revelar-se problemática na medida em que, ao colocar o enfoque na cidadania substantiva e não na cidadania formal, tende a minimizar a importância que adquirem as reivindicações e expressões de cidadania orientadas para uma maior articulação dos sujeitos políticos no estabelecimento de pontes e canais privilegiados que possibilitem um diálogo mais profícuo e transformador das componentes mais formais e institucionais da política. Enquanto a política social e a intervenção no tecido urbano por parte dos poderes públicos necessitarem, em larga medida, da alocação de recursos obtidos através da tributação fiscal, existirão sempre outros níveis de governação para além do urbano/metropolitano envolvidos no processo de construção da cidadania. Por conseguinte, pensar a cidadania a partir do urbano requer alguma sensibilidade relativamente às suas possibilidades, reverberações e manifestações concretas de enraizamento institucional. De um ponto de vista analítico, não devem ignorar-se as diferentes ligações que se estabelecem entre as práticas cidadãs, suas reivindicações e lutas, e as instituições que detêm o poder para assegurar a sua formalização e estabilização (muitas vezes incorporando-as no quadro jurídico-legal vigente).

Engin Isin (2008a), por seu turno, chama a atenção para algumas transformações profundas do nexo cidade-cidadania que não devem ser negligenciadas na reflexão conceptual

sob risco de fragilizar o quadro teórico que em torno desse mesmo nexo se edifica. Por um lado, é preciso levar em linha de conta a existência de outras fontes de identificação sócio- política, como a ocupação profissional, o consumo e os estilos de vida, que não são necessariamente circunscritos espacialmente e que se projetam e organizam extensivamente para além dos limites urbanos propriamente ditos; por outro, o facto da “pulverização” governamental da cidade, acompanhada de um aumento acentuado da mobilidade espacial de certos segmentos do seu tecido social, terem contribuido fortemente para que o cidadão comum se identique menos com a cidade enquanto espaço da cidadania.

Em contraposição, James Holston e Arjun Appadurai (1999) colocam o enfoque na primazia histórica da cidadania urbana, isto é, da cidade enquanto uma das arenas estratégicas fundamentais para o desenvolvimento da cidadania (ver Bauböck, 2003; Barker, 2009; Beilharz, 1996; Biehl, 1998; Bookchin, 1986, 2007; Ferreira, 2003; Isin, 1997; 2010; Pocock, 1995). Como sugerem os autores, «com as suas concentrações do não-local, do estranho, do misturado e do público, as cidades comportam de forma mais palpável o tumulto da cidadania. As suas multidões catalizam processos que decisivamente expandem e erodem as regras, significados e práticas de cidadania» (ibid.: 2). Efetivamente, a proximidade interpessoal e a densidade de contactos múltiplos e diversificados parecem ser alguns dos atributos mais importantes para o desenvolvimento e expansão da cidadania (Low, 2004).

Para Holston e Appadurai (1999), as cidades, sobretudo as grandes metrópoles, são espaços sociais privilegiados quando se trata da renegociação das condições de existência social e possibilidade da cidadania, pois é nelas que se (re)inscrevem as forças globais e que as densas articulações de recursos, pessoas e projetos ganham forma e se desenvolvem. É, aliás, nelas, que as contradições entre a cidadania formal e cidadania substantiva, de que já falámos anteriormente, se agudizam. Mesmo que de um ponto de vista estritamente formal (universal e de jure) a cidadania esteja hoje profundamente articulada com o Estado-nação, de um ponto de vista substantivo (concreto e de facto), relacionado com os antagonismos e tensões associados à sua construção, é no espaço das cidades que podemos assistir à sua constante reinvenção (Garcia, 1996; Gilbert e Dikeç, 2008; Scott, 1998).

Para Ash Amin e Nigel Thrift (2004), a cidade – enquanto confluência de fluxos e diferenças que a tornam um espaço social frenético – constitui uma arena privilegiada para experiências políticas não-tradicionais, isto é, sempre em mudança, fragmentadas, inconsistentes e entrecruzadas em muitos circuitos espaciais. Embora pequenas (moleculares),

rotineiras e até mesmo triviais, são esperiências de cidadania cheias de significado pois podem, em si mesmas, ser constitutivas da reinvenção e ampliação do campo político, enquanto espaço de formação, ação e desenvolvimento (ver Marceau, 2013).

A colisão entre a tradicional conceção liberal do cidadão-universal e a heterogeneidade e diversidade dos sujeitos políticos concretos que se instituem, organizam e atuam nas cidades, e a partir delas, revela-se inevitável. No centro desta tensão, encontra-se o fenómeno da imigração (proveniente do Sul Global, num sentido lato), aspeto central da (re)construção social da cidade enquanto espaço vivido, denso, heterogéneo e “complexamente volátil”, profundamente disruptivo da homogeneidade que é inerente à cidadania formal e por ela requerida (ver Capel, 2003; Rogers, 2000). Efetivamente, a tensão decorrente das migrações força o Estado a responder à existência de novas condições sócio-espaciais e a promover a criação de novos tipos de direitos fora do seu âmbito normativo e institucional e da arquitetura legal existentes. Deste ponto de vista, a cidadania reconfigura-se enquanto reivindicação dinâmica por direitos e não enquanto estatuto/atributo, sendo simultaneamente inclusiva e exclusiva. Contrariamente ao que poderíamos ser levados a crer, com base na multiplicidade de propostas que atribuem importância acrescida a novas morfologias da esfera pública, comunidades virtuais híbridas, redes diaspóricas e transnacionais, e outras combinações de soberanias não-espaciais, as cidades não se tornam irrelevantes mas, pelo contrário, parecem os espaços sociais mais importantes para a reconstrução da cidadania (ver Stevenson, 2003). A cidade afirma-se enquanto espaço de tensões e de relações de poder assimétricas ou, como escreveu Isin (2002a), enquanto campo de batalha através do qual diferentes grupos sociais definem as suas identidades, reivindicam as suas causas, conduzem as suas lutas e articulam direitos e obrigações de cidadania.

Sophie Watson (1999), por exemplo, reconhecendo que alguns grupos sociais têm menos acesso aos recursos gerados na cidade e menor capacidade de definir e controlar os espaços urbanos, sugere que as dinâmicas de cidadania tem, ao mesmo tempo, que ver com a forma como as pessoas se podem representar, constituir e identificar na cidade e com as diferentes reivindicações que fazem pelo acesso aos mais variados recursos implicados na construção social do espaço urbano. Embora se assista hoje a um reforço do indivíduo atomizado, consumidor, cidadão do mercado-mundo e das suas redes, perdendo, assim, força, a ideia do cidadão como sujeito político, como força motriz da transformação da sociedade, o espaço urbano tem sido, efetivamente, recolocado no centro do processo devido à potencial

mobilização estratégica para a construção da cidadania (facilitada pelas relações de proximidade) e por nele se manifestarem todas as tensões, dilemas e contradições inerentes ao seu exercício (ver Oliveira, 2000; Parazelli, 2001). Como afirmava Oliveira (1999: 93), «ao longo da história do conceito, por mais que sua noção tenha se ampliado e ganho um sentido abstrato e múltiplo, afastando-se da escala territorial da cidade, é neste espaço, delimitado politicamente, e na rede de lugares que o compõem, que a cidadania deixa de ser um em si e assume a sua dimensão mais concreta e cotidiana».