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4. Coordenadas metodológicas de uma geografia urbana crítica

4.1. Um caso de estudo como método de investigação

A escolha de um método é quase sempre, e este estudo não é exceção, uma solução de compromisso entre aquilo que se pretende estudar, os meios e recursos existentes para levar a cabo tal tarefa e, não menos importante, o conjunto de pressupostos sobre os quais se monta a investigação. Por conseguinte, consideradas algumas das possibilidades metodológicas que conhecemos, optámos por construir a nossa investigação em torno de um caso de estudo – O Teatro do Oprimido na Região Metropolitana de Lisboa – que concebemos enquanto estudo intensivo e exploratório de um retrato (dinâmico) da realidade sócio-espacial, com o objetivo de compreender um conjunto mais vasto de retratos similares (ver Gerring, 2004).

Figura 4.1. Estrutura do caso de estudo

Como foi anteriormente salientado, a identificação/delimitação deste caso representa um exercício de afastamento relativamente às dimensões conceptuais da questão central deste trabalho e um processo de aproximação à realidade concreta. Trata-se por isso de um esforço de tradução de uma questão eminentemente teórica e abstrata num caso de estudo (concreto), que nos permita dar uma resposta adequada a essa mesma questão. Do nosso ponto de vista, de modo a combinar amplitude e profundidade, o caso de estudo abordado nesta investigação requer que levemos em linha de conta três eixos analíticos complementares e necessariamente interligados, nomeadamente: i) o Teatro do Oprimido enquanto instrumento de cidadania; ii) o Alto da Cova da Moura e o Vale da Amoreira enquanto contextos geográficos; iii) o GTO LX, DRK e ValArt como protagonistas (Figura 4.1).

O uso de um caso de estudo enquanto método principal para o desenvolvimento de uma investigação não é muito usual e, quando isso acontece, não raras vezes, essa opção é alvo de crítica e desvalorização. Uma das causas mais imediatas para que isso ocorra é, pura e simplesmente, a grande dificuldade que existe na consensualização daquilo que é efetivamente um caso de estudo (Ragin, 1992). No entanto, mais do que pretender escalpelizar a pluralidade semântica e instrumental que a expressão caso de estudo encerra, até porque já avançámos uma definição operativa, talvez seja mais interessante e fecundo, centrarmo-nos, na esteira de Bent Flyvbjerg (2006, 2011), num conjunto de (grandes) equívocos que são responsáveis pela sua desvalorização enquanto método. Defendendo a qualidade do caso de estudo enquanto método e a validade científica do conhecimento que se pode produzir através da sua utilização, tal como nós aqui o fazemos, este autor rebate cada um desses equívocos e corrige-os (Quadro 4.1). De certo modo, as formulações corrigidas avançadas por Flyvbjerg, que descrevemos de seguida, visam também justificar e legitimar as nossas próprias opções metodológicas.

Relativamente ao primeiro equívoco, Flyvbjerg afirma que este decorre de uma conceção inadequada da ciência social (reduzindo-a a uma mera emulação, de pior qualidade, das ciências naturais) que considera que os seus objetivos primordiais são a construção de explicações universais e a capacidade de formular previsões. Em linha com a geografia urbana crítica que preside a esta investigação, Flyvbjerg afirma, pelo contrário, que o conhecimento contextualizado, minucioso e que presta atenção a detalhes e nuances, não só é algo a que as ciências sociais dificilmente podem escapar (e que em nada compromete a sua validade científica), como constitui o único tipo de conhecimento a que podem almejar.

Efetivamente, na linha de Robert K. Yin (2003), pode dizer-se que um dos traços distintivos do caso de estudo enquanto método é o desejo de compreender fenómenos sócio-espaciais complexos retendo as suas características holísticas, intersubjetividades e múltiplas significações contextuais.

Quadro 4.1. Caso de estudo: equívocos e correções, segundo Flyvbjerg

Equívoco Correção

conhecimento teórico e geral é mais valioso do que o conhecimento de um caso concreto.

teorias preditivas e universais não podem encontrar-se no estudo de questões humanas. O conhecimento de casos concretos é por isso mais valioso do que a vã busca de teorias preditivas e universais.

não se pode generalizar com base num único caso; logo, o caso de estudo não pode contribuir para o desenvolvimento científico.

frequentemente pode generalizar-se a partir de um único caso, e o caso de estudo pode ser central para o desenvolvimento científico através da generalização como suplemento ou alternativa a outros métodos. A generalização formal é sobrevalorizada enquanto fonte de desenvolvimento científico enquanto a “força do exemplo” e a transferabilidade são subvalorizadas.

o caso de estudo é mais útil para gerar hipóteses; isto é, na primeira fase de um processo de investigação, sendo outros métodos mais adequados para o teste de hipóteses e para a produção teórica.

o caso de estudo é, ao mesmo tempo, útil para gerar e testar hipóteses, mas não está limitado unicamente a essas atividades.

o caso de estudo contém um

enviesamento de verificação, isto é, uma tendência para confirmar as noções pré- concebidas do investigador.

o caso de estudo não tem maior enviesamento de verificação relativamente às noções pré-concebidas do investigador que outros métodos de investigação. Pelo contrário, a experiência indica que o caso de estudo contém maior propensão para a revisão de noções pré-concebidas do que para a sua afirmação.

frequentemente, é difícil sumariar e desenvolver proposições e teorias gerais com base em casos de estudo

específicos.

é verdade que sumariar casos de estudo é frequentemente difícil, especialmente no que diz respeito aos processos. É menos correto no que toca aos resultados. Os problemas em sumariar casos de estudo, no entanto, têm mais a ver com as propriedades da realidade estudada do que com o caso de estudo enquanto método de investigação. Frequentemente não é desejável sumariar e generalizar casos de estudo. Bons estudos podem ser lidos integralmente como narrativas.

Fonte: elaboração própria a partir de Flyvbjerg (2011)

No que diz respeito ao segundo equívoco, um dos que mais danos (e ansiedade) tem causado aos investigadores sociais, Flyvbjerg defende que generalização é claramente sobrevalorizada no atual panorama científico. Alguns dos mais notáveis progressos científicos, mesmo nas ciências naturais, assentam em casos de estudo criteriosamente selecionados (ex: Galileu, Darwin, Geertz, Foucault). Por outro lado, acrescenta ainda o autor, a generalização é apenas um dos modos através dos quais se pode ampliar e acumular conhecimento sobre o mundo. Evidentemente, é importante, mas não constitui, e essa é a ideia central, o único modo

legítimo de produção de conhecimento, pelo que a questão da representatividade e/ou generalização não têm de ser necessariamente encaradas como problemas inultrapassáveis (ver George e Bennett, 2005; Hardwick, 2009).

Quanto ao terceiro equívoco, que decorre do anterior, Flyvbjerg defende que os casos de estudo podem ser usados tanto para o teste de hipóteses como para a produção teórica. Evidentemente, o tipo de caso de estudo selecionado determina, em larga medida, a sua funcionalidade e os objetivos que se podem alcançar. Na presente investigação, considerou-se mais interessante ensaiar uma aproximação a um caso de tipo paradigmático, isto é, olhar para o Teatro do Oprimido na Região Metropolitana de Lisboa como um caso que, para além da sua própria riqueza intrínseca, pode eventualmente apresentar semelhanças e continuidades com outros processos de cidadania (através das artes) com vista à construção de cidades mais justas, que se debatam com desafios e limites similares e, por essa via, constituir-se enquanto referência, termo de comparação ou contraste.

O quarto equívoco, sublinha Flyvbjerg, está associado à noção de que o caso de estudo, tal como os métodos qualitativos, é menos rigoroso e permite uma maior subjetividade e arbitrariedade por parte do investigador. Como já vimos, a geografia urbana crítica, tal como a entendemos, assenta no pressuposto de que todo o conhecimento é situado, logo, é virtualmente impossível, a um investigador, escapar à sua condição existencial enquanto ser humano e a todas as reverberações ético-políticas e subjetividades que esta condição inevitavelmente acarreta. Tal como sugeriu Boaventura de Sousa Santos (1987: 22), em Um Discurso sobre as Ciências, «o argumento fundamental é que a acção humana é radicalmente subjectiva. O comportamento humano, ao contrário dos fenómenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objectiváveis, uma vez que o mesmo ato externo pode corresponder a sentidos de acção muito diferentes. A ciência social será sempre uma ciência subjectiva e não objectiva como as ciências naturais». Procurando ir ainda mais longe, Marcus A. Doel (2001), sugere, de modo intencionalmente provocatório, como é seu apanágio, que a objetividade é uma forma particular de subjetividade fundada na rejeição de tudo aquilo que é particular e singular. O abandono da quimera da objetividade, todavia, não significa que o rigor conceptual e uma cuidadosa e criteriosa sistematização metodológica não sejam possíveis de alcançar. Ao invés, na medida em que se identificam e assumem descomplexadamente as limitações das ciências sociais, pode-se até favorecer a produção de formas de conhecimento mais modestas, mas

socialmente relevantes.

Por último, o quinto equívoco, diz respeito à dimensão intrinsecamente narrativa do caso de estudo que impossibilita a simplicidade e “elegância” de fórmulas e/ou conceitos mais simples. Na verdade, assinala Flyvbjerg, a obsessão com a simplificação excessiva de problemas que são profundamente complexos e densos, como os da sociedade enquanto “sistema aberto”, que efetivamente é, pode revelar-se contraproducente, se negligenciarmos ou ignorarmos aquilo que são os paradoxos, contradições e ambiguidades próprias da realidade sócio-espacial concreta. Efetivamente, a reconstituição de processos através de narrativas, com todo o seu detalhe e subtileza, pode, em si mesma, ser vista como produto final de uma investigação e não como mera etapa intermédia rumo a uma formulação final simplificada, redutora e destituída de quaisquer elementos acessórios (ver Abbott, 1992; Vennesson, 2008). Como sublinham Katy Bennett e Pamela Shurmer-Smith (2002), o atributo distintivo do caso de estudo é o facto de prestar grande atenção àquilo que é singular, deixando que sejam as trajetórias específicas dos processos, fenómenos ou relações investigadas a ditar a configuração da narrativa construída.

Para além destes aspetos, julgamos também que, contrariamente àquilo que normalmente se julga, o desenvolvimento de um caso de estudo não tem de estar unicamente limitado ao uso de instrumentos e técnicas de natureza qualitativa (ver Stake, 2005). Na verdade, pensamos que este método é suficientemente flexível para poder acomodar uma panóplia diversificada de instrumentos e técnicas diferenciadas – qualitativo/quantitivativo, extensivo/intensivo, macro/micro, etc. – e que a triangulação, combinação ou mix metodológico (ver Bennett e Elman, 2006; Brannen, 2005; Mason, 2006; Spicer, 2004), pela abrangência e complementariedade que possibilita, é uma estratégia operativa altamente vantajosa do ponto de vista da aplicação, qualificação e enriquecimento do caso de estudo.

Em traços gerais, é também este o entendimento plasmado em Method in Social

Science: A Realist Approach, trabalho pioneiro de Andrew Sayer (1984/2010) que muito nos

tem influenciado, em que se defende a adoção de uma estratégia metodológica capaz de conjugar virtuosamente, por um lado, a análise extensiva, de pendor mais generalizante e através da qual é possível identificar, caracterizar e compreender padrões e regularidades sócio-espaciais e, por outro, a análise intensiva, que coloca o enfoque sobre atitudes e práticas concretas, procurando perceber as suas origens e causas. Enquanto a primeira, amplia o conhecimento de um terminado processo, ajudando à sua interpretação no quadro de relações

em que se insere, a segunda, aprofunda esse mesmo conhecimento atendendo às suas especificidades e atributos definidores. Quando usadas em simultâneo, como tentamos aqui fazer, essas leituras possibilitam a construção de um quadro analítico poderoso, vívido e detalhado.

Com efeito, a nossa investigação não corresponde só ao estudo do TO enquanto instrumento de cidadania, nem ao estudo do Alto da Cova da Moura e do Vale da Amoreira enquanto contextos geográficos, nem ao estudo do GTO LX, DRK e ValArt enquanto protagonistas, mas sim ao estudo integrado (e relacional) destes três elementos que, no seu conjunto, constituem e dão um sentido analítico-interpretativo ao nosso caso de estudo. O Teatro do Oprimido na Região Metropolitana de Lisboa diz, pois, respeito, ao processo através do qual o Teatro do Oprimido (enquanto instrumento de cidadania) é apropriado, mobilizado e usado pelo GTO LX, DRK e ValArt (enquanto protagonistas) a partir de diferentes contextos geográficos (Alto da Cova da Moura e Vale da Amoreira). Julgamos que uma melhor compreensão deste processo nos pode efetivamente ajudar a iluminar o caminho rumo à formulação de uma resposta, necessariamente incompleta e provisória, à questão que nos move: como (pode) contribui(r) a cidadania (através da arte) para a construção de cidades mais justas, quais os desafios e limites que enfrenta?

Por conseguinte, cada um dos eixos analíticos considerados encerra em si mesmo uma questão-chave – o quê, onde e quem, respetivamente – a que procuramos dar respostas nos três capítulos que constituem a segunda parte deste trabalho. No seu conjunto, perspetivadas sempre a partir das interrelações que estabelecem entre si, ajudam-nos a perceber como é que o processo que estudamos se desenrola. E essa, relembramos, é a interrogação vertebradora do nosso trabalho.

Temos pois um caso de estudo com três eixos analíticos – instrumental, contextual, “agencial” – que nos oferece a possibilidade de explorar as principais dinâmicas sócio- espaciais (desigualdades económicas e diferenças culturais), cidadãs (espaços, escalas e sujeitos políticos) e artísticas (neutralização e mercadorização) que descrevemos na primeira parte desta investigação, bem como o modo como o nosso caso de estudo com elas se entretece e articula. Considera-se que a adoção de uma perspetiva plural (tripartida), como é a deste projeto de investigação, possibilita a construção de uma visão de conjunto com alguma densidade, a partir do entrecruzamento dos contributos provenientes de cada um dos três eixos analíticos.