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Particularidades do teatro no campo da arte social e política

3. Arte – instrumento de cidadania

3.3. Particularidades do teatro no campo da arte social e política

Porventura o género artístico com tradição social e política mais vasta, o teatro, oferece-nos, um campo fértil para refletirmos acerca desta temática. No entanto, dado que no capítulo seguinte iremos aprofundar o Teatro do Oprimido enquanto instrumento de cidadania, vamos aqui apenas aflorar alguns contributos e pistas que consideramos importantes.

Quadro 3.1. Teatro burguês vs Teatro épico, em Brecht Teatro burguês Teatro épico

consome-lhe a atividade desperta-lhe a atividade proporciona-lhe sentimentos exige-lhe decisões

as sensações são conservadas como tal as sensações são elevadas ao nível de conhecimento o ser humano é imutável o ser humano pode ser modificado

tensão em virtude do desenlace tensão em virtude do decurso da ação acontecer retílineo acontecer curvilíneo

o ser humano como algo fixo o ser humano como realidade em processo o pensamento determina o ser o ser social determina o pensamento

sentimento razão

Terry Eagleton (1978), por exemplo, na sua reflexão acerca do teatro épico de Bertolt Brecht (1898-1956), sugere que este consiste num modelo de transformação não apenas do conteúdo teatral mas também do seu próprio processo de produção. Brecht estabelece uma rutura crítica com os pressupostos do teatro naturalista, clássico, “burguês” (ver Frederico, 2008, 2010), cuja expressão dramática reproduz diretamente o mundo, opera como um espelho que gera um público contemplativo e passivo, mero consumidor de uma representação que lhe é dada como produto acabado e imutável. Não existe, portanto, qualquer estímulo para que o público (re)pense criticamente a narrativa, os protagonistas e os acontecimentos retratados. Em Brecht, acrescenta ainda Eagleton, esta conceção estética é sujeita a crítica e reflete a crença de que a função do teatro é unicamente a de proporcionar uma forma de entretenimento hedonista e escapista a pessoas que fazem parte de uma realidade fixa e imutável (Quadro 3.1).

O teatro épico, pelo contrário, assenta no reconhecimento de que a realidade se encontra em constante (re)construção e procura demonstrar que personagens e acontecimentos são historicamente situados e existem num espaço social que não é imutável e pré- determinado de forma mecânica mas que se encontra em constante devir (ver Mattick, 2003). Por conseguinte, a peça brechtiana é concebida de modo irregular, descontínuo, aberto, contraditório, encorajando o público a adotar uma perspetiva dialética, plural e dinâmica das diferentes possibilidades em presença a cada momento (ver Mumford, 2009). Aparentemente paradoxal, a estratégia de distanciamento do público relativamente aos protagonistas visa impedir a sua identificação emocional com a narrativa e simultaneamente promover o questionamento e a inquietação acerca de atitudes e comportamentos naturalizados. Em Brecht, a peça é concebida menos como reflexo e mais como uma reflexão crítica acerca da realidade social, que apenas se concretiza, mesmo que parcial e incompletamente, no momento em que o público a recebe. No seu trabalho, o realismo manifesta-se não enquanto expressão de formalismo mas, pelo contrário, como algo que se (re)inscreve no próprio modo de produção artístico (Oesmann, 2005).

Num ensaio intitulado O Espectador Emancipado, Jacques Rancière (2010) sugere que as diferentes críticas a que o teatro tem sido sujeito podem reduzir-se a uma fórmula essencial: o paradoxo do espectador. Para muitos críticos, a posição de espectador é, em si mesma, intrinsecamente negativa porque: i) sendo observar o contrário de conhecer, o espectador permanece diante de uma aparência, um evento, ignorando o seu processo de

produção; ii) sendo olhar o contrário de agir, o espectador permanece imóvel e passivo. Da conjugação das duas linhas críticas, conclui Rancière (ibid.: 9) «ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de agir». Daqui decorre uma conceção eminentemente negativa do teatro enquanto palco de ilusão e passividade. A alternativa surge na forma de um teatro diferente, no qual o papel desempenhado pelos espectadores se reconstitui e estes se transformam em participantes ativos. Salvaguardando as devidas diferenças, tanto no teatro épico de Brecht como no teatro da crueldade de Antonin Artaud (1896-1948), é isso que se procura fazer. Tanto assim é que, para Rancière, as fronteiras da transformação e/ou reforma do teatro foram delimitadas por estas duas abordagens. Em ambas, o teatro se transforma no espaço social em que um público, passivo e inativo, se transforma no seu contrário e promove a emancipação que começa justamente «quando se põe em questão a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem elas próprias à estrutura da dominação e da sujeição» (ibid.: 22).

A eficácia do teatro social e político, ou seja, o potencial que pode ter para tornar os seus efeitos imediatos (mesmo que efémeros e de pequena amplitude) influentes na transformação individual e coletiva da sociedade, foram estudados por Baz Kershaw (1992). Admitindo a existência de interações múltiplas e sinérgicas entre o micro-nível dos sujeitos individualizados e o macro-nível da ordem social existente, o autor sublinha a necessidade de, para além dos efeitos causados ao nível da transformação das ações futuras do público, também se levar em linha de conta possíveis modificações de natureza estrutural ao nível cultural e comunitário. Observam-se, no entanto, várias dificuldades e perigos quando, de um ponto de vista analítico, se pretende demonstrar a existência de eficácia na arte social e política (ver Pinder, 2008). Frequentemente, aliás, este desafio revela-se insuperável. Embora o teatro social e político vise, fundamentalmente, a produção de efeitos nos sujeitos que partilham o espaço em que opera e se manifesta, assim que esse contexto performativo desaparece ou é desmantelado, torna-se virtualmente impossível apreender a influência da arte nas suas atitudes e comportamentos. Assim, o problema crucial emana não do teatro em si mesmo mas da relação que este estabelece com o complexo quadro social, discursivo e institucional, em que se inscreve e manifesta.

Em vez de colocar o enfoque na performance artística propriamente dita, obscurecendo qualquer consideração da sua própria eficácia social e política, a proposta

analítica formulada por Kershaw (ibid.) sugere que a abordagem se deve centrar no contexto histórico-geográfico particular em que opera e nas relações e articulações que estabelece com os sujeitos e comunidades envolvidas na sua (re)produção. O contexto passa assim a ser o eixo central para perceber o modo como o teatro social e político se inscreve em determinados espaços sociais e os procura transformar. Paralelamente, levando em linha de conta o seu enquadramento estético e as suas estruturas institucionais e culturais, a performance artística deve também ser vista como uma (re)construção sócio-espacial e não como algo independente da realidade concreta. É esta contextualização, simultaneamente, constitutiva e transformadora que nos permite compreender a eficácia do teatro social e político.

Apesar de considerar que o teatro não é o único género artístico com implicações sociais e políticas, Amelia Howe Kritzer (2008) defende que ele configura um contexto único por (des)envolver o público numa totalidade sócio-espacial concreta, mesmo que muitas vezes marcada pela efemeridade. O potencial do teatro, enquanto dispositivo de criação de significados sociais e políticos e reposicionamento e/ou (re)interpretação de fenómenos e processos sócio-espaciais particulares enquanto questões eminentemente públicas, reside justamente na sua capacidade de forjar e (re)construir espaços sociais e políticos imediatamente tangíveis (ver Correia, 2012). Walter A. Davis (2007) defende mesmo que o teatro visa a revelação daquilo que é normalmente mantido em segredo para, a partir daí, criar sensações de desconforto e inquietação que tornem impossível continuar a ignorar aquilo que foi colocado num espaço público concreto.

O teatro constitui pois um meio de apresentar problemas, explorar questões, inquietações e angústias, pressionar as instituições e formular reivindicações, em suma, de construir a cidadania e procurar a transformação das relações de poder. No entanto, Kritzer (ibid.: 3) também nota que «apesar do potencial político do teatro, são relativamente poucas as peças que em qualquer era apresentam ostensivamente objetivos políticos. Aquelas que o fazem devem ultrapassar desafios artísticos e sociais para encontrar e chegar ao público». Também por isso, o teatro social e político implica, quase sempre, um certo distanciamento relativamente à problemática sobre a qual incide.

Coloca-se também em evidência o facto do teatro social e político, por intermédio dos múltiplos antagonismos e colisões que encerra ao nível dos pressupostos, assunções, ideias ou perceções sobre a vida social e política, promover uma “alteridade transgressiva” que, em si mesma, é promotora de diálogo. Efetivamente, «para transformar o pensamento, o diálogo

teatral deve estimular diálogos internos nos quais os membros da audiência usam as novas perceções e ideias disponibilizadas na performance para desafiar perceções e ideias que haviam anteriormente reconhecido e aceite» (ibid.: 11). É importante notar, porém, que a posição do teatro na sociedade contemporânea é relativamente marginal quando comparada com a televisão, o cinema e outras expressões culturais e artísticas, o que tem consequências sociais e políticas paradoxais.

Ao ser considerado pouco importante e ser associado a uma realidade ilusória e meramente simbólica, oferece-se-lhe um maior grau de liberdade do que a outras manifestações artísticas (institucionalizadas e formais). Para além disso, a sua relativa marginalidade, limita o seu alcance e a sua capacidade de difusão, logo: «o impacto genuíno é raro, e o processo que a ele conduz incerto» (ibid.: 14). Se, por um lado, o recurso a mensagens sociais e políticas claras pode revelar-se contraproducente pela incapacidade de mobilizar e atrair aqueles que já partilham os pontos de vista e as perspetivas veiculadas, por outro, o uso de mensagens sociais e políticas demasiadamente subtis ou implícitas pode fazer com que o seu posicionamento não seja inteiramente compreendido. Estes são alguns dos dilemas e tensões que perpassam o teatro social e político enquanto arte que tenta informar, provocar e estimular o pensamento crítico, transformar valores e atitudes e, eventualmente, oferecer algumas pistas relativamente às ações a empreender.

Quadro 3.2. Ideias a reter para a pesquisa empírica (Capítulo 3)

i) a arte contemporânea é marcada por duas grandes tendências – mercadorização e neutralização. A primeira diz respeito à capacidade do capitalismo transformar tudo aquilo em que toca numa mercadoria, sendo que hoje a arte mais va lorizada é aquela que melhor serve os interesses da economia neoliberal, perpetuando hierarquias culturais, tornando-se exclusiva e inacessível. A segunda, significa a recuperação do potencial crítico da arte pelos poderes dominantes que a transformam num instrumento de estabilização do sistema. A arte encontra-se neutralizada quando o seu principal objetivo é a produção do “belo” mas também quando se orienta pragmaticamente para a resolução imediata de problemas concretos sem um horizonte social e político que enquadre a sua ação, abandonando quaisquer compromissos sociais e políticos e auto-censurando o seu potencial crítico;

ii) a arte social e política existe quando a arte se torna um instrumento de cidadania, uma arma no combate à dominação e opressão, subverte consciências dominantes e promove a dissidência, questiona a autoridade e desobedece às normas sociais vigentes, não se limita a representar a realidade e procura revelar aquilo que permanece oculto, transcende múltiplas determinações sociais, s e abre à liberdade, imaginação, fantasia, descoberta e sonho, reconfigura a paisagem social e política gerando novas estéticas de resi stência, dando voz àqueles que usualmente não a têm e contribuíndo para a alteração das relações de poder;

iii) no campo da arte social e política, pela sua capacidade de (des)envolver a audiência numa totalidade sócio -espacial concreta, o teatro ocupa um lugar de relevo. Desde o teatro épico de Brecht e a sua crítica ao teatro burguês , que o teatro passou a ser usado para

promover o questionamento, estimular a inquietação, o antagonismo, o diálogo, a participação ativa (e reivindicativa) dos espectadores. Paradoxalmente, o facto de ocupar uma posição relativamente marginal no universo das artes, significa que o teatro tem maior liberdade social e política mas uma menor capacidade para chegar a um público vasto. Para além disso, continua a ser extremamente difícil avaliar de modo adequado a sua eficácia política.

INTERLÚDIO / DA TEORIA À

PRÁTICA

4. Coordenadas metodológicas de uma geografia urbana crítica