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Os avanços tecnológicos e científicos dos séculos XIX e XX tiveram consequências concretas nas actividades de intervenção no património e na definição do perfil profissional do conservador-restaurador. Os grandes museus europeus são reflexo dessa realidade. Alguns aspectos sobre a matéria da obra de arte, até então desconhecidos, são desvendados pelo

Laura Mora,” Newsletter 6.1, 1991, http://www.getty.edu/conservation/publications/newsletters/6_1/mora.html

(acesso em 28 Fev., 2011). Ver ainda Nicholas Stanley Price, Mansfield Kirby Talley, Jr., and Alessandra Melucco Vaccaro, eds., Historical and Philosophical Issues in the Conservation of Cultural Heritage (Los Angeles: Getty Conservation Institute, 1996), 2.

45Philippot, “La restauration depuis 1945,” 17.

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conhecimento científico e o restaurador passa, então, a trabalhar, em princípio, de forma mais segura com o apoio do cientista, nomeadamente do químico.47

Como já referimos atrás, esta tendência é especialmente acentuada em Inglaterra e a

National Gallery de Londres, onde Kenneth Clark (1903-1983, director entre 1934 a 1945), bem cedo, cria um gabinete científico, é um exemplo a reter. No entanto, nos anos trinta, o Louvre também será munido de um laboratório científico e nos vinte anos seguintes a fórmula artesanal da oficina de restauro, à semelhança do que estava a acontecer nas outras instituições europeias, vai ser substituída. Michel Laclotte (1930, director do Louvre entre 1987-1995) refere que o modelo seguido em França foi o do ICR, criado por Brandi, em Roma.

A posição destas instituições não é contudo coincidente, bem pelo contrário. Nesta época, com o aumento da importância dos museus na sociedade e a crescente valorização do património móvel, a obra de arte em pintura é contemplada pelo debate que se abre entre as visões anglo-saxónica e a latina. Discute-se, nomeadamente, o processo de limpeza e a remoção ou permanência da pátina já atrás referido, além de outras questões técnicas como o preenchimento de lacunas e o repinte.

No decurso de polémicas levantadas pela comunicação social,48 a posição oficial da

National Gallery foi explicitada,49 defendendo-se que o dever do museu era apresentar os

quadros tão isentos quanto possível de alterações o mais próximo possível do estado original.50 A justificação é lacónica pois, como Muñoz Vinãs salientará, a vertente científica nunca teve uma base teórica que a justificasse.51

René Huyghe (1906-1997), conservador de pintura do Louvre, rebate os métodos científicos empregues pelos anglo-saxónicos, argumentando que a busca do estado original é um mito.52 Mais tarde, Michel Laclotte, sublinhando o apoio constante do historiador da arte ao

restaurador, afirma: 53

Foram assim, pouco a pouco, construídas uma prática e uma deontologia do restauro que se apoiavam numa experiência muito antiga e naquilo que os métodos de análise física e química podiam contribuir. (…) Se o restauro se apoia no estudo prévio físico e, eventualmente químico, um pouco frio, ele repousa, antes de mais, de seguida, na experiência e no talento.

47Macarrón Miguel y González Mozo, Historia de la conservación,, 75-76.

48Em 1946, aparecem denúncias no The Times sobre intervenções em obras de autores como Rembrant, Rubens Constable, entre outros. Ver Macarrón Miguel y González Mozo, Historia de la conservación, 77.

49National Gallery (U.K.), “The Cleaning of Pictures at the National Gallery,” in The Care of Paintings, ed. UNESCO, UNESCO Publications 778 (Paris: UNESCO, 1951), 128.

50Macarrón Miguel y González Mozo, Historia de la conservación, 76.

51Muñoz Viñas, Contemporary Theory of Conservation (Oxford: Elsevier Butterworth-Heinemann, 2005), 6. 52René Huyghe, “Le problème du dévernissage des peintures anciennes et le Musée du Louvre,” cit. por Macarrón Miguel y González Mozo, Historia de la conservación, 80-81.

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O autor sublinha, ainda, a importância do conhecimento empírico e a experiência acumulada do restaurador, remetendo o cientista para um plano secundário no acto de intervenção sobre a obra de arte e reduzindo a sua acção a um papel meramente técnico e auxiliar. Ao cientista fica assim vedada a visão global. A necessidade de recuperação material da obra requer do cientista exames e análises, mas não lhe é pedido que se preocupe com a obra de arte enquanto tal, pois essa é uma prerrogativa do historiador da arte e do restaurador, enquanto interveniente directo e manipulador da obra. O cientista é assim excluído e desresponsabilizado do resultado final do processo de restauro, ficando impedido de liderar o processo e de tomar decisões. Giovanni Urbani (1900-1969),54 historiador da arte e sucessor de Brandi, mas também mais próximo da atitude conciliadora de Philippot, considera ser essa a causa da dificuldade de diálogo entre cientistas e peritos da cultura, resultando no insucesso da própria conservação e impedindo o seu avanço. Segundo ele, a fase mais importante do processo de restauro é a avaliação do estado de conservação a qual não se pode reduzir à determinação do estado de conservação dos materiais por processos laboratoriais, mas exige, também, uma apreciação estética.55 Esta visão faz apologia da convergência do diagnóstico científico e do

estudo crítico das ciências humanas, apelando a um verdadeiro cruzamento de saberes.

Ernst Gombrich (1909- 2001), nos anos sessenta, critica o dogmatismo a que chegam as duas posturas, mas defende que se é necessário que os restauradores tenham em conta a química dos pigmentos, também é fundamental que entendam a psicologia da percepção. Em seu entender, os excessos da limpeza dos vernizes poderão estar ligados ao surgimento de uma nova estética no século XX, marcada pela paleta mais clara dos impressionistas e com a percepção, à época, do passado.56 Contrariamente a Urbani, Gombrich considera que, com a crescente influência da ciência e o surgimento do restauro científico, é o restaurador que tem vindo a ser desresponsabilizado. Restaurador e crítico têm que tentar compreender a obra na sua totalidade o que inclui o entendimento do percurso histórico da obra de arte, nunca esquecendo que a nossa visão está condicionada pela nossa cultura, o que nos impede assim de sermos objectivos e assépticos.

Depois do surgimento da teoria crítica e, nomeadamente, do impacto dos argumentos teóricos de Cesare Brandi já aqui referidos, a relação entre a percepção estética de uma obra de arte, a sua aparência material e os aspectos técnicos da conservação, vai continuar a ser debatida

54Historiador da arte e conservador promove a aplicação de técnicas científicas avançadas aos problemas de conservação. Na sua obra Problemi di Conservazione, publicado em 1973, explica como do trabalho analítico sobre os materiais se passou, na aplicação da ciência à conservação, para a investigação experimental. Ver Price, Talley, Jr., and Vaccaro, Historical and Philosophical Issues, 471, 480.

55Giovanni Urbani, “La scienza e l’arte della conservazione dei beni culturali,” in La scienza e l’arte della conservazione: Storici dell’arte, tecnici, restauratori a confronto sui temi ancora irrisolti del restauro, Ricerche di Storia dell’arte 16 (Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1982), 7-10.

56E. H. Gombrich, L'art et l'illusion: Psychologie de la représentation picturale, trad. Guy Durand (Paris: Gallimard, 1996), 48-49.

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por diversos autores. Na década de oitenta, proliferam referências a esta temática na linha da corrente latina.

Alessandro Conti estabelece a ligação entre o restauro e os problemas de interpretação estética da obra de arte e concluirá que aspectos técnicos, como a limpeza de uma obra, constituem sempre um problema no restauro.57 Para Thomas Brachert, o restauro requer um longo processo de interpretação e as questões técnicas são apenas uma parte do complexo processo de tomada de decisão que toda a intervenção de restauro exige. Segundo ele, as considerações artísticas e históricas não têm sido devidamente tomadas em consideração durante o processo de restauro das obras, concluindo que os restauradores precisam de um nível de educação superior.58 Antoinette King considera que uma solução técnica é simultaneamente

uma escolha estética, sendo ambas indissociáveis.59 Já no início da década de noventa, Giovanni

Carbonara considerará que toda a intervenção de conservação envolve considerações históricas e estéticas e nunca pode ser neutra.60

O diálogo entre o historiador da arte, habituado a liderar o processo e a chamar a si a responsabilidade de decisão, e o cientista que, como refere Casanovas,61 se encontra agora no

centro das operações pela via dos avanços tecnológicos, não é fácil. Assim, nesta área específica do conhecimento, verifica-se aquilo a que Charles Percy Snow chamou o debate das duas culturas.62 Snow chamou a atenção para a divisão do mundo intelectual da sociedade ocidental

do século XX em duas culturas: a cultura científica, a ganhar cada vez mais terreno, pois segundo ele, é uma cultura no sentido intelectual e antropológico do termo, já que expressa atitudes e padrões de conduta; e a cultura dos intelectuais (referindo-se às humanidades) que representa a cultura tradicional no sentido clássico, ou seja, aquela que historicamente dirigiu o mundo ocidental. Dois mundos, ambos constituídos por homens inteligentes, mas que não dialogam, embora a sociedade só tivesse a ganhar com o cruzamento dos seus conhecimentos. O autor conclui que “esta polarização é uma verdadeira perda para todos nós. Para nós como indivíduos e para a nossa sociedade (…) uma perda prática, intelectual e criadora.”63

Na realidade, no caso da actividade de intervenção no Património, poderíamos falar de três culturas, pois trata-se de integrar o percurso empírico e artesanal do restaurador, com o

57Alessandro Conti, “La patina della pittura a vent’anni dalle controversie ‘storiche.’ Teoria e practica della conservazione,” Ricerche di storia dell’arte 16 (1982): 23-32.

58Thomas Brachert, “Restaurierung als Interpretation,” Maltechnik Restauro, Nr. 2 (1983): 83-95.

59Antoinette King, “Technical and Esthetic Attitudes about the Cleaning of Works of Art on Paper,” Drawing 8, no. 4 (1986): 83.

60Giovanni Carbonara, “Lacune, filologia e restauro,” Materiali e strutture 2, n.º 1 (1992): 23-32. 61Luís Elias Casanovas, “A memória dos arquivos,” Páginas a&b: Arquivos & bibliotecas 20 (2007): 51.

62Charles Percy Snow, The Two Cultures: And a Second Look; An Expanded Version of the Two Cultures and the Scientific Revolution, Education Cam 576 (Cambridge: University Press, 1969).

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saber das ciências sociais e humanas e o das ciências naturais e exactas. Porém, nesta área do conhecimento, a ambivalência e o conflito surge em torno da dualidade: teoria e prática.

A propósito da discussão sobre as técnicas de intervenção praticadas na National

Gallery, Bomford refere que as controvérsias existentes revelam algo mais profundo do que uma simples discordância em relação aos tratamentos de restauro ou conservação adoptados nessa instituição. Subjacente à crítica, está uma dificuldade profunda em aceitar a posição ambivalente da conservação, única no ponto de encontro entre história, arte e ciência. Segundo ele, como o conservador-restaurador se pronuncia sobre a matéria de obras supremas da nossa cultura, os críticos vêem-no como um mero técnico incapaz de julgamento estético e histórico.64

Depois da apologia do “juízo crítico,” patente na teoria de Brandi, a descriminação entre os especulativos e os manuais deveria ter sido atenuada. Contudo, como refere Conti, Brandi afirmou “o pleno valor da própria actividade do crítico da arte.”65 Ou seja, o principal visado

por esta teoria não foi o restaurador enquanto operacional, mas sim o crítico e historiador da arte. Laclotte, seguidor do modelo italiano, é bem explícito quanto à importância do historiador de arte na decisão de conservação e restauro. Para ele, os restauradores no decurso do seu trabalho requerem a atenção do conservador especialista, normalmente um historiador de arte, pois é necessário examinar o conjunto de todas as questões que o restaurador se coloca. Há que existir um acordo, mas é entre o conservador do museu responsável pelas colecções e o responsável pelo serviço.66

Neste contexto, parece evidente que a colocação da tónica no “juízo crítico” em vez de enaltecer a posição do operacional e permitir o crescimento da profissão acabou por desautorizá-lo, submetendo-o mais uma vez ao domínio do historiador e crítico de arte. Não esqueçamos que segundo a Carta de Veneza “(o restauro) destina-se a conservar e a ‘revelar’ os valores estéticos do monumento,”67 mas a quem compete tal revelação? Quem é que possui a

formação e os instrumentos para essa elaboração teórica? Baseando-se na análise do texto de Paul Coremans, de 1959, que considera ainda hoje actual, Bergeon afirma inequivocamente: “o estudo crítico da obra de arte enquanto criação artística é feito pelo historiador.”68 Na Carta de

Veneza, a propósito da sobreposição de elementos de diferentes épocas num mesmo monumento

e a valorização de uns em detrimento de outros, afirma-se que “o juízo sobre o valor” dos

64David Bomford, “Conservation and Controversy,” IIC Bulletin 2 (1994): 3. 65Conti, “Vicende e cultura del restauro,” 104.

66Laclotte, Histories de musées, 116.

67“The Venice Charter,” sob “Restoration. Article 9.”

68Ségolène Bergeon, “Vers un vocabulaire commun de la conservation–restauration des biens culturels: Valeur d’usage et interdisciplinarité,” Bulletin des musées de France: Conservateur, restaurateur, deux métiers au service du Patrimoine 47, n.º 217 (1997): 69.

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diferentes elementos, bem como a decisão sobre a sua eventual remoção, não pode depender unicamente do autor do projecto.69

Apela-se, assim, ao ideal do trabalho de equipa interdisciplinar, tão proclamada a partir de então. Mas, voltando a Bergeon, para que a interdisciplinaridade se converta numa realidade, é necessário respeito mútuo e que todos estejam em pé de igualdade. Nessa eventualidade, a equipa interdisciplinar não desqualifica nenhuma das partes, pelo contrário; mas se os especialistas têm estatutos diferentes e se não foi criada uma linguagem comum, então ela será marcada pelo desequilíbrio e não resultará.70 Toda esta problemática ultrapassa, pois, o

tradicional conflito entre ciências exactas e a cultura tradicional mais ligada às ciências humanas de que nos fala Snow. É, antes de mais, um conflito entre teóricos, considerados intelectuais, e práticos habitualmente considerados incapazes de reflexão crítica. Uma das explicações para esta situação em concreto prende-se, assim, com a excessiva valorização da razão e da actividade intelectual, fenómeno especialmente evidente nas sociedades ocidentais do século XX, onde, como alerta o filósofo John Ralston Saul, a razão assumiu um poder ditador sobre outras qualidades do ser humano.71

A falta de comunicação entre os vários sectores e consequentes perdas para o desenvolvimento da profissão é sublinhada, como já foi referido, por Paul Philippot e por Giovanni Urbani, que sucedeu a Brandi no cargo de director do ICR. Ambos consideram que o progresso da disciplina de conservação só será possível com a colaboração entre o conservador- restaurador, o cientista e o historiador de arte. Philippot, que reforça a importância da interpretação crítica e da responsabilidade cultural do acto de restauro,72 tenta dirigi-la para o

seu actor principal, o conservador-restaurador. Neste sentido, como já foi sublinhado, as suas preocupações vão centrar-se na procura de um modelo adequado de formação e educação para este especialista.