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Em Portugal, a consciência contemporânea da existência de um património a salvaguardar nasce no século XIX, com o advento da sociedade liberal e a ideologia romântica. Certos autores indicam as invasões francesas e consequente vandalismo e saque, como o fenómeno gerador dessa consciência, inaugurando-se desta forma dramática a história moderna do património português, explícita, por exemplo, no Mapa dos estragos ocorridos em

Santarém.55 Há também quem realce o papel de Alexandre Herculano (1810-1877) neste

período, nomeadamente alertando para a situação de destruição dos monumentos do passado.56

A extinção das ordens religiosas, em 1834, e a colocação nas mãos do Estado de um avultado património edificado e integrado que incluiu numerosas obras de arte, constituiu um momento decisivo para a consciência nacional, relativamente à necessidade de uma política de salvaguarda do património Nacional.57 As obras-primas, de que se destacava o conjunto de

pinturas, foram recolhidas pelas Academias de Belas-Artes do Porto e Lisboa, aguardando a constituição dos museus distritais, desde logo pensados mas só tardiamente criados, com a excepção do Museu Portuense, criado em 1833.58 Esta demora teve consequências desastrosas

no estado de conservação destes espólios, apesar da decisão do Estado de atribuir formalmente a responsabilidade às academias de belas-artes, o que as levou a iniciar actividades na área da preservação e conservação, manifestando, desde cedo, preocupações no âmbito da conservação preventiva.59 Tanto no Porto como em Lisboa, a referência aos problemas de acondicionamento

impróprio das obras em edifícios readaptados, desde o convento franciscano de Santo António da Cidade no Porto ao convento de S. Francisco em Lisboa, são frequentes, nomeadamente no que se refere ao excesso de humidade.60

55Documento guardado na Biblioteca da Ajuda, pertencente ao conjunto de Memórias Históricas da Colegiada de Sta. Maria de Alcáçova, 1817, onde se pode ler: “Fez-se guerra aos homens, às artes e a todos aqueles monumentos que os séculos tinham respeitado.” Ver Luís Duarte Vilela da Silva, Memórias históricas da insigne e real collegiada de Santa Maria de Alcaçova da Villa de Santarem, offerecidas a El-rei Dom João VI nosso Senhor pelo cabido da mesma collegiada (Lisboa: Impressão Régia, 1817), 6. Este documento foi referido por Jorge Custódio, na sua apresentação oral no âmbito do Ciclo de Palestras do ICOM, que teve lugar no Museu da Ciência de Lisboa, sob o título “200 anos de defesa do Património Cultural português. Das Invasões Francesas à crise actual.”

56Marieta Dá Mesquita, “Arquitectura e renovação. Aspectos do restauro arquitectónico em Portugal no século XIX” (prova complementar de doutoramento em História da Arquitectura, Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, 1993), 23-26; Jorge Custódio, “Salvaguarda do património: Antecedentes históricos. De Alexandre Herculano à Carta de Veneza, 1837-1964,” in Dar futuro ao passado (Lisboa: Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, 1993), 34-71.

57Luísa Maria Picciochi Azevedo Alves, “Do empirismo à ciência: Um olhar sobre o percurso da conservação em Portugal do século XIX à actualidade,” Conservação & restauro: Cadernos, n.º 3 (2004): 13.

58O Museu de Arte do Porto, foi criado por D. Pedro IV, em pleno período do cerco da cidade, tendo em vista a salvaguarda da propriedade de muitos dos adeptos da causa absolutista que se viram forçados a abandoná-la. Ver Emília Ferreira, “Expor para salvaguardar: A importância da Exposição de Arte Ornamental para a história do restauro e da conservação do património móvel em Portugal,” in 40 Anos do Instituto José de Figueiredo, org. Rui Ferreira da Silva, Nazaré Escobar, e Alexandre Pais (Lisboa: Instituto Português de Conservação e Restauro, 2007), 42.

59Paulo Simões Rodrigues, “Da história da conservação e do restauro: Das origens ao Portugal Oitocentista,” in 40 Anos do Instituto José de Figueiredo (ver nota 58), 27-28.

60Ferreira, “Expor para salvaguardar,” 43, 46. Ver também Rodrigues, “Da história da conservação e do restauro,” 27-28.

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À excepção de um texto de Eng.º Henrique Gomes da Silva61 (entre 1929-1960, director da DGEMN) que se apresenta como a afirmação doutrinária que enquadrará as acções da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), já em pleno século XX,62

podemos afirmar que entre nós nunca existiram orientações precisas nem surgiu uma teoria da conservação e do restauro enquanto tal. Contudo, é possível detectar o seguimento de práticas e correntes europeias, quer através da leitura de textos de diversa natureza (desde pareceres técnicos, memórias descritivas, documentos de âmbito jornalístico, obras literárias, até um número diminuto de artigos e obras de crítica da arte e investigação histórica), quer reflectindo sobre exemplos práticos que vão desde a recuperação de edifícios ao restauro da obra de arte. Figuras como Viollet-le-Duc foram elogiadas por Ramalho Ortigão (1836-1915)63 e os seus

princípios aplicados, por exemplo, no restauro da Sé de Lisboa, sob orientação do engenheiro Augusto Fuschini (1843-1911).64 Já o pintor e arquitecto-restaurador Alfredo de Andrade (1839-

1915), que adquiriu experiência e desenvolveu uma carreira profissional enquanto restaurador em Itália, será, definitivamente, influenciado pelos princípios de Camillo Boito.65 As ideias de

Boito foram também difundidas por Gabriel Pereira (1847-1911) que criticou a limpeza excessiva dos mármores nos monumentos e defendeu a intervenção mínima e discernível, afirmando: “ (…) quando for indispensável algum conserto ou arranjo, que ele salte à vista.” Na linha de pensamento do teórico italiano, defende assim a conservação em detrimento do restauro, pois o objectivo é “salvar da ruína apenas.” Mas “quando for indispensável mexer e alterar” que se documente, previamente, com “fotografias” e “todas as representações gráficas possíveis.” O autor reconhece que o arquitecto-restaurador necessita de um conhecimento abrangente, pois segundo ele “para apreciar o monumento é preciso ser sábio e artista, ver a importância arqueológica, a aparência pitoresca, a beleza arquitectónica,” ou seja alguns dos valores de “monumento” já preconizados por Riegl. Apesar de atestar o impacto da teoria de restauro promovida por Viollet-le-Duc, relativamente à necessidade de evocação do espírito dos antigos arquitectos, para saber o que fariam ou teriam intenção de fazer, concluirá: “sem dúvida uma bela aspiração mas positivamente um disparate, um perigo.”66

61Henrique Gomes da Silva, “Monumentos nacionais: Orientação técnica a seguir no seu restauro,” Boletim da

Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, n.º 1 (Set. 1935): 19-20.

62Miguel Tomé, Património e restauro em Portugal, 1920-1995 (Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2002), 18.

63Ramalho Ortigão, O culto da arte em Portugal (Lisboa: A.M. Pereira, 1896), 15, http://purl.pt/207 (acesso em 20 Jan. 2009).

64Ver João Fagundes, “Conceitos de restauro. A Sé de Lisboa nos séculos XIX e XX” ([Lisboa], 1991), 10. Trabalho policopiado; Nuno Rosmaninho e Margarida Donas Botto, “O restauro da Sé Velha de Coimbra (1893-c. 1935),” Vértice, 2ª sér., n.º 54 (Mai-Jun. 1993): 23-31; José Augusto França, A arte em Portugal no século XIX, vol. 2, Terceira parte (1880-1910) e quarta parte (depois de 1910), 3ª ed. (Venda Nova: Bertrand, 1990), 74-76.

65Ver Lucília Verdelho da Costa, “Alfredo de Andrade, 1839-1915” (tese de doutoramento em História de Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1995). 2 vols.

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A propósito da intervenção numa pintura de Vieira Lusitano, cerca de 1859, as actas da Academia de Belas-Artes de Lisboa registaram um forte debate que deixa adivinhar opiniões diversas relativamente às acções de intervenção, nomeadamente, a oposição entre restauro e conservação, sendo o pintor Francisco Metrass (1825-1861) apologista desta última.67 Sousa

Holstein (1838- 1878), referindo-se aos problemas de conservação das obras anteriormente expostas em igrejas e mosteiros, acrescenta-lhes os danos causados pelos restauros.68 Porém, é

só no final do século, nomeadamente com a organização da Exposição de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola, a qual fomentou um novo período de discussão teórica,69 que

personalidades como Joaquim Vasconcelos (1849-1936),70 e Ramalho Ortigão denunciam o excesso dos restauros e as deficientes medidas de preservação, nomeadamente sob orientação dos académicos. O último autor alerta ainda para a necessidade urgente das entidades oficiais, neste caso a Comissão dos Monumentos Nacionais, definirem de modo claro a diferença entre conservação e restauro.71 Ortigão defende que “as ocasiões em que cabe restaurar são

relativamente raras,” já os “cuidados de conservação” deviam ser “obrigatórios e extensivos a todos os monumentos,”72 numa interpretação do termo que o aproxima da conservação

preventiva e dos ideais de Ruskin. A estes dois termos, Ramalho Ortigão associa ainda um terceiro: “concluir.” A conclusão e o restauro dos monumentos a um estado completo que poderia nunca ter chegado a existir, é uma das premissas da intervenção perfeita preconizada por Viollet-le-Duc. Porém, não é nesse sentido que Ortigão o aplica. Ao reflectir sobre o termo, incorpora antes um elemento de gestão patrimonial num país onde, com alguma frequência, as obras se prolongavam e ficavam por terminar.

À data, não é provável que Ramalho Ortigão ou Gabriel Pereira tivessem sido influenciados directamente pelas ideias, pouco difundidas, de Riegl, mas a verdade é que ambos revelam consciência dos diferentes valores atribuíveis ao património. Para Ortigão, independentemente do valor artístico ou histórico do monumento, este só deve ser concluído se for possível adaptá-lo “a serviços vigentes da civilização contemporânea” e acrescentará: “este mesmo critério económico se deveria aplicar à oportunidade das restaurações.”73 Nesta

perspectiva, o autor antecede a visão pragmática de Giovannoni.

Ao Ramalho Ortigão, que desempenhará então o cargo de relator da Comissão dos Monumentos Nacionais, ficamos a dever uma visão clara da situação do património português à

67Rodrigues, “Da história da conservação e do restauro,” 34.

68Marquês de Sousa Holstein (D. Francisco de Sousa Holstein), introdução ao Catalogo provisorio da Galeria Nacional de Pintura existente na Academia Real das Bellas Artes de Lisboa, 2ª ed. (Lisboa: Publicações da Academia, 1872), 11.

69Ferreira, “Expor para salvaguardar,” 41.

70Joaquim de Vasconcelos, “Reforma do ensino de desenho,” parte 3 in A reforma do ensino de Bellas-Artes (Porto: Imprensa Internacional, 1879), 157-58.

71Rodrigues, “Da história da conservação e do restauro,” 34-35. 72Ortigão, O Culto da arte, 166.

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época. A sua obra, O culto da arte em Portugal, constitui antes de mais uma crítica às entidades governamentais e, simultaneamente, um alerta à opinião pública, mas é também reveladora da circulação de ideias e sua assimilação numa sociedade que se quis cosmopolita e moderna, seguindo vários padrões externos dos países mais desenvolvidos culturalmente. Não admira, pois, que Ortigão, ao mesmo tempo que tece elogios a Viollet-le-Duc, destaque a importância da conservação e da gestão patrimonial, bem como do recurso às fontes e rigoroso estudo do meio envolvente ao monumento, na linha do que defendem os teóricos italianos. Como sinal objectivo destas contradições temos, por um lado, a sua proposta de remoção de um acrescento e consequente alteração de uma das peças mais simbólicas da ourivesaria nacional, a custódia de Belém exposta por ocasião da Exposição de Arte Ornamental Sacra;74 e por outro, o relevo que

deu ao trabalho do engenheiro Luís Mouzinho de Albuquerque (1792-1847) no Mosteiro da Batalha.75 Mouzinho de Albuquerque, infelizmente sem seguidores entre nós, aquando da sua

breve passagem pela direcção do restauro do mosteiro, entre 1840 e 1842, recusou a hipótese de reconstrução das capelas imperfeitas, destacando-se das ideias de Viollet-le-Duc, e prosseguindo, sem dúvida, uma abordagem exemplar, patente no estudo realizado.76

Já Manuel de Macedo (1839-1921), presidente da Comissão do Inventário e Beneficiação da Pintura Antiga em inícios do século XX,77atestando também o “estado caótico”

das ideias relativas à conservação e restauro e algum atraso do País “no respeito pelas produções artísticas das gerações que nos precederam,” publicou o único manual conhecido sobre o tema, a

Restauração de quadros e gravuras. Tal como os seus contemporâneos estrangeiros, com esta

obra de divulgação, o seu objectivo era habilitar o coleccionador e o amador “a exercer vigilância inteligente sobre as operações empregues pelo restaurador.”78

Tal como Ortigão, numa posição teórica algo ambígua, que denuncia a circulação das diferentes ideias europeias no nosso país sobre a actividade, Macedo distancia-se de personagens como Ruskin, criticando, tal como Luca Beltrami, os que se opõem ao restauro. Considerando “o conserto e a restauração” actividades que contribuem para “a conservação e duração de qualquer objecto artístico” e que os pode salvar da “ruína e destruição completa,” o autor defende que em objectos mutilados, essas actividades podem mesmo possibilitar o

74Ramalho Ortigão, Arte portuguesa, vol. 2, Catálogo da sala de Sua Majestade El-Rei, a obra artística de D.

Carlos de Bragança e escritos diversos, Obras completas de Ramalho Ortigão (Lisboa: Livraria Clássica, 1943), 31.

Segundo o autor, a remoção dos acessórios (pilares de prata no corpo central da peça), colocados cerca de um século após a realização deste objecto de ourivesaria nacional, implicaria, como o próprio explica, a reconstituição da forma e recolocação da luneta do hostiário, bem como a subida dos pináculos laterais a cerca da meia altura do zimbório e descida da cúpula; ou seja, a custódia sofreria uma profunda alteração estética relativamente ao seu aspecto actual. 75Ortigão, O Culto da arte, 21.

76Ver Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, Memória inédita acerca do edifício monumental da Batalha (Leiria: Typographia Leirense, 1854), 26-27, http://purl.pt/1347 (acesso em 5 Mai. 2008).

77Luciano Freire, “Elementos para o relatório acerca do tratamento da pintura antiga em Portugal segundo notas tomadas no período da execução desses trabalhos,” Conservar património, n.º 5 (Dez. 2007): 15.

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restabelecimento da “harmonia do conjunto” e restituir-lhes o “seu verdadeiro valor significativo, sem por forma alguma lhe diminuir o interesse, quer artístico, quer arqueológico.”79

O autor mostra ainda estar em consonância com as ideias expressas, poucas décadas antes, em manuais estrangeiros da mesma natureza. Efectivamente, em relação à especialidade de pintura, é em meados do século XIX que surgem alguns tratados de conservação e restauro.80

O autor segue as mesmas directrizes, nomeadamente na descrição de receitas, partilhando também, a nível teórico, a mesma concepção de restaurador o qual, sendo artista, tem de renunciar à sua criatividade, “fazer abnegação de si mesmo,”81pois é “escravo do mestre”82 que

concebeu a obra que retoca, respeitando na íntegra o quadro original.

Reflectindo uma influência marcada de autores franceses, nomeadamente de Ris- Paquot,83 Macedo considera que a “arte-ofício do restaurador” está dividida em duas actividades

distintas, a da restauração e a do retoque, defendendo que a última, sendo artística, deve ser exercida por um “pintor consumado e possuidor de talento.” No seguimento das teorias de Viollet-le-Duc, o restaurador deve assimilar “os estilos variadíssimos das diversas escolas e as suas modificações através das épocas consecutivas, as maneiras especiais e pessoais dos numerosíssimos pintores” e tem de “imitar n’um dado momento o toque, a pincelada, o pôr da tinta, o modo de ver, de sentir, de interpretar quer a forma quer a cor de cada um dos artistas (…).”84 Porém, numa aproximação aos valores dos teóricos italianos, convicto, pela sua

experiência, de que todos os maus restauradores pintam muito,85 acrescentará:86

Há casos em que a restauração prejudica; − o bom restaurador deve saber parar a tempo, e nunca por forma alguma substituir-se ao autor (…) Por isso, em grande parte dos casos, cumpre que o restaurador se limite aos processos relativos à conservação do quadro (isto é, à primeira parte do ofício);− o retoque deve ser reservado para quando se tornar indispensável, e ainda então usado com a máxima parcimónia.

79Macedo, Restauração de quadros e gravuras, 5.

80António João Cruz, “Em busca da imagem original: Luciano Freire e a teoria e a prática do restauro de pintura em Portugal cerca de 1900,” Conservar património, n.º 5 (Dez. 2007): 69.

81Oscar Edmond Ris-Paquot, L’art de restaurer les tableaux anciens et modernes ainsi que les gravures, contenant la manière de les entretenir en parfait état de conservation.... (Amiens: Chez l’auteur, 1873), 49.

82Ver Simon Horsin-Déon, De la conservation et de la restauration des tableaux (Paris: Chez Hector Bossange, 1851), 115. Ver também Ris-Paquot, L’art de restaurer les tableaux anciens et modernes ainsi que les gravures, 49. Ver ainda Cruz, “Em busca da imagem original,” 69.

83Manuel Macedo traduz integralmente partes da obra de Ris-Paquot: L’art de restaurer les tableaux anciens et

modernes ainsi que les gravures, de 1873. Na verdade, Macedo na sua obra segue de perto as ideias veiculadas por

Bonnardot e Ris-Paquot, apropriando-se de algumas das suas reflexões. Como ele próprio refere, indica os processos “recopilados de entre os tratados especiais mais dignos de confiança” e relativamente ao caso da pintura cita “os processos de Ris-Paquot.” Ver Macedo, Restauração de quadros e gravuras, 4n23.

84Macedo, Restauração de quadros e gravuras, 6. 85Ibid., 40.

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Esse retoque, onde estava implícita a reconstituição, nomeadamente nas zonas extensas de perda dos valores pictóricos, não devia ser executado senão mediante utilização de documentação comprovativa, tal como recomendam Boito e Beltrami, designadamente através da pesquisa de “qualquer estampa ou série de estampas, reproduções de quadros de mestres de diversas escolas, diligenciando encontrar em qualquer delas documento que elucide o restaurador,” mas a sua intenção é outra. Logo de seguida, aproximando-se novamente do arquitecto-restaurador francês, dirá:87

(…) na falta desse guia, o artista procurará, analisando o assunto da composição em todas as suas circunstâncias, orientar-se acerca do espírito dela; e, quando ainda assim não possa ter a certeza de haver penetrado absolutamente as intenções do pintor, proceda com modéstia.

Tanto Ortigão como Macedo revelam ter-se apropriado das ideias que circulam nos meios culturais europeus, mas acusam alguma indefinição em termos conceptuais. A leitura dos seus textos denuncia um quadro conceptual de enquadramento dos critérios de intervenção ambíguo, resultando as teorias apresentadas, frequentemente, numa mescla de valores e influências antagónicas, situação que se prolongará durante a primeira metade do século XX com outros autores nacionais. Esta abordagem não pode, contudo, ser generalizada pois Mouzinho da Silveira ou Gabriel Pereira, próximos dos teóricos italianos, revelam uma forte coerência de princípios. Veremos, mais à frente, como este último determinará o destino dos arquivos e bibliotecas no nosso país.

Embora tardiamente por comparação com a Europa, a voz de teóricos como Ruskin também teve seguidores incondicionais em Portugal. No virar do século XIX, Lino d’Assumpção (1844-1902), no seu Dicionário de termos de arquitectura define a palavra “restauração” como “profanação que se tem feito em Arte” e acrescenta: “esta palavra deve ser eliminada do vocabulário artístico e ser substituída por “conservação.”88

Contudo, é Assis Rodrigues (1801-1877) quem melhor caracteriza o que, em geral, no Portugal de Oitocentos, se entende pela actividade, no seu Dicionário Histórico de Pintura,

Escultura, Arquitectura e Gravura. O autor qualifica o restauro como o “acto de reparar e restituir ao estado primitivo qualquer obra de arte,” sendo o “restaurador” aquele que se dedica a esse exercício, enquanto “retocar” é “emendar, aperfeiçoar.” Para ele, o restauro perfeito é o mimético e imperceptível que “ apenas deixe, mesmo a homens inteligentes, a dúvida se foi ou

87Macedo, Restauração de quadros e gravuras,39.

88Tomás Lino d’ Assumpção, Diccionario dos termos d’Architectura: Suas definições e noções históricas (Lisboa: Antiga Casa Bertrand-José Bastos, 1895), 134.

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não restaurado.”89 Curioso é que o autor defina conservador como “a pessoa com habilitações

necessárias para saber conservar pinturas, medalhas, livros, manuscritos e objectos preciosos.”90

Esta definição aproxima-nos dos coleccionadores eruditos dos séculos precedentes, que constituíam as suas colecções e os seus gabinetes de curiosidades e, dentro das suas competências de doutos curiosos, tratavam eles próprios das colecções. Veremos, mais à frente, como este perfil de operador se manterá durante várias décadas do século XX, nomeadamente no que respeita à conservação e ao restauro de obras de arte em papel.

É nesta perspectiva que, mais recentemente, Simões Rodrigues defende que, no século XIX, em Portugal, a actividade de recuperação do património é dominada pelo “paradigma da reconstituição.” Reflectindo acerca do programa de restauro de um dos mais emblemáticos monumentos nacionais, o Mosteiro da Batalha, primeiro monumento a ser recuperado e classificado em Portugal, Rodrigues defenderá que aquilo que ele considera como quase uma “ideologia da reconstituição da pressuposta aparência original,” está patente na longa campanha de recuperação da Batalha, entre 1840 e 1900,91 nomeadamente procedendo-se à substituição do

apostolado do portal do monumento por cópias, dada a acentuada degradação das mesmas.92