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Decisão do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas: deslocados ambientais

3. DESLOCAMENTO HUMANO POR CAUSAS E ALTERAÇÕES

4.2 Deslocamentos ambientais sob interpretação dos direitos humanos: absorção no

4.2.1 Decisão do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas: deslocados ambientais

Ioane Teitiota é natural da República de Kiribati e vivia com sua família na Nova Zelândia desde 2007. Quando seu visto de trabalho expirou em 2010, eles permaneceram sem autorização em território neozelandês. Em maio de 2012, assistido por um advogado, Ioane apresentou pedido de reconhecimento como refugiado e/ou pessoa protegida ao departamento de imigração do país alegando ter o seu direito à vida violado caso fosse mandado de volta à República de Kiribati, a qual, segundo o autor, sofria com a elevação do nível do mar, mudança climática e falta de habitabilidade devido à contaminação da água e do solo.

Segundo a Lei de Imigração da Nova Zelândia, refugiado é aquele caracterizado pela Convenção de 1951 (e Protocolo de 1967). Dessa forma, em agosto de 2012, a reclamação do autor foi negada. Houve apresentação de recurso perante o Tribunal de Imigração e Proteção, Tribunal de Recurso e ao Tribunal Superior, tendo seu pedido negado em todos eles. Destarte, em 15 de setembro de 2015, o autor foi detido e recebeu uma ordem de deportação sendo removido, no dia 23 do mesmo mês, para Kiribati, e sua família partiu logo em seguida. Eles não retornaram para a Nova Zelândia.

Durante o pedido dentro das instâncias da Nova Zelândia e nos comunicados ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, onde submeteu o caso quando retornou à Kiribati, Ioane reiteradamente alegou, apresentando dados de pesquisas sobre a situação ambiental de Kiribati, que o local sofria desastres ambientais sequenciais o que dificultava e colocava em risco o exercício do direito à vida. No seu retorno, relatou que um dos filhos teve sérios problemas por consumir água contaminada / não potável, a qual causou furúnculos por todo o corpo. O autor alegava que ao serem reconduzidos para Kiribati o Estado da Nova Zelândia havia infringido o direito à vida, e que a elevação do nível do mar resultou em dois fatores naquele local: “(a) a escassez de espaço habitável, que por sua vez causou violentas disputas de terra que colocam em risco a vida do autor; e (b) degradação ambiental, incluindo contaminação do abastecimento de água doce por água salgada”363.

363 NAÇÕES UNIDAS. COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. International Covenant on Civil and

Political Rights. Ioane Teitiota x Nova Zelândia. Outubro de 2019. Publicação Janeiro 2020. Disponível em: <https://www.refworld.org/cases,HRC,5e26f7134.html> p. 5. Acesso em: 05 jun. 2020

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O Estado, em sua defesa, alegou que a República do Kiribati se comprometeu a atuar com políticas preventivas e mitigadoras dos danos causados à população devido à má qualidade da água, ao aumento do nível do mar e mudança climática.

O Comitê de DH da ONU não modificou a decisão do Tribunal Superior da Nova Zelândia, mantendo a não concessão do status de refugiado a Ioane e sua família, com o argumento de que ainda há tempo para o Estado do Kiribati lidar com as consequências ambientais e não considerando existir perigo iminente de vida.

O que essa decisão trouxe de novo, abrindo espaço para os deslocados ambientais, ainda que mediante decisão não vinculante mas de extrema relevância na cena internacional, foi a consideração deixada na decisão de que:

o Comitê lembra que a degradação ambiental, as mudanças climáticas e o desenvolvimento insustentável constituem algumas das ameaças mais urgentes e sérias à capacidade das gerações presentes e futuras de desfrutar do direito à vida (…) Sem esforços nacionais e internacionais robustos, os efeitos das mudanças climáticas nos Estados podem expor os indivíduos a uma violação de seus direitos desencadeando assim as obrigações de non-refoulement (não- devolução) dos Estados364.

O Alto Comissário do ACNUR, Filippo Grandi, em entrevista durante o Fórum Econômico Mundial, em 21 de Janeiro de 2020, comentou sobre a decisão do Comitê a qual, segundo ele, confirmou que àqueles que se deslocam dos locais que habitam por fatores ambientais são detentores de proteção internacional e isso irá implicar em diversas alterações nos governos:

Devemos estar preparados para uma grande onda de pessoas se movendo contra sua vontade” (…) “É mais uma prova de que os movimentos de refugiados e a questão mais ampla da migração de populações…é um desafio global que não pode ser confinado a alguns países365.

Esta decisão é referência no cenário dos deslocados ambientais366, principalmente, por reconhecer que diante das violações advindas da mudança climática, degradação

364 Ibid. p. 10-12.

365 REUTERS. World needs to prepare for 'millions' of climate displaced: U.N. Luke Baker. Janeiro 2020.

Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-davos-meeting-refugees/world-needs-to-prepare-for- millions-of-climate-refugees-u-n-idUSKBN1ZK1Q2> Acesso em: 20 jun. 2020

366 Importante frisar que, em 2017, o governo da Nova Zelândia manifestou o interesse em emitir vistos

para pessoas atingidas pelas mudanças climáticas: “a categoria experimental de vistos humanitários” pode ser aplicada nos próximos meses para dar asilo a pessoas que enfrentam maiores riscos por causa da subida do nível do mar. “É um pedaço de legislação que queremos executar em parceria com as ilhas do Pacífico.”

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ambiental e desenvolvimento insustentável provocam o movimento migratório forçado de indivíduos que sofrem diretamente com os efeitos perversos dessas situações. Ainda que não possua o caráter de obrigatoriedade quanto aos efeitos legais, preencheu uma das lacunas da proteção aos deslocados ambientais referente à sua condição de sujeitos de direito à proteção normativa, incluindo nisso o dever dos Estados receptores em não devolverem àqueles que chegarem por essas circunstâncias em seus territórios, da mesma forma que já o fazem respeitando o princípio do non-refoulement aos refugiados normativamente considerados.

Com este importante avanço, é esperado que novos padrões de proteção a esses grupos de migrantes forçados sejam definidos a partir desta interpretação, facilitando a concretização de instrumento internacional vinculante e global próprio aos deslocados ambientais, a fomentação de mecanismos regionais e a absorção interna dos Estados para a proteção, reparo e prevenção do deslocamento humano por causas ambientais.