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O ATO DE DECISÃO JUDICIAL E A ASCESE

4 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL: POR UMA PERSPECTIVA ONTOLÓGICA

4.5 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL E A ASCESE

Diante de tudo quanto exposto ao longo do presente capítulo, e tomando-se como pressuposto a circunstância de que o ato de decisão judicial é uma construção linguística voltada a obter o convencimento dos envolvidos no processo judicial, torna-se possível desconfiar do relevante papel que é desempenhado pela ascese tanto na construção do ato de decisão judicial quanto na obtenção do convencimento das partes do processo e da sociedade como um todo.

Qual o significado da palavra ascese? Ascese é o estado de ânimo daquele que é convencido pelo discurso, ou seja, é o que está aberto ao entendimento868. Mas qual a importância da ascese para o ato de decisão judicial compreendido como ato linguístico e de estrutura entimemática? Há, ao menos, dois fatores que a justificam.

O primeiro é o de compreender que, se o ser humano é carente (o juiz não tem a capacidade de conhecer o conflito real), a linguagem é congenitamente imprecisa, a comunicação é improvável869 (entre o caso real e o caso relatado há um abismo gnosiológico), e a única realidade com a qual o ser humano convive é a linguagem. Para que algum consenso, ainda que precário, seja alcançado ao final do processo, torna-se indispensável que o ato de decisão judicial se aproveite da ascese870. E o que é se aproveitar da ascese? É a capacidade de capturar as emoções envolvidas na situação jurídica processual, ou despertar emoções nos atores processuais constantes deste cenário, e utilizá-las, associadas com outros argumentos, para extrair o convencimento dos personagens da cena processual. Se todo ato de decisão judicial é um ato de interpretação, e se toda interpretação requer uma posterior argumentação que a justifique, então, a ascese é elemento indispensável ao ato de decisão judicial. Em suma, se a linguagem é imprecisa e a racionalidade não é exclusiva, a emoção é persuasiva.

Uma segunda razão para que se confira papel de destaque à ascese é a de que, como dito linhas atrás, na composição do ato de decisão judicial, a escolha precede à justificativa. Sendo certo que esta regra não é absoluta, porque a justificativa pode, em tese, alterar a escolha, também é certo que a justificativa só se sobrepõe à escolha quando esta não

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“[...] a atitude de querer entender os argumentos, sem estar a toda hora procurando contradições e contra- -argumentos [...]”, cf. ADEODATO, João Maurício Leitão. Filosofia do Direito – uma crítica à verdade na ética e na ciência (em contraposição à ontologia de Nicolai Hartmann). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 262.

869

Improbabilidade de entendimento entre os interlocutores envolvidos em uma dada situação, improbabilidade de divulgação da mensagem no seio de uma comunidade de comunicação e improbabilidade de obtenção do resultado desejado pela fala. Cf. LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. 4. ed. Tradução: Anabela Carvalho. Lisboa: Vega Limitada Passagens, 2006, p. 42-43.

870

pode ser cuidadosamente encoberta por meio de um entimema. Se for possível, então, quanto ao ato de decisão judicial, presumir o primado da escolha sobre a justificativa, ou, como prefere Coutinho, o primado da hipótese sobre o fato871, é possível também desconfiar que, na construção de um ato jurídico, assim como em um ato qualquer da vida cotidiana, a emoção precede a razão872, assim como o desejo precede a consciência873. Como assinala Hermann Kantorowicz, todo dever-ser é ser porque o dever ser é querer 874. Em uma só palavra, o ato de decisão judicial não é tão racional quanto parece875.

Não sendo as duas razões apontadas suficientes, convém, ainda, ressaltar outros aspectos que também colocam a ascese em evidência na composição do ato de decisão judicial. O primeiro deles é o de que se o ato de decisão judicial é, também, um ato de interpretação, então é certo que este seja também um ato de autocompreensão do juiz876. É

dizer, o ato de decisão judicial não é um ato de compreensão do caso relatado, antes se mostra como um ato de autocompreensão do magistrado, pois, entre o caso relatado nos autos do processo e o caso compreendido pelo magistrado, há, pelo menos, dois abismos, o gnosiológico e o axiológico. Abismos que não são superados pela compreensão do magistrado, pois a razão não tem capacidade de transpor os mesmos, mas que são contornados pela interferência da ascese na elaboração do ato de decisão judicial877. Logo, o caso que o magistrado julga não é nem o caso real, nem o caso relatado pela parte autora da demanda processual, mas, sim, o caso por ele autocompreendido, o caso que lhe serve de espelho878.

Ademais, a importância da ascese para a configuração do ato de decisão judicial torna-se ainda mais relevante quando se percebe que a própria linguagem não é, em si, fruto da razão, antes se revela uma decorrência do instinto879880, face à falta de adaptação do ser

871

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 32.

872

AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. O Amor como fundamento legitimador do Direito. Revista

Forense, v. 383. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 491. 873

LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência. Texto estabelecido por Jacques Alain-Miller. Tradução: Dulce Duque Estrada. Revisão do texto: Romildo do Rego Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1992, p. 46.

874

KANTOROWICZ, Hermann. La definición del Derecho. Madri: Revista do Ocidente, 1964, p. 6.

875

KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito, teoria do direito, dogmática jurídica. In: KAUFMANN, Arthur & HASSEMER, Winfried. (Org.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Tradução: Marcos Keel e Manuel Seca d Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002b, p. 43.

876

Ibidem, p. 151.

877

É o que Kaufmann denomina como sensibilidade jurídica, cf. KAUFMANN, Op. cit., 2002b, p. 175.

878

KANTOROWICZ, Op. cit., 1964, p. 9.

879

NIETZSCHE, Friedrich: Da retórica. Tradução: Tito Cardoso e Cunha. Lisboa: Vega, 1995, p. 93.

880

A linguagem não é nem uma mensagem de Deus enviada aos seres humanos, nem tampouco uma convenção celebrada entre eles, à similitude de um contrato social. Não é uma mensagem divina porque a própria figura de Deus é uma figura linguística. Não é uma convenção entre os interlocutores porque esta circunstância parte do pressuposto de que no momento do acordo existia mais de uma opção de linguagem, que uma delas é escolhida

humano ao mundo circundante881. Sendo certo que o instinto, como quer Nietzsche, é um ato inconsciente e finalístico882, então é certo que a linguagem é um ato irracional883 e que a consciência, que dela deriva, também o é884, pois quanto mais consciência se tem da linguagem, mais inconsciente se percebe que ela é. Portanto, compreender que o ato de decisão judicial é um ato exclusivamente racional subordinado a uma suposta norma genérica ou à lei não apenas é uma ficção moderna, como também é uma fundamentação aparente885 que subestima o poder da ascese.

Não é a racionalidade que viabiliza um ato de decisão judicial tolerante. A tolerância não é uma explicação, e, sim, uma sensibilização (ascese). Mas não uma sensibilização fraterna e piedosa, antes uma sensibilização egocêntrica e conflituosa, vez que não é o amor886 ao próximo que convence, mas é o amor a si próprio que consente. O que tem a capacidade de persuadir as partes não é o amor que uma tem pela outra ou pelo Estado-juiz, mas, sim, o amor que cada uma sente por si mesma. É esse amor que precisa ser aproveitado pelo magistrado na elaboração de seu ato de decisão, pois quanto mais sensível for o ato de decisão judicial, mais convincente ele será. Por conseguinte, o ato de decisão judicial, contextualizado na era pós-moderna, não é ato que encobre a irracionalidade da linguagem e a interferência da sensibilidade, mas ato que convive com tais fatores próprios da humanidade. “Qualquer língua é um dicionário de metáforas extintas”887.

de forma consciente e essa escolha é fruto do consenso entre os agentes da fala. Por isso, como quer Nietzsche, a origem da língua não é a consciência, pois a conciência é produto da linguagem. A origem da língua é o instinto.

Cf. NIETZSCHE, Friedrich: Da retórica. Tradução: Tito Cardoso e Cunha. Lisboa: Vega, 1995, p. 94-96.

881

KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito, teoria do direito, dogmática jurídica. In: KAUFMANN, Arthur & HASSEMER, Winfried. (Org.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Tradução: Marcos Keel e Manuel Seca d Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002b, p. 37.

882

NIETZSCHE, Op. cit., 1995, p. 94.

883

“O racionalismo é apaixonado da simetria, da construção lógica impecável, geométrica, perfeita. [...] Foi a mesma paixão da simetria que sempre levou os racionalistas à utopia”, cf. MACHADO NETO, A. L. Teoria da

Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 91. 884

NIETZSCHE, Op. cit., 1995, p. 91.

885

KAUFMANN, Op. cit., 2002b, p. 176.

886

Utiliza-se aqui as expressões amor, ascese e sensibilidade como expressões similares. Sabe-se que tais expressões apresentam distinções entre si e que Platão apontou diferentes significados para o amor. Contudo, o presente texto não tem a finalidade de aprofundar esta e outras questões relativas à matéria. Cf. KANTOROWICZ, Hermann. La definición del Derecho. Madri: Revista do Ocidente, 1964, p. 12-16.

887

5 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL, A ESTRUTURA DA NORMA E UMA POSSÍVEL