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O cenário da pós-modernidade e o seu mal-estar (Bauman)

1 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL: O JUIZ É UM SER HUMANO

2 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL: ENTRE A MODERNIDADE E A PÓS MODERNIDADE

2.2 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL NA PÓS-MODERNIDADE

2.2.1 O cenário da pós-modernidade e o seu mal-estar (Bauman)

Somente a sociedade moderna refletiu sobre si mesma como um produto da “cultura” ou da “civilização”, e atuou sobre esse autoconhecimento com os resultados que foram aprofundadamente analisados por Freud, conforme foi destacado anteriormente. Sendo assim, a expressão “civilização moderna”, como bem destaca Bauman313, é, por esta razão,

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BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Tradução: Maria João Pereira. Lisboa: Relógio D’água, 1997, p. 47-50.

309

LYOTARD, Jean-François. A Condição-Pós Moderna. Tradução: Wilmar do Valle Barbosa. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2006, p. 82.

310

Ibidem, p. 83.

311

LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução: Maria da Conceição Corte-Real. Brasília: Editora Unb, 1980, p. 91-94.

312

LYOTARD, Op. cit., 2006, p. 84.

313

BAUMAN. Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Tradução: Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.7.

um pleonasmo, vez que toda civilização é moderna, visto que foi somente nesta era que o ser humano perguntou-se sobre si mesmo e questionou-se sobre os resultados da civilização. É nesse contexto que o ato de decisão judicial, enquanto conquista da civilização, demanda que o magistrado, ao aplicá-lo, questione a si próprio, e, principalmente, questione os resultados decorrentes de sua aplicação no tecido social, à medida que esse autoquestionamento é sintoma típico da pós-modernidade.

Sendo certo, na Era Moderna, que a segurança foi o grande farol a iluminar o caminho da humanidade, não é menos certo que esta mesma segurança (ou ordem) trouxe consigo os mal-estares denunciados por Freud – a “compulsão”, a “regulação”, a “supressão” ou a “renúncia forçada” –, os quais, em grande medida, são consequências evidentes do binômio excesso de ordem X escassez de liberdade314. O mesmo binômio que marca o ato de decisão judicial na era moderna e que acaba por provocar o dilema entre legitimidade da decisão e impossibilidade de apreensão da verdade. Dilema que é causa de alguns dos mal- -estares enfrentados pelo ato de decisão judicial na era pós-moderna, dentre os quais, talvez, o mais saliente seja a incapacidade de um modelo de decisão judicial fundado na figura do Estado, vez que este já não detém o monopólio para resolução dos conflitos.

A busca desesperada da modernidade pela segurança, diante da tripla ameaça, esconde-se na fragilidade do corpo, na natureza selvagem do mundo empírico e na agressividade ínsita ao ser humano. Essa busca acaba por justificar o sacrifício da liberdade do indivíduo e a recusa ao prazer. O ato de decisão judicial, então, será mais certo à medida que o magistrado negue suas próprias fragilidades, despreze a contingência do mundo circundante, e reprima um dos aspectos de sua qualidade de ser humano carente, a agressividade que lhe é própria. O ato de decisão judicial, grifado pelo mal-estar da pós- -modernidade, é, deste modo, ato que contém a irracionalidade do humano que habita o magistrado, e que, por isto, não pode subestimá-la, uma vez que lhe é inerente.

Neste quadro, então, a busca pelo prazer é compreendida como uma possível causa de mal-estar do humano, ao mesmo tempo em que o excesso de ordem também acaba por redundar em igual consequência. Prazer e ordem entram em cena, em um teatro, em que quaisquer dos papéis protagonizados, se encenados como em um monólogo, provocam novos sintomas de mal-estar. Diante disso, para o ato de decisão judicial, redunda similar dualidade. De um lado, o excesso de ordem aliena o magistrado, encobrindo a ideologia inerente à construção dogmática do direito. De outro, a busca pela sensação de prazer causada pela

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BAUMAN. Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Tradução: Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 7.

crença do alcance da verdade distorce a elaboração do ato de decisão judicial. O magistrado, então, torna-se um pouco mais ciente do drama existencial que cerca o ato de decisão judicial. Diante disso, como antítese à tese instalada no seio social, o ser humano, na Era Pós-Moderna, prefere a desregulamentação à ordem normativa. Prazer é ser o juiz, que sentencia a condenação da segurança. Prazer que regozija o ego, que entorpece o humano e que se amplifica pelo desempenho da decisão. A decisão legítima já não serve à imparcialidade, mas ao desempenho. O desempenho é norteado pela economicidade da operação procedimental de decisão. Nesta nova era, objeto de lições de Edgar Morin315, a liberdade é o valor de referência, sem, no entanto, olvidar a beleza, a ordem e a pureza, os quais, agora, devem ser perseguidos por meio da espontaneidade, do desejo e do esforço individual.

Segundo Bauman316, a pós-modernidade não deve ser serva da liberdade, mas combatente da interação entre esta e a segurança, isto é, a civilização não deve ser parte, mas todo. Deve ser ambivalente, como a natureza humana e o ato de decisão judicial são: duais. Dual não é a dicotomia dos extremos, do verdadeiro ou falso, mas a capacidade da síntese que se presta ao convencimento, à medida que este interessa ao desempenho. O ato de decisão judicial dual desapega-se da verdade e da negação desta, da certeza e da incerteza. É, agora,

cético, no sentido que lhe confere o pirronimo317. Cético quanto a afirmações pré- -determinadas, vinculado à contingência do caso concreto. O ato de decisão judicial assume a

sua imprevisibilidade.

Negar a ordem é negar a insegurança inerente à existência humana, assim como pregar o fenecimento da liberdade é castrar o demasiadamente humano instinto de prazer. Talvez, por isso, séculos antes de Freud, Aristóteles já afirmara que a justiça318 está no meio, e não nas extremidades319. Mas o ponto de equilíbrio não é fórmula fácil, não é cliché, mas

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MORIN, Edgar. Cultura e Barbárie Européias. Lisboa: Instituto Piaget, 2007, passim.

316

BAUMAN. Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Tradução: Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 8.

317

O pirronismo é uma das expressões do ceticismo. O pirronismo é corrente filosófica sensível às constribuições da retórica, que tem Pirro como seu fundador, e Sextus Empiricus como um de seus principais colaboradores. No Brasil, um grande filiado a tal linha de pensamento é o Professor Doutor João Maurício Adeodato. Mais adiante, ao longo dos próximos capítulos, aprofundar-se-á a abordagem em torno do pirronismo. Ressalte-se, desde já, que não se adota aqui, em sua integralidade, a lição defendida pelo professor pernambucano, apesar de grande parte do presente trabalho encontrar-se respaldado em seus escritos. Cf. ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 345-376.

318

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 23.

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différance320, própria da perpétua autocriação do humano. Autocriação que também marca o ato de decisão judicial em um ciclo que se desenrola ao longo da existência do processo, em que o poder interage com o saber. O ato de decisão judicial já não aparenta mais a imagem de consequência necessária daquilo que advém da instrução. Já se desconfia que a instrução seja a película de racionalidade do ato de decisão judicial irracional321.

Desta forma, o homem e a mulher pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por uma porção de felicidade322. Se, na modernidade, o mal-estar proveio da circunstância da segurança tolerar uma liberdade demasiadamente diminuta na busca da felicidade individual, na pós-modernidade, o mal-estar decorre de uma espécie de liberdade de procura pelo prazer, que admite uma fração irrisória de segurança individual. De qualquer forma, tanto a liberdade quanto a segurança são valores. Valores que só permaneceram como valores em razão do descarte de outros valores. Este descarte precisa acontecer a fim de que os valores sejam auferidos323.

Em meio ao embate entre os valores da segurança e prazer, é que se vê submerso o ato de decisão judicial. O magistrado, tomado como ser humano carente, já não sabe em que informação acreditar, mas, ao mesmo tempo, vê-se obrigado a conferir certeza, a conferir fé a uma dada decisão. Uma fé que se subordina ao culto da velocidade e à lógica do desempenho, em que a decisão judicial precisa ser padronizada e publicada o mais rápido possível, na velocidade da internet. É nesse contexto que os valores se tornam fluidos e fugazes.

Se, de um lado, o descarte determina o valor, de outro, implica uma necessidade maior de valores. Os valores já não são sólidos e tangíveis, são satélites que gravitam em torno de ideologias. O livre-arbítrio do magistrado, então, entra em crise. O magistrado vê-se atordoado entre a ideia que o representa como um valor máximo e a ideia que o submete ao sacrifício diante do altar da segurança. Seja como for, em quaisquer das situações, a felicidade soçobra. E, desta forma, torna-se perceptível que aferir o ato de decisão judicial é, também, ponderá-lo em meio aos valores que o cercam. Valores que não são estáveis, como estável não

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Trata-se de conceito confeccionado por Jacques Derrida e de fundamental importância para compreensão de seu pensamento desconstrutivista. Este conceito procura realçar a alteridade do ser, a singularidade do texto, destacando o dilema que cerca a palavra escrita e a falada, bem como a diversidade de mensagens ocultas no texto conforme o contexto. Différance é, em síntese, a crítica a todo padrão. Nesse sentido, então, a linguagem desvincula-se de qualquer essência, e é tomada apenas enquanto forma. (DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução: Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 264-279).

321

CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Tomo II. Tradução: Jorge Guerrero. Santa Fé de Bogotá: Editorial Temis, 2000, p. 38-40.

322

BAUMAN. Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Tradução: Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.8.

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é a decisão judicial. Valores capturados segundo a singularidade do magistrado enquanto resultante de um esforço de equidade324.

O ato de decisão judicial equânime torna-se, então, o desejo de felicidade do magistrado mergulhado na era da pós-modernidade. A felicidade do ponto médio. Uma felicidade frágil. Mas, se a felicidade é valor, e o ato de decisão judicial vê-se envolvido pelo abismo axiológico que permeia, por exemplo, a relação entre juiz e acusado, o ato de decisão judicial é ato tendente ao fracasso. O ato de decisão judicial, assim, não é o porto seguro das expectativas sobre ele depositadas, mas o clímax das expectativas frustradas, sejam as depositadas pela sociedade, sejam as empenhadas pelas partes. Em suma, o ato de decisão judicial não resolve o conflito, é, em si, conflito.

Freud, ciente do problema que cerca a questão da felicidade, assevera que “[...] é possível supor que só se possa extrair intenso deleite de um contraste, e muito pouco de um estado de coisas”325. Poder-se-ia perguntar: por quê? Porque, “o que chamamos de felicidade [...] vem da (preferivelmente repentina) satisfação de necessidades represadas até um alto grau e, por sua natureza, só é possível como fenômeno episódico”326. Por que a decisão judicial seria, então, esse momento? Por que o magistrado seria feliz ao decidir? Será porque, nessa ocasião, ele alcançaria a verdade e desapegar-se-ia da dúvida? Será?

A felicidade é fenômeno que pressupõe castração e fugacidade. Mas não se entenda, por favor, que a toda castração sucede um momento de felicidade, ou que, a toda tentativa de imparcialidade, decorre um instante de equidade. A liberdade sem segurança não implica maior felicidade, nem o inverso é correto. O mesmo deve se considerar acerca do ato de decisão judicial: o arbítrio do magistrado não implica maior equidade, nem sua imparcialidade necessariamente remete a uma decisão mais equânime. Se a pós-modernidade requer a reavaliação de valores – e se reavaliar pode propiciar um momento de felicidade –, não se deve olvidar, também, de que reavaliar não garante, necessariamente, um estado de satisfação.

Não existe ganho sem perda. Por isto, a virtude está no ponto de equilíbrio, mas o ponto de equilíbrio não é o resultado de uma análise matemática de custos e benefícios327, vez que o custo de agora, no momento seguinte, pode tornar-se benefício. Logo, o custo e o

324

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Jéferson Luiz Camargo. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 32-43.

325

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão (1927) / O Mal-Estar na Civilização (1930[1929]). v. XXI. Tradução: Órizon Carneiro Muniz. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: IMAGO, 1974b, p. 27.

326

Ibidem, p. 25.

327

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Políticos e Constitucionales, 2002, p. 97-101.

benefício não são, mas estão, e isto torna a busca pelo equilíbrio ainda mais tormentosa. Este tormento agrava-se à medida que se percebe que o ponto de equilíbrio do ato de decisão judicial não é uma verdade demonstrável, mas argumentável328. Portanto, enquanto esforço de argumentação, o meio, do qual fala Aristóteles, não é resultado exclusivo de ato de conhecimento, mas resultante da interação deste com a emoção, quando, então, transforma-se em ato de persuasão329.

Logo, uma concepção pós-moderna do ato de decisão judicial não é estática, não é produto de ciência, vez que é, a um só tempo, ato de interpretação e de argumentação. Ato complexo que os vocábulos não conseguem capturar e retransmitir. Desta forma, o ato de decisão judicial escorado num catálogo de argumentos330 deve ser o resultado do esforço para se alcançar um lugar comum331 após terem sido testados os argumentos que o legitimam e a resistência destes diante do auditório332. Este auditório será maior quanto maior for a comunidade de intérpretes333. E, por conta disso, maior será também a possibilidade de refutação do argumento.