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O ato de decisão judicial como discurso

3 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL: ENTRE A OBJETOLOGIA E A RETÓRICA

3.4 O ATO DE DECISÃO COMO UMA FUNÇÃO VITAL

3.4.2 O ato de decisão judicial como discurso

Quando se concebe o ato de decisão judicial como discurso, é necessário pontuar, desde logo, quais os marcos que delimitam tal compreensão. O primeiro marco adotado é o da retórica. Portanto, quando se desenvolve aqui a tese de que o ato de decisão judicial é, também, um ato de discurso, é necessário ter claro que a primeira baliza de tal raciocínio é a retórica. Ademais, o segundo referencial do ato de decisão judicial interpretado como discurso é o problema da improbabilidade da comunicação. Problema este que guarda harmonia com alguma das contribuições oferecidas pelo desconstrutivismo, a exemplo da différance.

Tomando-se como premissa que a différance, como dito acima, é o ponto móvel da escala entre as oposições binárias, torna-se forçoso concluir que o diferente é, também, aquilo que se demonstra de difícil ou improvável comunicação. E por que tal conclusão se

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HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Organização e revisão Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos. Tradução: Adriana Beckamn Meireles et. al. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 93-94.

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p.368-384.

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HASSEMER, Winfried. Op. cit., 2008, p. 95-97.

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impõe? Porque a comunicação, em regra, baseia-se em códigos linguísticos binários606, como, por exemplo, legítimo e ilegítimo, bem e mal, lícito e ilícito. Ora, se assim o é, o diferente é o que está entre os opostos, e, portanto, aquilo que é de improvável comunicação. É dizer, o ser humano tem dificuldade em compreender e em se comunicar por meio de códigos linguísticos não-binários607.

Quando se assevera o problema da improbabilidade de comunicação608 do ato de decisão judicial compreendido como discurso, logo se percebe que o papel desempenhado pelo desconstrutivismo é também de grande relevância. Contudo, como no item anterior já foram tecidos alguns comentários sob a perspectiva desconstrutivista, não se faz necessário, nesta oportunidade, abordar novamente a mesma. Repetir tal abordagem seria, além de enfadonha, inútil. Sendo assim, as considerações que venham a ser feitas acerca do ato de decisão judicial como discurso e sua relação com o desconstrutivismo serão sempre considerações complementares, na medida que se demonstrem convenientes e oportunas para fins de esclarecimento da matéria.

Ainda no que toca aos esclarecimentos prévios sobre o que se entende aqui por considerar o ato de decisão judicial como discurso, importante é assinalar que não há qualquer redundância ao se dedicar um item que trate do ato de decisão judicial e, a seguir, valer-se de um outro item para abordar o ato de decisão judicial como discurso, porque linguagem e discurso não significam um único sentido.

Sendo certo que linguagem e discurso são significantes de significados próximos, não é menos certo que as aparências significativas também enganam. Linguagem e discurso são recortes distintos de um mesmo fenômeno, no presente trabalho, do ato de decisão judicial. Esta assertiva, no entanto, não implica afirmar que a distinção entre linguagem e discurso seja uma distinção exata e demarcada. Antes significa esclarecer que tais conceitos, por vezes, interpenetram-se, conferindo a impressão de que os limites que os demarcam desapareceram.

Desta forma, apenas para fins de esclarecimento, o que se compreende aqui como discurso é a rede de argumentos desconstruível e de improvável comunicação destinada à persuasão do outro. Ao passo que, por linguagem, entende-se o fenômeno referente à teia linguística organizada de forma semântica, sintática e pragmática, com potencial de convencimento e de infinita possibilidade de desmonte. De qualquer sorte, convém insistir,

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LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. 4. ed. Tradução: Anabela Carvalho. Lisboa: Vega Limitada Passagens, 2006, p.39-44.

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Ibidem, p. 50-57.

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uma vez mais, que tais definições não são estanques, mas se aproveitam umas às outras. Esse aproveitamento, certamente, não é motivo de admiração, pois a comunicação, sendo produto da ação humana, apesar de não lhe ser exclusiva609, tem como uma de suas principais características a ambivalência.

Obedecendo-se, assim, à ordem de exposição dos marcos que delimitam a compreensão do ato de decisão judicial como discurso, faz-se necessário iniciar os esclarecimentos a partir da perspectiva retórica. Partindo para uma análise retórica do ato de decisão judicial compreendido como discurso, o primeiro aspecto que se deseja ressaltar a esse respeito é o relativo ao problema da falsa distinção entre argumentação e demonstração. Em que pese Perelman e Olbrechts-Tyteca empenharem-se no estabelecimento de tal distinção610, o ato de decisão judicial não deve tomá-la por base, vez que, como assinala Warat, a demonstração é, também, uma estratégia argumentativa611, a qual, no mais das vezes, confunde-se com o recurso retórico do exemplo. Ademais, a distinção entre demonstração e argumentação, para fins de compreensão do ato de decisão judicial como discurso, também pode ser entendida como dúbia, vez que, como assevera Reboul, certos argumentos possuem aspecto demonstrativo612.

Outro motivo que também leva à abolição de tal distinção é a percepção de que a linguagem técnica ou profissional empregada no procedimento de demonstração também padece dos mesmos problemas que a linguagem coloquial ou vulgar relativa ao procedimento de argumentação. Em ambas as hipóteses, as linguagens veem-se envolvidas por ambiguidades, polissemias, vaguezas ou, ainda, emprego excessivo de conotações. Tanto a linguagem científica quanto a linguagem jurídica ou poética caracterizam-se pela ausência tratada por Derrida613, e se valem da persuasão, como destaca Pierre Oléron, citado por Reboul614.

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Como já foi sustentado no corpo do presente capítulo, a linguagem e a comunicação não são instrumentos exclusivos dos seres humanos, vez que entre os animais também é possível observar semelhantes fenômenos. Sobre o assunto, consulte-se o item 3.4, relativo à função vital. Nesse sentido, consulte-se MACINTYRE, Alasdair. Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the Virtues. Illinois: Open Court, 1999, p. 33- 35, bem como DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução: Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp, 2002, p. 24-31.

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PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação – A Nova Retórica. Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 15-16.

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WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito I. Interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 97-98.

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REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 92.

613

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução: Miriam Chnaidermann e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 242-244.

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“Pierre Oléron afirma assim que a própria demonstração científica não é tão pura e rigorosa quanto diz

Não fosse isso suficiente, pode-se consignar, com apoio em Reboul, que a demonstração, em realidade, é uma espécie de argumento, o argumento negativo615. O argumento negativo é uma exigência lógica mínima que todo argumento precisa observar e que acaba por constituir uma espécie de ética na argumentação616. A demonstração transforma-se, assim, em um critério argumentativo útil para distinguir o silogismo retórico do silogismo sofístico. E, desta forma, a demonstração, agora argumento, aproveita-se da lógica e a transforma também em argumento.

Por fim, ainda sobre esse primeiro ponto do aspecto retórico do ato de decisão judicial compreendido como discurso, ou seja, sobre a falsa distinção entre argumentação e demonstração, convém consignar três razões para afastar tal distinção. A primeira é que tanto a demonstração como a argumentação dirigem-se a auditórios. Não ao auditório universal de Perelman e de Olbrechts-Tyteca617, mas a um auditório específico618. A segunda é a de que tanto a argumentação como a demonstração sofrem com problemas de linguagem. E a terceira, tanto na argumentação quanto na demonstração as conclusões apresentadas são contestáveis619.

Um segundo ponto que se deseja abordar acerca do ato de decisão judicial como discurso é a sua composição retórica. Nesse sentido, o ato de decisão judicial passa a ser composto por dois elementos: os argumentos e a oratória620. Oratória que aqui deve ser entendida em sentido mais abrangente, para compreender tanto o desempenho da ação, do discurso verbal, quanto a desenvoltura da elocução, do discurso escrito. Mas qual a importância em assinalar tais elementos do ato de decisão judicial analisado como discurso retórico? Tal importância figura-se por três faces.

A primeira face é a de perceber que, quanto mais urgente for o caso trazido aos autos, maior será o recurso que o magistrado fará em seu ato de decisão ao páthos e ao éthos, isto é, à oratória621. Esta é, por exemplo, a situação dos casos criminais que causam comoção pública. Casos que são explorados pela televisão e que serão objeto de detida análise no quinto capítulo desse trabalho. A segunda face é a de que o ato de decisão judicial também se

desejo de convencer, ‘de exercer influência’”, cf. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução: Ivone

Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 98.

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REBOUL, Op. cit., 2004, p. 96.

616

Ibidem, loc. cit.

617

PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação – A Nova Retórica. Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 34-38.

618

REBOUL, Op. cit., 2004, p. 92-94.

619

Ibidem, p. 92.

620

Ibidem, p. 91.

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utilizará, em demasia, de seu aspecto oratório nas causas em que o tempo622 se constitua problema de primeira grandeza para a resolução do conflito processual. E, por fim, a terceira face, da importância em ressaltar os elementos que compõem o ato de decisão judicial, analisado como discurso retórico, que se dá também ao perceber que o magistrado tende a abusar do éthos e do páthos quando o auditório processual, mais especificamente, o acusado no processo penal, for menos sensível à argumentação lógica623.

Antes que se avance na abordagem retórica do ato de decisão judicial percebido como discurso, impõe-se esclarecer o que se entende aqui por argumento. Poder-se-ia criticar tal exposição por, somente nesta passagem, se estar dedicando a definir o que se entende por argumento. Todavia, essa crítica revelar-se-ia despropositada tanto porque argumento é oriundo da linguagem comum, o que o torna acessível a qualquer pessoa, quanto porque se fez aqui a opção estratégica de enunciar uma definição dele neste instante da exposição, de sorte a facilitar a elucidação de outros conceitos que ainda serão invocados.

Tecidas tais considerações, pontua-se que, por argumento, entende-se a proposição discursiva destinada a levar à admissão de outra624. Tomando-se por base tal definição, torna- -se importante pontuar que o argumento deve sê-lo em sua diferença, e, desta forma, perceber que o mesmo argumento necessita ser empregado de maneira diversa a depender da forma que se apresenta, ou seja, se de forma escrita ou oral625. Registrar tal diferença no emprego argumento torna-se ainda mais importante quando se percebe que o ato de decisão judicial, compreendido como discurso, constitui-se, como já foi dito, em uma rede de argumentos.

Se o argumento é apresentado de forma escrita, o magistrado, ao confeccionar seu ato de decisão, precisa expô-lo de forma clara, lógica, associando-o da forma empolgante e ornamentada, de acordo com os interesses que permeiam o conflito processual. Por outro lado, caso o argumento seja apresentado de forma oral, como, por exemplo, quando o magistrado decide o processo em audiência, diante das partes, logo após a sustentação oral feita por ambas nas respectivas alegações finais, deve ele capturar a atenção e a memória das partes, utilizando-se para tanto de repetições626, aliterações, metáforas, alegorias, ritmo627 e entonação da voz, sem se descurar do uso oportuno e conveniente do páthos e do éthos.

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REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 92. 623 Ibidem, p. 91. 624 Ibidem, p. 92. 625 Ibidem, p. 94-95. 626

Como adverte Olivier Reboul, a repetição desempenha, ao mesmo tempo, três funções: memorizar o argumento, emocionar o auditório processual específico e espezinhar a parte contrária, cf. REBOUL, Op. cit., 2004, p. 114.

Outro aspecto retórico a ser destacado nessa delimitação do ato de decisão judicial como discurso é o papel desempenhado pela verossimilhança. A verossimilhança é uma característica do objeto da argumentação628. Mas não apenas isso. A verossimilhança é um juízo de presunção lastreado na confiança. Disso se conclui, em primeiro lugar, que a verossimilhança se aproveita da confiança e que o ato de decisão judicial só se torna viável não apenas porque desperta confiança na sociedade e no auditório processual, mas, principalmente, porque capta a confiança dos mesmos. Desta forma, já se percebe a importância da pregação da imparcialidade do ato de decisão judicial, vez que sem esse compromisso de fé do magistrado de boa vontade, fica muito difícil capturar a confiança alheia. Mas, como adverte Agostinho Ramalho Marques Neto629, citado por Alexandre Morais da Rosa, “quem nos protege da bondade dos bons?”630.

Uma segunda inferência que se pode extrair da função desempenhada pela verossimilhança junto ao ato de decisão judicial, compreendido de maneira discursiva, é a de que a verossimilhança, em realidade, é apenas uma bela máscara veneziana que encobre a face dissimulada da ideologia. Tal afirmação decorre da circunstância de ser a verossimilhança um juízo de presunção, vez que se existe uma presunção é porque já há uma escolha prévia por algum valor determinado que acaba sendo eleito como verossimilhante. Mas se há tal escolha, qual a ferramenta que a determina?

A ferramenta, como destaca Warat631, Chauí632, Faria633, Cappelletti634, Altrusser635 e Japiassu636, é a ideologia. Isto porque, quando a verossimilhança se presume algo, ela o faz com o escopo de que o ato de decisão judicial provoque um efeito de realidade 627

O ritmo da frase é música do discurso. A música torna-o mais facilmente memorizável. Ademais, o ritmo também se presta a provocar a atenção do auditório. Provoca-se atenção para se colher a adesão! Cf. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004,, p. 115- 116.

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REBOUL, Op. cit., 2004, p. 95

629

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O processo kafkiano. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Direito e Psicanálise – Intersecções a partir de “O Processo” de Kafka. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 101-132.

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ROSA, Alexandre Morais da. Ato infracional: ação pena pública condicionada e privada: de quem é a

legitimidade? Disponível em: <

http://tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/cejur/arquivos/ato_infracional_alexandre__rosa.pdf >. Acesso em: 11 fev. 2009, p. 7.

631

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito I. Interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 97.

632

CHAUÍ, Marilena de Souza. O que é ideologia. 22. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 41-43.

633

FARIA, José Eduardo. A crise constitucional e a restauração da legitimidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1985, p. 53-55.

634

CAPPELLETTI, Mauro. Proceso, ideologías, sociedad. Tradução: Santiago Sentis Melendo e Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: Jurídicas Europa-América, 1974, p. 62-67.

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ALTUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado. Tradução: Maria Laura Viveiro de Castro. In: Posições

2. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p. 38-42.