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O ato de decisão judicial de acordo com a física

3 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL: ENTRE A OBJETOLOGIA E A RETÓRICA

2. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p 38-4

3.4.3 O ato de decisão judicial de acordo com a física

O ato de decisão judicial compreendido tanto como linguagem quanto como discurso recebe, também, da física – desenvolvida por Ilya Prigogine – relevante contribuição. Em primeiro lugar, a contribuição de Prigogine é excelente recurso persuasivo para uma compreensão retórica do ato de decisão judicial, vez que, se a física já constata o fim das certezas657, o que dizer do ato de decisão judicial? Não se quer com tal artifício retórico conferir qualquer superioridade à física diante do direito, o que se deseja é convencer o auditório processual e a comunidade jurídica da impossibilidade de certeza do ato de decisão

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REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 47.

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“[...] verità è che in tutti, non è in parte; e il tutto è troppo per noi.”, cf. CARNELUTTI, Francesco. “Veritá, dubbio e certezza”. Rivista di Diritto Processuale, v. XX (II serie). Roma: 1965, p.1-2.

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COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida E Certeza”, de Francesco Carnelutti, Para os operadores do Direito. In: Carvalho, Salo et al. Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos (2001/2002). Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2002, p. 40-41.

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PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 9.

judicial, valendo-se, para tanto, de uma premissa equivocada da modernidade, qual seja, uma suposta superioridade das ciências exatas em relação às ciências sociais. Em suma, usa-se a modernidade contra a modernidade.

A segunda contribuição que a física desenvolvida por Ilya Prigogine propicia ao ato de decisão judicial é a de redimensionar o papel do tempo658 na pós-modernidade e, em especial, no processo penal contemporâneo. O tempo do ato de decisão judicial nos dias atuais já não é mais o tempo de Newton: reversível, uniforme, das certezas, dominado pelas leis elaboradas pela física, capazes de propiciar verdades universais e atemporais659. O tempo de hoje é o tempo do agora. O tempo instável, irreversível, caótico, incerto, cuja previsibilidade é limitada. Em suma, um tempo crivado por escolhas múltiplas660.

Escolhas que se mostram mais diversificadas à medida que mais problemáticas se tornam. Assim como problemático se revela o ato de decisão judicial, não apenas por conta da variedade de escolhas em que consiste661, mas também em razão do tempo do agora que o caracteriza. Tempo de crise. Da crise de um ato de decisão judicial transfixado por tantas possibilidades. As mesmas possibilidades que acabam por explicitar a falta que individualiza o ato de decisão judicial: falta de certeza, de verdade, de legitimidade.

Falta que é amplificada pela circunstância do ato de decisão judicial pretender monopolizar a resolução dos conflitos, e, por conta disso, não poder se recusar a oferecer resposta a qualquer conflito. Por conseguinte, quando o tempo se torna irreversível, o ato de decisão judicial vê-se diante do seguinte dilema: de um lado, sua demora agrava o conflito real entre os envolvidos no processo, de outro, o excesso de velocidade com que venha a ser proferido compromete a confiança que nele é depositada pelo auditório processual.

Enquanto a física do século XXI não tem mais por objetivo descrever uma verdade estável, ou qualquer verdade, o ato de decisão judicial, a exemplo do que ocorre no processo penal, prende-se a uma verdade real, ou mesmo a uma verdade processual. É Ilya Prigogine que, ao criticar Einstein, ensina importante lição a ser aplicada ao ato de decisão judicial na contemporaneidade, a lição da relevância do tempo e o papel do sujeito cognitivo na

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PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 9.

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Ibidem, p. 10.

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Ibidem, p. 14-15.

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No processo penal, a escolha entre condenar, absolver, declarar ou constituir. Mas não apenas estas, pois, uma vez realizada a primeira escolha, surge, gradativamente, um desdobramento de escolhas, a exemplo da escolha entre absolver por falta de provas ou por inexistência da prática de fato delituoso. Decidir é escolher entre algumas ou muitas possibilidades.

percepção do objeto cognoscível662. Não é possível apreciar o ato de decisão judicial nos dias atuais sem destacar as funções determinantes do tempo do processo e do sujeito cognitivo que o elabora, o juiz. Assim como a fórmula subestima o tempo, vez que é estática e deduz o futuro a partir do presente663, a lei menospreza o tempo do ato de decisão judicial, à medida que desconsidera a individualidade do caso.

Se o tempo, como ressalta a física, é uma realidade irreversível, e se o sujeito é um fator determinante do objeto perceptivelmente construído, então, o ato de decisão judicial não obtém e não pode pretender certeza. A certeza, como destaca Prigogine, é o resultado do arbítrio do sujeito cognitivo que determina e controla por um período de tempo as variantes por ele imagináveis664.

Mas será que algum sistema jurídico – ou algum juiz – imagina e controla todas as variantes possíveis que interferem ao longo do tempo do processo no ato de decisão judicial? Não é preciso grande esforço de raciocínio para se constatar que a resposta é negativa. É essa constatação que leva Prigogine a inferir que, quando a física passa a ser compreendida a partir de leis, ou as leis deixam de ser física ou a física deixa de ser física. A física não é um conjunto de fórmulas universais e atemporais665. A física é processo666, assim como também é o ato de decisão judicial.

O ato de decisão judicial é processo dialético de índole histórica. Processo que, sob a perspectiva do tempo, se mostra como processo, vez que se, por um lado, o tempo do ato de decisão judicial pode ser percebido como convenção linguística, por outro, também pode ser entendido como fator externo à linguagem e que nela interfere. Ora, se o ato de decisão judicial pode, ao mesmo tempo, relacionar-se sob esses dois ângulos com o tempo que trespassa o processo judicial, conclui-se que tempo e linguagem relacionam-se de forma dialética e que ambos testemunham a impossibilidade de certeza do resultado do experimento667, o ato de decisão judicial.

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ZOHAR, Dannah. O ser quântico. Tradução: M. A. Van Acker. São paulo: Editora Best Seller, 1990, p. 41- 53.

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PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 19.

664

Ibidem, loc. cit.

665

Ibidem, p. 18.

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Prigogine define processo como a combinação imprevisível entre tempo e velocidade, cf. PRIGOGINE, Op.

Cit., 1996, p. 19.

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MONOD, Jacques. O acaso e a necessidade – ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna. Tradução: Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes,1971, p. 141-142.

Desta forma, torna-se possível perceber que o problema do tempo do ato de decisão judicial é o problema da significação da existência humana668. Quando se consegue compreender de forma clara essa circunstância, logo se entende que o tempo fixado pela lei669, ou o que se tem como expectativa do processo judicial670, é um tempo arbitrário, descomprometido com a existência do ato de decisão judicial, mas altamente vinculado à possibilidade de oferta de certeza aos que a ele serão submetidos. Portanto, o tempo do processo que determina o ato de decisão judicial é um tempo arbitrário671. Arbitrário não apenas porque seleciona um dado momento do caso que será apreciado pelo ato de decisão judicial, desprezando o momento que lhe antecede, mas também porque resulta da sucessão de escolhas dos seres humanos envolvidos na apreciação desse mesmo caso (a autoridade policial, o promotor público, o juiz, dentre outros).

É possível concluir, diante do até aqui exposto, ainda que inicialmente, que o ato de decisão judicial é, a um só tempo, evento histórico e aparência de escolha672. Admitindo-se como certas tais ilações, fácil é inferir que o ato de decisão judicial, também por essas razões, é ato impossibilitado à percepção de certezas sobre o caso colocado sob sua apreciação. E as premissas que determinam tal conclusão são facilmente observáveis a partir da interferência do tempo.

Não é difícil constatar, no que concerne à circunstância relativa ao evento histórico, que o tempo impede que tudo que interfere no ato de decisão judicial seja dado de uma só vez. Por outro lado, no que concerne à aparência de escolha, fácil é constatar que o tempo, além da linguagem, inviabiliza a possibilidade de sua existência, vez que toda escolha é ato limitado pelas possibilidades de conhecimento disponível no momento da decisão, bem como porque o ser humano não se relaciona com a realidade em si673.

Portanto, a partir do esclarecido acima, torna-se perceptível que o ato de decisão judicial, imerso em um tempo processual irreversível, é apenas uma aparência de escolha. Aparência que decorre, como salienta Prigogine, da circunstância de que só é possível haver escolha quando se pressupõe o triunfo da razão sistemática e determinista sobre a

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PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 21.

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Tem-se como exemplo o tempo fixado pelo Código Penal como tempo do crime (CP, artigo 4º).

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O tempo que se tem como expectativa do processo judicial é aquele que resulta da soma dos prazos processuais prescritos pela lei.

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Como ressalta Ilya Prigogine, o tempo que perpassa as leis da física é um tempo arbitrário, porque seleciona um dado momento da experiência, desprezando os intantes antecedentes e subsequentes, cf. PRIGOGINE, Op.

cit., 1996, p. 21.

672

PRIGOGINE, Op. cit., 1996, p. 21.

673

ADEODATO, João Maurício Leitão. Filosofia do Direito – uma crítica à verdade na ética e na ciência (em contraposição à ontologia de Nicolai Hartmann). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 249.

instabilidade do evento674. O ato de decisão judicial só pode ser admitido como escolha se se pressupõe tanto sua imersão em um tempo reversível e convencionalmente estabelecido por meio de lei quanto sua contextualização em um sistema jurídico que determina não apenas suas possibilidades de escolha, bem como o controle do tempo.

Consideradas as abordagens desenvolvidas ao longo desse capítulo sobre a linguagem e o discurso, bem como a defesa de uma compreensão retórica e desconstrutiva do ato de decisão judicial, fácil é concluir que a concepção que aqui se sustenta sobre o ato de decisão judicial é, em última análise, uma concepção de caráter cético675. Cética porque desconfiada de uma análise sistemática do ato de decisão judicial, e também porque duvidosa da importância que se atribui ao tempo e à escolha na confecção do mesmo.

É exatamente porque é cética, que tal compreensão não deve ser compreendida como uma concepção evolucionista do ato de decisão judicial. Não é o que se deseja realçar quando se acentua a feição dialético-processual do referido ato. Processo não é o mesmo que evolução676677. Processo é apenas o desencadear, de forma simultânea, de diferentes circunstâncias ao longo de um período de tempo.

As circunstâncias podem ser compreendidas como progressivas ou como regressivas, mas que, em todo caso, se dão ao mesmo tempo. Perceber de outra forma o processo no qual se desenrola o ato de decisão judicial é desprezar o indeterminismo e a assimetria do tempo678. Quando se compreende essa circunstância, logo se verifica que não é a seleção que determina a evolução, é a evolução que pressupõe uma seleção, a seleção sistemático-moderna.

Pergunta-se: o ato de decisão judicial seria, então, o resultado de um processo dialético marcado pelo tempo e caracterizado por uma escolha aparente? A resposta é não. Então, tudo que até aqui foi explanado é desnecessário para compreender o ato de decisão judicial a partir das contribuições da física? Também não. As explicações até agora desenvolvidas são úteis à compreensão do ato de decisão judicial, mas não são suficientes antes que se explicite uma outra contribuição proporcionada pela física, a da impossibilidade de uma dialética real na constituição do ato de decisão judicial. E, pergunta-se, qual a causa dessa impossibilidade? A causa da impossibilidade de uma efetiva dialética entre as partes na

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PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 22.

675

Ibidem, loc. cit.

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Ibidem, p. 23.

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Em sentido diverso, mas com uma interessante abordagem sobre o entrelaçamento entre os conceitos de evolução e linguagem, cf. MONOD, Jacques. O acaso e a necessidade. Tradução: Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. 2. ed. Petropólis: Editora Vozes, 1971, p. 147-151.

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composição do ato de decisão judicial é a constatação de que a isonomia entre elas é, no máximo, um tipo ideal679, assim como o são a democracia680 e o livre-arbítrio.

É dizer, a modernidade, como assinala Robert Kurz, deslocou o significado do conceito de desigualdade da pura diversidade dos indivíduos para a subordinação de um indivíduo ao outro681. E esse deslocamento interessa ao ato de decisão judicial inserido em um contexto sistemático, vez que propicia, ao mesmo tempo, o encobrimento da desigualdade entre as partes e o da subordinação destas ao ato de um outro indivíduo do processo, o juiz. O mito da isonomia entre as partes encobre a impossibilidade de que venha a ocorrer um processo dialético real na constituição do ato de decisão judicial. Quanto melhor o disfarce, mais assegurada estará a perpetuidade da impressão de participação das partes no ato de decisão judicial.

Por fim, mas não por isso menos importante, importar assinalar, mais uma vez com amparo em Prigogine, que a irreversibilidade da flecha do tempo implica a desordem do sistema e a ordem do problema682. E qual a relevância de tal assertiva no que toca ao ato de decisão judicial? A relevância reside na circunstância de que a irreversibilidade da flecha do tempo que perpassa o processo judicial acaba por determinar tanto a natureza de problema casuístico do ato de decisão judicial quanto a entropia do sistema jurídico. Essa conjunção de fatores, por sua vez, apresenta como consequências possíveis a resolução do conflito processual e efeitos colaterais nocivos ao conflito real683. O que se pode esperar, então, do ato de decisão judicial diante dos possíveis objetivos do processo?