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Sociedade e procedimento (Luhmann)

1 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL: O JUIZ É UM SER HUMANO

2 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL: ENTRE A MODERNIDADE E A PÓS MODERNIDADE

2.1 O ATO DE DECISÃO JUDICIAL NA MODERNIDADE

2.1.3 Sociedade e procedimento (Luhmann)

Niklas Luhmann pode ser classificado, ressalvados os riscos inerentes a toda tipificação, como membro da Escola Funcionalista da Sociologia Contemporânea, a qual

223

LAFER, Celso. Prefácio a FARIA, José Eduardo. Poder e legitimidade – uma introdução à política do direito. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 9.

224

FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. São Paulo: Atlas, 2007, p. 324-329.

225

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito I. Interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 93-95.

226

ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 205.

227

VIEHWEG, Theodor. Ideología y dogmática jurídica. In: PUCCIARELLI, Eugenio (Org.). Escritos de

Filosofia – Ideologia. v. 2, año 1. Buenos Aires: Academia Nacional de Ciências, julio/diciembre, 1978, p. 97-

guarda grande aproximação com o pensamento de Émile Durkheim228. De acordo com Luhmann, a sociedade é um sistema voltado a reduzir as complexidades e a controlar a contingência, as quais são inerentes ao mundo dos eventos reais229. Este grande sistema social contém dentro de si vários outros subsistemas, como, por exemplo, o amoroso, o jurídico, o econômico, o político, o técnico, o religioso, que se relacionam entre si através do acoplamento estrutural230, mas que preservam sua identidade quando interagem com os demais. Essa identidade é subsistêmica, mantida mais pelo fechamento operacional do sistema e menos pela abertura cognitiva.

Para cada subsistema social, todos os demais funcionam como ambiente231. Esta interação entre os subsistemas, com a simultânea preservação de cada um deles, passa, necessariamente, pela auto-referência232 e pela heterorreferência. A auto-referência, em última análise, consiste na qualidade do sistema autopoiético criar seus próprios elementos constitutivos. A heterorreferência reside na circunstância do sistema preservar sua diferenciação em relação ao demais. E aqui merece destaque o ato de decisão judicial, pois, a um só tempo, presta-se a constituir e reconstituir o subsistema social do direito, além de conservar a sua imunização dos outros subsistemas.

O ato de decisão judicial, assim, não é apenas mais um ato do sistema jurídico, é o ato característico do paradigma da modernidade, à medida que reproduz o aspecto dogmático do sistema e revela sua tentativa de controlar o aspecto imprevisível e contingente do ambiente (mundo dos eventos reais). O ato de decisão judicial, desta forma, justifica o sistema jurídico, porquanto reafirma sua capacidade de controlar a natureza circundante.

Nesta natureza, a ocorrência de um evento real pode ser percebida de diferentes formas, a depender do subsistema social. O evento real que pode aproveitar ao subsistema econômico, como o pagamento de uma propina, é o mesmo que tem a capacidade de questionar o subsistema jurídico. Contudo, é exatamente essa alternância de possibilidades que viabiliza a cada subsistema “lidar consigo mesmo e conduzir autonomamente os problemas”233.

228

ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 88.

229

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.21-30.

230

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: para além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 95-105.

231

Ibidem, p. 59-66.

232

Optou-se por manter a grafia original da palavra, em conformidade com a fonte bibliográfica utilizada, ao invés de mudá-la, atendendo à Reforma Ortográfica, segundo a qual passaria a ser autorreferência.

233

Diante disso, o desafio de um subsistema conservar sua identidade perante os outros reclama de si a existência de um repertório e de uma estrutura234. O repertório é “o conjunto de possibilidades escolhidas como desejáveis entre as inúmeras que a complexidade do mundo circundante oferece”235. Por sua vez, a estrutura é “o conjunto de regras que garantem o sistema contra a possibilidade de que venham a ocorrer outras alternativas que não aquelas selecionadas pelo repertório”236.

Uma vez compreendido o repertório237 como o conjunto de possibilidades escolhidas como as desejáveis entre as diversas existentes no ambiente238, é possível entender o ato de decisão judicial como o elemento principal desse conjunto. Isto porque o ato de decisão judicial acaba por ser o ato que precisa a escolha possível do subsistema jurídico e que manifesta que esta escolha é viável, ou seja, que o subsistema possui a capacidade de selecionar e capturar um dado evento do mundo real.

Este ato de decisão judicial subordina-se, então, à estrutura239sistêmica do subsistema social do direito. Essa estrutura, à medida que assegura a auto-referência do sistema, e, por consequência, o seu fechamento operacional, proporciona a imunização do ato de decisão judicial, difundindo a aparência de impessoalidade e a imagem de decisão racional. O aspecto problemático decorrente da normatização contrafática das expectativas240 acerca de acontecimentos vindouros reside em como conseguir dos destinatários das normas uma aceitação tácita de decisões que ainda não aconteceram e cujo conteúdo específico é indeterminado241. Quando as partes no processo penal deflagram um litígio processual, nenhuma delas possui qualquer certeza acerca de qual será o teor do ato de decisão judicial, o qual, em realidade, está subordinado aos mais diversos fatores externos, como, por exemplo, a habilidade técnica dos advogados ou o preconceito do juiz da causa. Seja como for, o que a normatização contrafática das expectativas assegura não é a essência do ato de decisão judicial, e, sim, as regras do jogo que o produzirá. A teoria dos sistemas compreende o ato de decisão judicial sob o prisma procedimental.

234

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 133-165.

235

ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 89.

236

Ibidem, loc. cit.

237

FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. São Paulo: Atlas, 2007, p.249.

238

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: para além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 59-66.

239

FERRAZ JR, Op. cit., 2007, p. 101-102.

240

Sobre o conceito de expectativa na teoria dos sistemas, consultar LUHMANN, Op.cit., 1983, p. 54-65, bem como FERRAZ JR., Op. cit., 2007, p. 103.

241

Todavia, convém esclarecer que tal afirmação em nada se opõe ao paradigma de um ato de decisão judicial orientado pelo marco da modernidade. Em verdade, a estratégia de procedimentalizar o ato de decisão judicial acaba por constituí-lo uma ferramenta que visa revigorar sua legitimidade242, aprimorando sua imunização e assegurando sua diferenciação em relação aos demais subsistemas sociais. Em síntese, a procedimentalização do ato de decisão judicial não implica que este abandone a busca pela verdade e que se mantenha fiel a uma estrutura dogmática.

É exatamente “essa pré-disposição à aceitação de decisões ainda indeterminadas... que se denomina, modernamente, ‘legitimidade’”243. Com o objetivo de distinguir a sua visão dinâmica, de legitimidade como processo ou ação legitimadora, de uma compreensão estática sobre a decisão judicial, é que Luhmann adota o vernáculo “legitimação”244. “A legitimação é obtida ao longo de uma série de interações previamente estruturadas em subsistemas de comunicação específicos, os ‘procedimentos’”245.

O procedimento, enquanto sistema, encontra-se voltado, desta forma, a sintetizar a complexidade do ambiente246, selecionando alternativas específicas de comportamento em detrimento de outras, que não são absorvidas e que não podem ser suscitadas, não importando que fração mantenha relação com a realidade dos fatos. Numa só palavra, o procedimento seleciona nuances do evento real, a fim de conferir legitimidade ao ato de decisão judicial. O procedimento, ao selecionar aspectos do evento real, distancia o ato de decisão judicial do real evento. O conflito que se traz aos autos não é o real, mas o que foi selecionado pelo procedimento247. E será esse conflito não-real que o ato de decisão judicial irá julgar.

O ato de decisão judicial legitimado, então, não é o ato que resolve o conflito real, mas o que decide um conflito selecionado pelo próprio sistema jurídico por meio de seu procedimento. Se maior for a complexidade do evento real, maior será a sofisticação teórica da modernidade (dogmatização do direito, ou teoria dos sistemas) para mantê-lo sob controle. Nesse contexto, o ato de decisão judicial aparentará estar preocupado com uma verdade

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Luhmann distingue os conceitos de legitimidade e de legitimação (ou ‘ação legitimadora’), sustentando que legitimidade é a aceitação em si mesma da decisão, ao passo que a legitimação são os meios utilizados pelos poderes instituídos para tentar obter a aceitação racional e pacífica dos envolvidos no procedimento judicial. Cf. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução: Maria da Conceição Corte-Real. Brasília: Editora Unb, 1980, p. 29-35. Sobre o assunto, consulte-se, ainda, ADEODATO, João Maurício. Ética e

Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 100. 243

ADEODATO, Op. cit., 2006, p. 89.

244

LUHMANN, Op. cit., 1980, p. 31.

245

ADEODATO, Op. cit., 2006, p. 90.

246

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: para além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 59-66.

247

SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia retórica jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 23.

objetológica à medida que tal preocupação revele-se uma boa estratégia para conservar a crença das partes na decisão judicial. Mas seu principal objetivo, na realidade, tomado como fruto do procedimento sistêmico, será o de manter sob controle aqueles subordinados à decisão judicial, tornando, para tanto, imprescindível preservar sua imagem de imparcialidade: tudo de sorte a conservar a legitimidade do ato de decisão judicial, a sustentar o seu caráter racional, a referendar um modelo de magistrado enquanto ser humano pleno, e a encobrir os níveis de generalização provocados pelo abismo gnosiológico. Vê-se, então, o importante papel que já desempenha o procedimento judicial.