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Defesa de Lévinas da ética como filosofia primeira

4. O SUJEITO DO GOZO

4.3. O HUMANISMO-DO-OUTRO-HOMEM DE LÉVINAS COMO UM RECURSO AO “ELE” INACESSÍVEL

4.3.1. Defesa de Lévinas da ética como filosofia primeira

O Ser de Lévinas é fundado por uma ontologia de nostalgia do Mesmo; em outras palavras, o Ser anseia por retornar ao Uno

primordial. Essa nostalgia é uma recusa à aventura do Outro, do encontro com a alteridade. Em sua batalha quixotesca contra a tradição da filosofia fundada no saber ontológico, Lévinas intenciona romper com a filosofia do Neutro, como é o ser do ente Heideggeriano ou a razão impessoal de Hegel, ou mesmo a epoché fenomenológica que transforma o Outro em objeto do conhecimento (DARTIGUES, 1992). Um sujeito cujas funções de contato estão interrompidas pela vulnerabilidade descrita por Perls, Hefferline e Goodman (1951) como “egotismo” não reconhece o “Tu” pessoal, e não se relaciona com ele. Seu mundo é “Isso”, não no sentido da tradução para “Id” na literatura de base psicanalítica e dissidentes, mas um “Isso” Buberiano, objetificante. Em outras palavras, o semelhante de um sujeito orientado por um desejo intelectual é objeto de seu escrutínio racional. O controle lógico-conceitual das variáveis envolvidas no processo, a compartimentalização e a assepsia analítica são a satisfação parcial obtida.

O grande porta-voz da chamada “terceira força Vienense”, o psiquiatra Viktor Frankl (1946), defenderia que o esforço por produção de sentido intelectual não outra coisa senão a própria força motriz da humanidade. Lévinas não poderia discordar de Frankl com maior veemência. A correlação noese-noema não é, em sua obra, estrutura primordial da intencionalidade, mas sim um movimento específico de lançar-se em direção ao que é Outro. O verdadeiro retorno às coisas mesmas é um retorno ético ao Rosto do outro que revela em si toda a alteridade indecifrável, não-categorizável, irredutível ao neutro, que lhe é própria. O processo contínuo de pensamento, então, longe de ser a “busca por sentido norteadora do indivíduo” de Frankl, subsiste em seu âmago graças a um confronto com o que o pensamento não pode reduzir.

Ademais, tal “ser em-si” não é uma intangibilidade com a qual não interagimos. Apesar de não ser apreensível, ela é totalmente acessível pela via do Rosto, e provoca em nós uma angústia quando com ele nos deparamos. Repousando sobre o fato básico de que as pessoas e as coisas existem, bem como as relações entre estes, a ontologia ocuparia um lugar de primado na filosofia. Questionar tal afirmação é pôr em cheque a própria filosofia, e todo o fazer humano: construção de conhecimento, de ética, de política etc.

A ontologia contemporânea de Sartre e seus influenciados compreende o ser na sua existência contextualizada, em função da temporalidade. A ontologia da “alma essencial” pecaria por ingenuidade, isto é, por não pôr a si mesma em questão, e Sartre teria

superado tal limite com a construção de uma ontologia que coincide com a facticidade de sua existência temporal. Compreender o ser deixa de ser pura contemplação e devém o próprio operar do sujeito com suas possibilidades de ser-no-mundo (DARTIGUES, 1992).

Antes mesmo de ser refinada em Sartre, o litígio entre existência e essência já se fazia presente na fenomenologia Heideggeriana, segundo a qual a compreensão se dá na “abertura” do ser no sendo 10. Se para Heidegger é na abertura do ser que se dá sua

inteligibilidade, cabe ao “sendo” transcender-se até seu próprio horizonte-de-ser que há para além da ipseidade, ou seja, na relação com os objetos do mundo, para a partir do conhecimento que é universal conhecer-se em seu âmbito particular.

Isso, contudo, não ocorre na relação com outrem. Esta é marcada por uma receptividade, uma simpatia que antecede o saber. Segundo Lévinas (1991, p.28), o que Heidegger chama de Miteinandersein, ser-com-outrem, descreve uma relação não- objetificante, mas acolhedora do sendo (Outro) como sendo, sem posicionar-se no horizonte-de-ser onde o sujeito opera com os objetos. Nela, conhecer outrem e invocá-lo (falar com ele e dirigir-se a ele) são dois processos simultâneos, não há precedência de nenhum sobre o outro. A linguagem é o pré-requisito para o conhecimento sobre o Outro, ao invés de depender deste para acontecer.

Quando me reporto a outrem a partir do desejo, significo e nomeio: com isso cometo uma violência de posse, à medida que este ente depende de mim para sua significação, está em meu poder. Todavia, não vejo seu rosto. Não haverá aqui encontro humano: este só acontece numa relação que não é de poder. Tudo o que um sujeito faz no mundo é atividade organísmica do Self, ativamente crescendo e adaptando-se. Tudo, exceto o chamado do Rosto: este é passividade radical, onde não há imposição, mas proposição a partir da linguagem, do diálogo. Não há algo como uma razão intelectual falando para outra razão intelectual, que presumisse uma verdade única da qual ambos estariam se aproximando; a linguagem em vez disso surge do Rosto, exprime a diferença dos seres que falam. Essa diferença, o próprio vestígio, caracteriza uma brecha do Infinito na finitude do discurso.

A alteridade radical e inapropriável do Outro é assim definida nas palavras do próprio autor:

10 Embora “ente” seja a tradução mais comum, optou-se por uma questão de

clareza pelo uso do verbete “sendo”, que também é encontrado no acervo de textos de Heidegger que receberam tradução no Brasil.

O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. O absolutamente Outro é outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo “tu” ou “nós” não é um plural de “eu”. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum. (LÉVINAS, 1980, p.26).

A filosofia egológica que se fundamenta na ontologia e no acúmulo do conhecimento – ou no inchaço do “Mesmo” – teria, na crítica Levinasiana, sua extinção como horizonte ideal. O regresso ao Uno traria uma estase de semi-onisciência, exceto pela ciência de si- próprio; afinal, isso indicaria já uma fragmentação de si, um dobrar-se sobre si. A filosofia tem por tradição privilegiar a experiência do Uno e a ontologia trata seus objetos com relação à proximidade espaço- temporal imanente entre suas partes. A prioridade da Alteridade indica uma ruptura com a filosofia do Uno: Deus não está na experiência da unidade, mas no reconhecimento da presença daquilo que é radicalmente Outro e inapropriável (LÉVINAS, 1980, p.140).