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3. O SUJEITO DO DESEJO

3.6. QUANTO À NATUREZA POSITIVA OU NEGATIVA DO DESEJO

3.6.4. Desejo como falta e repetição

Na via oposta do conflito está localizada a psicanálise, em cuja ótica o desejo assume o traço de uma negatividade. O Lacanismo aprimorou ainda mais a fundamentação deste ponto de vista. Na base da ontologia psicanalítica Lacaniana dos anos 1960 temos um sujeito que só o é na medida em que é “assujeitamento ao campo do Outro” (LACAN, 1964, p.178). Essa noção – que é desde seu princípio uma proposta de corroboração radical da teoria Freudiana, que por sua vez remonta a Hegel – faz revirar toda a sua teoria do desejo, engajando-a na demanda vocalizada pelo Outro Social, este cuja distinção dos äußeren Reizen e necessidades ambientais em geral é reiteradamente demarcada. A saída lúgubre que se propõe a este impasse é reconhecer no Outro sua falibilidade, e o fato de que este estaria também subjugado a uma dívida que lhe assomasse como sendo originária de uma fonte reconhecida como um Outro. O que vaza do Outro quando este é interrogado é o objeto “a”, como representante da ausência com a qual nos deparamos. O sujeito faz vazar o Outro quando o interroga, e descobre a falta nele. Afinal, em princípio, quem sabe? O Outro – ou assim se supõe. Por isso cabe ao sujeito aprender, captar o saber do Outro. O fato d’Ele não saber, não ser capaz de prover o que o sujeito necessita, eis justamente o fundamento da falta.

A impossibilidade de obtenção do pleno sentido no Outro é o que faz com que essa relação enunciativa se constitua como a demanda

Hegeliana do escravo para o senhor (LACAN, 1968-1969, p.82). Melhor dizendo, a impossibilidade de ter o gozo (como posse) do outro é o que transforma o furo aberto num objeto “a”. Na medida em que se tenta acessar a pulsão, o que se consegue fazer é meramente subscrevê- la e objetificá-la num representante da falta. O raciocínio que leva a um sujeito do desejo na perspectiva da falta se dá pela seguinte prossecução: A pergunta que o eu faz é “me pergunto o que desejas”, que leva a “o que falta em ti”, e consequentemente, já que meu desejo é na verdade o desejo do Outro, “me pergunto o que eu quero”. Por fim, não interrogo “me pergunto quem sou”, mas “me pergunto o que é Eu” (LACAN, 1968-1969, p.84).

A noção de uma falta inerente ao sujeito e impreenchível é o que posteriormente explicará a ideia de repetição na pulsão-de-morte, como o aspecto de não-sentido do comportamento que, atualizando-se em cada vivência, faz com que este retorne formalmente ao mesmo estado, de novo, e de novo, a despeito do preenchimento de conteúdo variar. “O que se repete, com efeito, é algo que se produz (…) como por acaso”, diz Lacan (1964, p.57). É um sempre-retornar-a-evitar, sempre-falhar. A repetição no caso da criança, por exemplo, que pede a mesma história e a mesma brincadeira inúmeras vezes, indica seu apelo de que os significantes, repetidos exaustivamente, venham eventualmente a abarcar a totalidade da significação. Está relacionada, como no fort-da, à instrumentalização da criança para lograr o controle do Simbólico e da hiância ou falta.

A repetição na Gestalt-terapia está, como se sabe, associada aos hábitos e às situações inacabadas, mas no discurso psicanalítico ela tem a ver com um encontro com o real. No Seminário XI, Lacan (1964) justifica que o real é aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar, onde a coisa pensada não encontra o sujeito que pensa. Talvez este seja o caminho para compreender o que Lacan pretendia com sua afamada declaração – já sucessivamente desapropriada de seu contexto e retorcida ao ponto do cliché – de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”: ele é uma estrutura de significantes repetitivos que se atualizam num dito de um ou outro sujeito participantes de um campo de presença (NASIO, 1992, p.20).

Também é herdeira do ser-em-falta toda a escrita psicanalítica sobre a mais-valia de gozo. Isso porque o chamado “mais-de-gozar” (plus-de-jouir) é o gozo não-vivido, o gozo do que ficou retido e não se satisfez. Em vez disso, ele permaneceria ancorado como tensão nas zonas erógenas como genitálias, boca, olhos, mãos ou qualquer fragmento do corpo que tenha sido alvo da apreensão simbólica. O

próprio modus operandi da análise consistiria em perceber os eventos em que o gozo se interrompe. Afinal, esta é a especialidade da histérica do discurso Lacaniano: em nome da preservação de sua falta, o sujeito lança mão de estratégias para não gozar em absoluto, e consequentemente o mais-de-gozar ganha forma como fantasia. Por isso a importância que Lacan dá a “não ceder ao desejo”, pois o desejo produtor das fantasias é a maior ferramenta contra o gozo (NASIO, 1992, p.22).

Por que seria de algum modo interessante preservar um estado de perene insaciedade? O que se haveria de ganhar com isso? Eis uma das primeiras questões fundamentais ao se problematizar o desejo, e que remonta aos princípios da metapsicologia e dos discursos filosóficos sobre a vontade humana. Encontra-se, inclusive, a noção de falta em áreas tão inusitadas quanto a estética Kantiana, que não é a da sensibilidade ou da comoção, mas sim a do sentimento (gefühl), de uma afetação do sujeito que pode ser sensorial ou intelectual. Tal sentimento jamais poderia ser experimentado por seres perfeitos, apenas sendo possível graças a nossa indelével incompletude humana, pelo fato de estarmos perenemente em falta, sendo assim gratificados de forma espontânea, inesperada e aprazível por uma teleoformidade sem fim, precisamente graças a este oximoro. É a manifestação máxima da dignidade do objeto, absoluto e válido por si mesmo e não por sua utilidade ou adequação; é o mundo de objetos da realidade nos prestando um “favor”, ao invés de nós a ele (SANTOS, 2012).

Lacan, nas primeiras páginas – ou nas primeiras horas - do Seminário XI, falando da práxis como um termo geral para definir qualquer ação realizada pelo homem para operar no real pela via do simbólico, indica que sua própria obra se afasta da práxis científica pois, à diferença desta, ele “não procura: acha” (LACAN, 1964, p.14). Estaria ele se referindo a alguma sorte de produção espontânea desejante? Poder-se-ia interpretar tal indicação como sinais de uma concepção positiva de desejo no Lacanismo? A resposta simples é: não. “Achar” ao invés de “procurar” tem maior relação com um dos temas principais deste Seminário, a interpretação psicanalítica compreendida como uma empresa hermenêutica de de-cifragem.

Ficam estabelecidos os dois pontos de vista como mutuamente avessos, por conta da divergência em relação a algo que no fim de contas não é o desejo em si, mas seu motor, o real: o real Lacaniano toca naquilo que no sujeito é o “improdutivo”, não serve para nada, enquanto para Deleuze o real é o resultado da própria produção.