• Nenhum resultado encontrado

Função social antiprodutiva do mito de Édipo

2. O SUJEITO DA CULTURA

2.3. CRISTALIZAÇÃO DOS SUJEITOS-PROCESSO

2.3.3. Função social antiprodutiva do mito de Édipo

Há que se despir de uma vez por toda das metáforas, caso ainda reste delas algum resquício de ilusão de literalidade. Édipo nasce como um mito, mas sua reencenação contínua faz com que deixe de sê- lo: uma vez reproduzido, Édipo é um fenômeno real, uma produção muito factível da máquina social. Logo, é um fantasma de grupo, inalienavelmente social, vivido como forma de inserção na comunidade. Um fantasma mantido pela sua própria estrutura repressiva, que se ocupa de sua manutenção pelas gerações. Ou seja, é a própria sociedade de sujeitados que reproduz o Complexo de Édipo: eis o sentido de dizer que, ainda que se admita algo como uma sequência linear do psicodesenvolvimento, Édipo estaria no fim desta, não no começo. Ele está menos associado à psicogênese que à

codificação formatadora da produção desejante irrefreada dos ajustamentos sincréticos infantis.

Por outro lado, há também que se manter em vista que o sujeito ao qual se quer chegar aqui é aquele que já escolheu submeter-se à investida significante da clínica, e que se disponibilizou para ser copartícipe do seu próprio processo de crescimento e descoberta. Uma vez que se engaje neste tipo de relação, nada que o consulente possa fazer escapa à significação, nem mesmo – ou melhor, principalmente – as respostas de resistência. Sobre este sujeito o mito do Édipo tem, sim, efeito pungente, bem como desfazê-lo também o tem.

A atribuição de fixidez identitária pelo Édipo é um eficiente instrumento de antiprodução social, ou, o que é a mesma coisa, de produção homogeneizante e mantenedora do status quo. Orientados por este argumento, DGAE (1972) tomam posse da noção de pulsão- de-morte e a consideram no âmbito do socius como análoga à repressão antiprodutiva. Trata-se aqui de uma produção de desejo que está no âmago da infraestrutura social, investindo e conformando-a. Muito além dos interesses do sujeito individual, o desejo engendra coletivamente as formas de produção sociais. Embora não haja diferença de natureza entre ambas as produções (desejante e técnica), há uma diferença em seu funcionamento.

As máquinas técnico-sociais funcionam arranjadas, organizadas como estruturas. Que fique claro: elas não são estruturas a priori, mas foram assim tornadas pela ação antiprodutiva. Nas máquinas técnicas há distinção clara entre produto e produção. As máquinas desejantes, por sua vez, funcionam desarranjadas, de modo inventivo, criativo, onde os elementos do mundo transitam entre o papel de componente da máquina, de seu combustível, e de seu produto. A arte, por exemplo, é a produção desejante por excelência. Ou seja, a produção social é o lugar do recalcamento secundário, o que faz da repressão uma produção de Real. Por conseguinte, Édipo enquanto mito fundador da psicogênese é uma farsa, mas Édipo enquanto fantasma de grupo repressor é pungentemente real.

É nos meandros do desejo circulando pelo socius que se pode encontrar o sentido esquizoanalítico do inconsciente coletivo. Os fantasmas de grupo são inconscientes, e também coletivos, afinal são frutos da produção maquínica de subjetividade; eles nada têm a ver com o Inconsciente Coletivo Anagógico de Jung, que alça novamente o socius sob o Mito fundador. Analisar o inconsciente estruturalmente seria sob esta ótica um trabalho infértil, pois ele não funciona de maneira estruturada, mas como jogo cíclico de intensidades funcionais,

que são mais bem compreendidos por seus critérios de uso que pelas definições conceituais: “como Isso funciona?”, “como transita entre os corpos?”, em vez de “o que é?” ou “o que significa?”.

O inconsciente Deleuziano não significa nada: não tem sentido transcendente, mas constrói seus sentidos pela própria trama imanente que os fluxos do desejo tecem pela carne do socius, assim como também destrói estes mesmos sentidos quando emerge rasgando a trama na produção desejante revolucionária. “É lastimável ter de dizer coisas tão rudimentares”, diziam DGAE (1972, p.158), “o desejo não ameaça a sociedade por ser desejo de fazer sexo com a mãe, mas por ser revolucionário”. Seja do ponto de vista da produção que territorializa o socius, seja do ponto de vista da produção esquizofrênica que ameaça perfurá-lo, tudo o que é há desejo em suas várias facetas, fazendo oposição umas às outras, sem que se possa discernir o desejo como legítimo ou ilegítimo.

Uma vez que se compreenda a função da repressão na sociedade, é fácil justificar porque não apenas as camadas dominantes, mas também as sujeitadas, desejam-na e colaboram com a sua produção e manutenção. A produção esquizo denuncia a fragilidade do tecido social ao rasgá-lo; é um desrespeito em seu sentido mais cru. Afinal, o respeito ao Outro não é senão respeito para com sua fraqueza (ŽIŽEK, 2001); o forte não precisa ser poupado, pois sabe-se que ele é capaz de suportar ou defletir as agressões que sofre; são os fracos quem precisam ser respeitados, isto é, poupados de ter de publicizar sua impotência. Mesmo quando se trata de um Outro opressor, a quem os oprimidos se dirigem com temor medindo as palavras, o que o difere das vítimas de seu despotismo é que ele tem à sua disposição os recursos para impor o respeito, a sinalização de dura retaliação a quem ousar expô-lo e ameaçar sua posição de dominação. Seguindo este raciocínio, é imprescindível para as sociedades dos regimes totalitários que elas tenham à mão dispositivos de repressão coercitiva bem localizados, onde o respeito se estabeleça na ponta do chicote de um capataz identificável, ainda que consista numa máquina Simbólico- Imaginária impessoal como a Lei de Segurança Nacional do regime militar brasileiro, por exemplo.

Ampliando o escopo do olhar sobre as relações de micropoder entre pessoas e instituições, uma vez contemplado o âmbito do socius capitalista como um todo, a repressão não tem uma origem localizável, mas é engendrada pela própria estrutura social e seus componentes humanos e não-humanos. A atenção ao umbigo caósmico das coisas leva à desagradável contemplação da morte, da dor, da finitude, da

perda iminente (GUATTARI, 1992). O que fazem os discursos reacionários é contornar o vazamento de Real angustiante, disfarçá-lo com articulações Simbólico-Imaginárias e, em longo prazo, dessensibilizar a população com relação aos efeitos e à própria legitimidade da produção revolucionária. O ser se reduz à facticidade do esquecimento Heideggeriano, sem qualidade, sem passado, sem porvir, em absoluto desamparo. A criança, hiperlúcida, atenta a toda a fascinante dinâmica da realidade, vê seu senso de maravilha ser pouco a pouco dissipado em meio à rotina.

2.4. A MÁQUINA CAPITALISTA DO PONTO DE VISTA DA