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Sobre a noção Lévinasiana de passividade radical

4. O SUJEITO DO GOZO

4.3. O HUMANISMO-DO-OUTRO-HOMEM DE LÉVINAS COMO UM RECURSO AO “ELE” INACESSÍVEL

4.3.2. Sobre a noção Lévinasiana de passividade radical

Tal chamado do Rosto seria anterior até mesmo ao eu primevo. Antes de toda liberdade, esse chamado ocupa um lugar no passado originário e imemorial, que nunca foi presente, que não está na minha memória ou biografia, mas que me diz respeito e só é acessível como vestígio. No entanto, a postura passivamente humilde diante deste chamado pré-deliberativo precisa necessariamente já a priori ser afastamento, distanciamento da ordem imanente – ou correrá o risco de tornar-se participação nesta mesma ordem. É preciso manter aberto o horizonte do além, manter-se como passado que nunca se presentificou: eis o vestígio, a proximidade de Deus no rosto do meu próximo. Pela assunção do Rosto é que vemos surgir o Humano, prévio ao Ser. O

"eu" perde sua prioridade, sua atividade de autoafirmação identitária e, uma vez "desembaraçado de si e temendo por outrem" (LÉVINAS, 1993, p. 176) descobre a ética como relação fundamental entre si e outrem.

É precisamente neste ponto que se encontra a grande divergência entre a teoria Levinasiana da alteridade do Rosto e a Filosofia do Encontro de Buber, visto que de resto há relativa similaridade entre ambas. Contraposta à horizontalidade recíproca da palavra-princípio Eu-Tu de Buber (1974), em Lévinas a alteridade é marcada por uma irrevogável assimetria vertical. “Pouco me importa o que o Outro é em relação a mim, isto é problema d’Ele: para mim, ele é antes de tudo aquele por quem eu sou responsável” (LÉVINAS, 1993, p.134). A simetria só viria neste caso a posteriori com a chegada do terceiro elemento à relação e, consequentemente, o advento da justiça e do Estado.

Pelo rosto do próximo estamos novamente coram Deo, é o Deus-Outro que nos faz face, totalmente nu e indefeso, um indigente que veio do Infinito. Tal infinito é a “alteridade inassimilável, diferença com relação a tudo o que se mostra, se sinaliza, se simboliza, se anuncia e se relembra” (LÉVINAS, 1991, p.83), ou seja, alteridade do passado, do presente e do porvir. Tal alteridade radical não pode ser objeto do conhecimento, apenas da aproximação. Tampouco pode o Infinito ser tematizado pela ação desejante, que visa um fim. O Infinito suscita para si o Desejo-sem-falta, desejo advindo de um excesso, a

gratuidade. Esta é a resolução que Lévinas apresenta ao dilema

proposto no capítulo anterior a respeito da natureza econômica do desejo como positiva ou negativa.

No fim de contas, a despeito de todas as supracitadas críticas que Lévinas afirma deporem contra a legitimidade da correlação noético-noemática – da forma que é tradicionalmente concebida – como faculdade primeira de interação entre a consciência e o mundo, o autor admite que a fenomenologia de fato logrou um avanço no tecer da filosofia: ela “não se reduz à reflexão sobre a relação do pensamento com o mundo” (LÉVINAS, 1991, p.107). Toma como ponto de partida a intuição do ser em sua identidade original, cujo evidenciar-se nos é surpreendente, e abre espaço para um deslocamento de sentido que foge à apreensão lógica do intelecto do observador. O objeto da intuição é dinâmico, tem “vida própria”, e empreende tais deslizamentos de sentido, sem obstruir a atividade da razão: não se trata de uma experiência “interior” que se somasse à experiência “exterior”. A razão continua operativa, mas deixou que

algo lhe escapasse – seria a função Id? – e se vê então, tarde demais, indefesa perante este algo não-tematizável, uma heterogeneidade radical (LÉVINAS, 1991, p. 109) que põe o sujeito em questão. Husserl não teria fugido de uma filosofia fundada no saber e visando um saber; contudo, ele teria encontrado sua redenção permitindo à noção de ser que abdique de sua exigência de adequação e completude, de desvelo completo. Há espaço no Ser da fenomenologia para uma certa dose de mistério.

Inclusive, este aspecto não-tematizável de alteridade que se fazia presente na letra inicial de Husserl foi sabiamente identificado e desenvolvido por Merleau Ponty. Em Signes (1960, p.118) ele constrói uma definição da passividade perante outrem de maneira a quase fazer eco ao chamado do Rosto Levinasiano:

(...) meu olhar tropeça, é circundado. Sou investido por eles, quando julgava investi-los, e vejo desenhar-se no espaço uma figura que desperta e convoca as possibilidades de meu próprio corpo como se se tratasse de gestos e comportamentos meus [...]. Tudo se passa como se as funções da intencionalidade e do objeto intencional se encontrassem paradoxalmente trocadas11. O espetáculo convida-me a tornar-me espectador adequado, como se um outro espírito que não o meu viesse repentinamente habitar meu corpo, ou antes, como se meu espírito fosse atraído para lá e emigrasse para o espetáculo que estava oferecendo para si mesmo. Sou apanhado por um segundo eu mesmo, fora de mim, percebo outrem.

Se as funções intencionais estão trocadas, eu-noema sou outrem de alguém. A correlação continua biunívoca, não há investida vidente de outrem sem passividade minha. Meu corpo se torna um campo de possibilidades para mim mesmo naquilo que faz de mim eu e não Outro, e também para a estranheza de outrem que me afeta. A questão da alteridade radical do Outro (ou “de outrem”) em Merleau- Ponty é melhor explicada em L’oeil et l’esprit (1964). Ele explica que a presença do Outro – a menos que eu a enxergue apenas em sua dimensão empírica, um corpo bruto e esvaziado de sentido em minha

frente – não é vivenciada por mim apenas como uma afirmação positiva da existência, mas como um furtar-se à significação, à apreensão noética: se tento captar o outro e reduzi-lo a minha própria formulação intelectual, ele me escapa. É um coabitante de um corpo físico e do mundo: “uma presença impessoal, que participa de meu mundo, sem que eu possa dizer que ele seja meu” (MÜLLER- GRANZOTTO, 2012b, p.338).

À guisa de comentário conclusivo: o mais precioso na teoria de Lévinas é que a absoluta alteridade do Semblante produz em mim o efeito de preservar tal acontecimento precioso que é o Outro. Das muitas formas que o gozo pode assumir, denota-se como aspecto comum sua singularidade – e o que o torna único é precisamente o fato dele recusar a inclusão categorial. Assim, suscita-se uma postura ética – tanto de acolhimento quanto de preservação. Se há necessidade de elaborar melhor o papel da ética na operação com o gozo, tudo aponta para uma solução menos afoita por sua apropriação descritiva e que seja, em vez disso, propensa a conceder morada (éthos) ao estranhamento, deixando-o fazer vibrar a carne e servir de excitamento para o Self.