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Fenomenologia como empreitada de superação da ciência positivista

1. PELA CONSTRUÇÃO DE UMA ONTOLOGIA GESTÁLTICA

1.3. OLHAR SOBRE O SUJEITO A PARTIR DE INTERLOCUÇÕES COM A TEORIA DO SELF

1.3.1. Fenomenologia como empreitada de superação da ciência positivista

Em benefício da análise a ser articulada nos capítulos subseqüentes, é preciso retomar alguns dos fatores que determinaram a criação da fenomenologia por Edmund Husserl e perscrutar alguns de seus desdobramentos mais pertinentes. Nas décadas derradeiras do século XIX, a alvorada de uma nova geração de filosofia crítica estava ainda por nascer, e até então o modelo da ciência Positivista imperava, embora já de modo cético, quase cansado, como explicação do mundo. A própria psicologia posterior a Watson esforçava-se para manter-se aliada ao paradigma científico. A metafísica, legado da filosofia clássica, estava relegada a um plano menor. Nesse ínterim, Husserl foi aluno de Franz Brentano e tomou conhecimento de sua concepção dos fenômenos psíquicos como dotados de uma intencionalidade, o que os diferenciava tanto dos fenômenos físicos quanto dos mentais.

Na afluência da tradição Platônica, e a partir da intuição da noção de fenômeno psíquico de Brentano, Husserl construiu o corpo teórico da fenomenologia motivado pelo sentimento de uma intensa crise das ciências e da cultura; o pensamento positivista em vigor desde o fim do século XVII passou por uma crise quando, de forma assincrônica, despontaram diversos questionamentos sobre a legitimidade deste conhecimento como verdade universal. Relação alguma teria esta crise com o rigor e a validade do conhecimento produzido cientificamente, que operava em plena função. Antes, a crise dizia respeito à abertura do meio científico para novas descobertas que questionassem suas próprias aquisições e seu método. O fato é que o modelo científico opera por superposição de explicações, isto é: do levantamento de hipóteses sobre fenômenos investigados, e de sua posterior refutação ou confirmação, decorre a inferência de postulados que lhes confiram compreensibilidade, sendo aceitos e estabelecidos como modelo provisório de verdade até que sejam substituídos por novas totalidades de sentido cujos postulados sejam mais precisos. A

visão científica sobre um fenômeno, por configurar inerentemente uma atribuição de sentidos, tende a deixar escapar a riqueza subjetiva e as possibilidades de nova compreensão sobre aquele fenômeno. Esta ideia fica poeticamente clara na citação de Stephan Strasser (apud DARTIGUES, 1992, p.53): “Pode-se conceber uma descrição do movimento que seja aplicável tanto ao homem quanto ao elétron. Ela seria válida para o pesquisador que quer saber o que é a ‘locomoção’; mas, em compensação, ela nada nos ensina sobre o homem que foge e a multidão que o persegue”.

O sujeito “puro”, transcendente, dos Neokantianos, não dava conta de explicar a existência concreta. O mundo-da-vida (lebenswelt), precisava ser tematizado novamente (DARTIGUES, 1992). No caso dos fenômenos do comportamento humano dos quais Watson e Binet se ocupavam, a impressão de Husserl era de que a tradição empirista da psicologia deveras não sabia a que fenômeno estavam se referindo: tratavam o psiquismo como um fenômeno neurofisiológico-muscular, determinado por leis de ordem biológica e social. Fazia-se necessária uma forma de investigação com maior rigor conceitual sobre a questão do conhecimento, de modo que a questão da intencionalidade estivesse ali contemplada como atributo possibilitador da emergência dos fenômenos. Se o modo de se produzir conhecimento dentro da filosofia que até então estava dado consistia em ater-se às tradições do pensamento filosófico, quer para complementá-las, quer para contrapô- las, Husserl esquivou-se desta convenção e propôs uma via média entre o idealismo e o empirismo que retornasse às coisas mesmas. A fenomenologia não se limitava à experiência sensível como no positivismo empirista, mas tampouco remetia diretamente a uma verdade encontrada exclusivamente no mundo eidético à maneira de um Platonismo escancarado (DARTIGUES, 1992).

O que Husserl intencionava com a “volta às coisas mesmas” era a reintegração do mundo da ciência – compreendida como atividade humana – ao mundo-da-vida (lebenswelt), não para que a ciência se diluísse, mas, ao contrário, para promover nela um avanço necessário, revolucioná-la. Isto foi feito a partir de dois grandes pressupostos: i) o de que a ciência fala sobre este mundo, isto é, as teorias e abstrações científicas só fazem sentido se tomadas como correlato de uma experiência sensível antepredicativa. A ciência não falaria de um outro mundo “mais real que a realidade”, mas sim do mundo em que vivemos cotidianamente; e ii) o de que a ciência fala de dentro deste mundo, ou seja, a própria perspectiva do cientista é uma experiência humana, e os conceitos só são criados para traduzir vivências que o próprio homem

experienciou. É preciso que se saiba de antemão o que se quer dizer com luz, tempo, distância, velocidade, espaço, para que se possa partir à construção teórica sobre estes fenômenos.

Embora tendo incorporado os apontamentos feitos por Franz Brentano a respeito da intencionalidade, Husserl expandiu em muito o escopo dos fenômenos psíquicos, e passou a tratar de uma correlação entre consciência e mundo que fosse a própria égide de construção de todo o conhecimento sobre este mundo. Seu objetivo era a construção de uma filosofia que acompanhasse o exercício das ciências. Enquanto o cientista especializar-se-ia em uma determinada sorte de fenômenos, os quais tornaria objetos de estudo, ao fenomenólogo caberia ocupar-se do sistema total de atos possíveis da consciência. Como aponta Dartigues (1992), foi a Gestalttheorie dos primeiros psicólogos da Gestalt quem operou uma das primeiras grandes reaproximações da fenomenologia com a psicologia. Estes fizeram uso seletivo da doutrina fenomenológica: por um lado, admitiam algo como uma visada intencional nas interações entre os sujeitos e as coisas; por outro lado, atribuíam à experimentação científica uma importância ainda maior que a experiência fenomenológica, sem haver logrado – quiçá, sem haver tentado – superar o ranço do positivismo. O campo perceptivo, de acordo com a psicologia da Gestalt original de Wertheimer, Köhler e Koffka, seria pré-ordenado em formas distintas que “saltam aos olhos” antes da apreensão intelectual. Disto deriva uma ideia de Gestalt quase como realidade psicofísica, uma característica atribuída aos objetos que se imporia à consciência a priori de quaisquer atividades de síntese. Se Husserl originalmente flertava com o idealismo das essências, a Gestalttheorie se posicionava em radical contraposição atribuindo às formas um caráter de realismo imanente.