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4. O SUJEITO DO GOZO

4.3. O HUMANISMO-DO-OUTRO-HOMEM DE LÉVINAS COMO UM RECURSO AO “ELE” INACESSÍVEL

4.3.3. Ressignificação da Ética

Uma vez dito tudo o que precisava ser dito sobre Lévinas, restam as ressalvas: a experiência do Outro é vivida como uma sorte de descentramento, como “dois círculos quase concêntricos” (MERLEAU-PONTY, 1969), uma ambiguidade de reconhecimento e estranhamento. Trata-se de um fenômeno diferente do encarar o Rosto Levinasiano que se apresenta como total ausência, absoluto estranhamento do “não-eu”, que de modo algum participa do meu ser senão para convocar-me à responsabilidade por ele. O Id, por sua vez, está “quase aqui”: é inconsciente simplesmente porque é demasiado evasivo. Eis o que diz Lacan (1964, p.36-37) a este respeito:

(...) o aparecimento evanescente se faz entre dois pontos, o inicial e o terminal, deste tempo lógico – entre um instante de ver em que algo é sempre elidido, se não perdido, da intuição mesma, e esse momento elusivo em que, precisamente, a apreensão do inconsciente não conclui, em que se trata sempre de uma apreensão lograda. (...) O

estatuto do Inconsciente, que eu lhes indico tão frágil no plano ôntico, é ético12.

Entre o ponto do aparecimento e o da evanescência, a consciência que engendra a apropriação intelectual vê-se confundida, ludibriada. Lacan aponta no estatuto ético do Inconsciente uma saída menos sacrificial: deixar que o visitante venha, testemunhar seu rastro e então devolver-se à ordem por meio do petit “a”.

Uma outra ressalva ainda, desta vez com relação a uma apreensão possível do Outro. Ei-la: a concepção da subjetividade de mônada leva o próprio Husserl precoce (apud DARTIGUES, 1992) a descrever a fenomenologia como uma egologia pura, assumindo o caráter quase solipsista dos universos particulares que cada consciência constrói a partir da apreensão das Gestalten: esta posição teórica de clausura estrutural, na qual o Ego é o único responsável por toda a significação do mundo, traz consigo o inconveniente de que a intersubjetividade não está sendo considerada, ou pelo menos não recebe a devida importância. Na V Meditação Cartesiana (1931) Husserl se dedica a apresentar um adendo à sua teoria sem contradizê- la, mas afastando o fantasma solipsista da fenomenologia: ele elabora a construção de um corpo teórico que estabelece o domínio transcendental como terreno para a intersubjetividade monadológica. O outro passa a ser entendido como alter ego, outro do eu, concebido pelo ego transcendental como objeto, mas com a peculiaridade de ser uma manifestação sui generis, visto que ele é também um sujeito no mundo. Um sujeito é capaz de perceber o corpo do outro e sua manifestação atual, mas não pode a partir disso deduzir sua vida intrassubjetiva.

A teoria Husserliana permanece fundada no Ego Transcendental (monádico), mas este se torna capaz de “dar um passo atrás” na redução a ponto de poder distinguir o Mesmo do Outro, e participar dessa comunidade intermonádica de intencionalidades constitutivas do mundo, ou a uma intencionalidade interpenetrativa. Há, então, uma apreensão possível do Outro na medida em que, como alter ego, até certo ponto ele é o Mesmo que Eu. Mesmo na alteridade radical que Lévinas propõe, é necessário que o Outro se pareça comigo o suficiente para que se possa compará-lo e demarcar suas diferenças.

Mesmo em Merleau-Ponty o vislumbre dessa semelhança me remete justamente ao que me mim mesmo é estranho: um íntimo estranhamento, que é a pedra fundamental de sua teoria da intersubjetividade. O que reconheço em Outrem é justamente o “furo” que há em minha constituição, por onde escapa o Real, o objeto “a”. O mundo sensível, no Merleau-Ponty da Phénomenologie de la Perception (1945), é intersubjetivamente constituído pelo compartilhamento de objetos de conhecimento pelos sujeitos. Não obstante, estes, entre si, coexistem a partir de uma espontaneidade de contato original, de um reconhecimento mútuo que é anterior ao intelecto e à subjetividade privada. Só posteriormente é que entraremos com o trabalho de significação, momento no qual o reconhecimento do outro despertará em mim um saber-de-mim. Tal vivência intersubjetiva é o que me faz “eu”. (MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

Lévinas acerta quando trata do poder criador que subjaz na alteridade. No entanto, quando insiste em buscar fundação transcendente no Rosto do Outro, corre o risco de perder-se na positividade ingênua. “Nada está pronto. Tudo deve ser retomado do zero, do ponto de emergência caósmica”, afirma Guattari (2012, p.109). Vergando a vara ao extremo oposto, por sua vez, o próprio Guattari peca também pelo radicalismo quando confunde a incompletude das coisas com a sua completa ausência de tangibilidade existencial, e o que é pior, com a consistência do mundo engendrado por produções maquínicas que ele próprio descreve. Essa retomada não é “do zero”, longe disso: ela só é tornada possível na medida em que é amparada por todo um fundo inatual de vivências biográficas que retornam como um investimento de puro afeto, excitamento que nos toma passivos e orienta a atualidade. Cada “agora” suscita um fundo pretérito de assimilações e um fundo futuro de possibilidades que se abrem.

Nem por isso está em qualquer sentido desqualificada a participação do caos na emergência da identidade do sujeito. A biologia, ao menos aquela atravessada pelos olhares de Maturana e Varela (1972), ensina que, do ponto de vista da biogênese, os organismos enquanto máquinas autopoiéticas associam um critério de conservação sistêmica a um critério de inovação que garante variabilidade. Da mesma forma a fenomenologia tem como postulado fundamental que o lançar-se no mundo da visada intencional começa pela vertigem caótica de desterritorialização; assim, a própria intencionalidade fundadora da relação noético-noemática brota de uma fonte de caos no desconhecido. É a partir de um fundo indiferenciado que se destaca uma figura organizada, e é este mesmo fundo que

permite as condições que a suscitam. Eis porque se diz que “a psicose revela um motor essencial do ser-no-mundo” (GUATTARI, 2012, p.91).

Na ontologia gestáltica aqui presumida, que abarca assinteticamente diferentes prismas num esforço colaborativo de composição de um sujeito caosmicamente complexo, a teoria de “natureza humana” com a qual se trabalha é a da ordenação de dominância nos processos autorregulatórios. A lei básica da vida é a autopreservação e o crescimento organísmico – e a intervenção possessiva d’Isso aparece como uma invasão disruptiva desta lei básica. Talvez a alteridade não provenha do Rosto vulnerável do semelhante, mas de alhures; de todo modo, ela de fato conclama posse (ou gozo) do organismo e, na prática, opera como convocação indeclinável à ação.

4.4. GOZO NO SEMINÁRIO XX FORA DA PALAVRA-