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Máquinas sociais e o “inconfessável”

2. O SUJEITO DA CULTURA

2.5. SOBRE CÓDIGOS E AXIOMÁTICAS 1 A técnica operadora da descodificação

2.5.2. Máquinas sociais e o “inconfessável”

Ainda assim, a axiomática social não é um trabalho das máquinas técnicas por si mesmas, mas da máquina social como um todo. Isto é, a maneira como o campo social se organiza técnica e burocraticamente é o que dá partida a um movimento autopoiético que faz uso dos fluxos descodificados de conhecimento produzidos pelas máquinas técnicas. Estas são ferramentas, não mais dos homens – já que estes também devêm ferramentas – mas da própria máquina social do Estado.

A verdadeira axiomática consiste na própria máquina social, que se apropria dos fluxos de código técnico-científicos, assim como

dos demais fluxos, em seu próprio favor. Eles devem ter um fim aceito como pragmaticamente benéfico ao sistema; em última instância, diminuição dos custos ou aumento da taxa de lucro. Trata-se do capital de conhecimento, gerando mais-valia maquínica. O conhecimento sequer precisa ser contextualizado historicamente, como denuncia Žižek (2001), já que a realidade social contemporânea é marcada pela abstração real desterritorializante promovida pelo capital, que destitui as coisas de seu valor intrínseco e nada preserva a não ser seu valor de troca.

O conhecimento técnico-científico é o responsável por captar os fluxos esquizos e torná-los rentáveis: assim, são criados axiomas para mensuração de todas as esquizofrenias, dos escritores aos loucos no hospício. Toda criatividade que cai em suas garras é reterritorializada, afogada no oceano homogeneizante do socius. Quem dera antes houvesse uma sobrecodificação explícita: ao menos assim ver-se-ia o muro à frente, e se poderia saber como transpô-lo. Não há “inconfessável” no modelo Imperial da sobrecodificação despótica: há segredos, sigilo, mistérios, informações que circulam pelos submundos sem vazar para os ouvidos populares. No capitalismo, contudo, toda produção carrega um elemento “inconfessável”, que exige uma boa dose de cinismo para disfarçar: o fato de que nada daquilo importa senão para a manutenção da inexorabilidade do capital (DGAE 1972). O que vale do sujeito é sua força-de-trabalho, e quanto ao resto, serve como boa distração.

A inscrição dos corpos só vale na medida em que é estofo de antiprodução, corpos que possam absorver toda a produção de conhecimento alienado, axiomatizado que as máquinas técnico- científicas produzem. Corpos que valem por sua força de trabalho e por seu potencial de consumo. A nuance de liberdade que é oferecida a estes corpos é também perfeitamente axiomatizada: só faz permitir que eles transitem “livremente” – com indispensáveis aspas – em meio ao socius composto pelo capital e operem sínteses conjuntivas estrategicamente disponibilizadas de maneira a facilitar a descarga de energia voluptuosa de consumo. Os próprios dispositivos de lazer, fim de semana e férias, como Lacan argumenta no Seminário XVI (1968), são uma imposição do capitalismo à participação na trama social, sendo que o otium cum dignitate, ócio com dignidade de Horácio, é aqui considerado indigno. Nunca a hipótese esquizoanalítica do sujeito composto da amálgama residual do trabalho das máquinas celibatárias pareceu tão acertada. A máquina celibatária do capitalismo é a mãe do

devir-fast-food, e a revolução está à venda na loja ao lado, impressa nas camisas e broches.

A sociedade capitalista civilizada é caracterizada pela dinâmica dos fluxos descodificados inscritos como axiomas no socius-capital que desliza por debaixo do museu de uma sociedade despótica, preservada pelo seu valor de folclore neoarcaico. O ranger dessa máquina é ensurdecedor, mas pouco importa, já que os sujeitos que lhes servem de peça e amortecedor já estão devidamente surdos e não oferecem perigo de discriminar o segredo inconfessável que é sussurrado, subrepticiamente, em meio à balbúrdia. Uma trama tão complexa de experiências e produções sem-nome, ou “com todos os nomes do mundo”, mas com um único e implacável dono, a saber, o capital: não haveria outro resultado possível que não a balbúrdia rude do mundo moderno, onde a descartabilidade das produções não permite que se produzam juízos de gosto puro Kantiano. Como os adereços de um aquário, as ruínas do Urstaat, as velhas tradições e instituições obsoletas, só são preservadas por serem convenientemente pacificadoras, ou seja, são sustentadas unicamente por um critério de “interesse”, termo utilizado na Analítica do Belo (KANT, 1790) para descrever a complacência ligada à representação da existência de um dado objeto. Aprazível aos sentidos na sensação, ou aos princípios da razão ou formas reflexivas da intuição, o deleite que as coisas prometem é, em si mesmo, um fim a ser alcançado, e condiciona uma inclinação à reincidência da experiência apetitiva.

O que a Terceira Crítica Kantiana indica, contudo, é que o interesse compromete um juízo de gosto e o destitui de qualquer validade universal que lhe pudesse ser outorgada por um sensus communis; um gosto que precise de comoções, atrativos, superestimulação é barbárico. Um juízo de gosto que tenha como fundamento da conformidade a fins somente a forma e sem a mistura de nenhuma complacência meramente empírica é um juízo de gosto puro, mas qualquer outro se torna um juízo dos sentidos. Ao assim estabelecer, Kant resgata uma tradição platônica do belo como pertencente ao reino das ideias e que desvanece quando forçado a encontrar correlato no mundo sensorial. Ora, o que se vê é que o agradável na realidade contemporânea é muito mais facilmente encontrável, e o legitimamente belo quase não tem mais lugar na cultura. São poucos os juízos de gosto puros que fazemos em comparação com a torrente de experiências de amenidade abundante. Estas chegam a nos sufocar os sentidos tal é a estimulação que nos

proporcionam. Contudo, hoje o universalmente comunicável perde seu valor relativo.