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2. JUSTIÇA SOCIAL E DESENVOLVIMENTO

3.2 Os princípios da ordem econômica constitucional

3.2.5 Defesa do consumidor

Constitui tarefa importante do Direito propiciar o justo equilíbrio entre as empresas que atuam no mercado e entre estas e os consumidores. Se o mercado tende a ajustar e a aproximar-se do equilíbrio entre a oferta e a demanda, não há como concebê- lo sem a figura do fornecedor e do consumidor. Se a livre concorrência constitui caro princípio da atividade econômica, propiciando competição entre os agentes econômicos atuantes em um determinado mercado, certo é que esta competição pode gerar inegáveis benefícios aos consumidores. Neste sentido, a consagração da defesa do consumidor com princípio constitucional da ordem econômica não pode gerar suspeita, sendo inafastável sua devida apreciação quando em jogo o direcionamento ou a solução de

problemas na atividade econômica. Ressalte-se que a legislação de defesa da concorrência nos Estados Unidos e na União Europeia tem sempre no centro das preocupações o consumidor e a garantia dos respectivos direitos.

Neste sentido, a defesa dos consumidores responde a um duplo tipo de razões. Em primeiro lugar, a razões econômicas derivadas das formas segundo as quais se desenvolve, em grande parte, o atual tráfico mercantil. E, em segundo lugar, a critérios que emanam da adaptação da técnica constitucional ao estado de coisas que atualmente vivemos, imersos que estamos na chamada sociedade de consumo, em que o “ter” mais do que o “ser” é a ambição de uma grande maioria das pessoas, que se satisfaz mediante o consumo. Neste ponto, conveniente é a lição de André Ramos Tavares:

(...) o desenvolvimento tecnológico permitiu tanto o aumento da produção quanto a imposição de aumento do consumo. Abre-se, ademais, uma nova perspectiva de gerenciamento empresarial, que se norteia não pelas necessidades vitais ou essenciais do cidadão, mas sim pelas necessidades econômicas próprias da empresa. De fato, o cidadão perde tal qualidade para transformar-se em simples receptor da “demanda empresarial”: surge a sociedade do consumo de massa, na qual a produção e os serviços se baseiam não nas necessidades individuais ou sociais, mas sim no lucro. [...] O consumo, nessa perspectiva, basta em si mesmo e não pelo que representa. O ato de consumir exaure-se como um ato completo de significado, sem se cogitar do que ou para que se consome.181

Dentre as razões que inspiraram uma atitude mundial de defesa do consumidor é de se destacar a constatação de que a relação fornecedor-consumidor tornou-se massificada pelo fato da produção em grandes escalas. O espaço antes ocupado por uma contratação personalizada foi substituído por uma contratação adesiva, impessoal, de modo que o consumidor fica numa condição, por assim dizer, passiva. Opções para o consumidor somente existem na medida em que o mercado as propicia. Além disso, um sistema de propaganda intensiva, geradora de novos hábitos de consumo, gera novas necessidades. Em um quadro assim estabelecido é fácil perceber o grau de potencial lesividade a que está exposto o consumidor.

De outra parte, devido à indisfarçável vulnerabilidade do consumidor, sua proteção maior exige a interferência do Estado nas relações privadas. Cresce de importância, neste aspecto, o intervencionismo estatal, como forma de superação desta realidade, cumprindo o Código de Defesa do Consumidor (CDC) – Lei 8.078, de 11 de

181 TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora

setembro de 1990 – importante papel, lugar para onde foram sistematicamente canalizadas as preocupações do constituinte no respeitante à matéria.182

Em termos de relações privadas, antes do surgimento do estatuto consumerista, o referencial teórico e legal orbitava no vetusto Código Civil, arraigado em visão individualista e patrimonialista. Com a introdução do CDC, estabeleceu-se um novo referencial normativo, fomentador de uma fervilhante e auspiciosa jurisprudência, mais consentânea com as atuais exigências de fortalecimento do indivíduo-consumidor frente às realidades e vicissitudes do mercado e da vida, dando maior concreção ao princípio da dignidade da pessoa humana e à solidariedade que lhe é devida também na seara econômica. Fez-se mais rente a ideia de que o Direito, sendo criação do homem, a ele deveria estar dirigido, e o indivíduo, projetado na ideia de consumidor, pôde, em tese, sentir uma proteção até então não experimentada. Neste sentido, como bem observa a doutrina:

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor se constitui, sem qualquer dúvida, num notável avanço sob muitos aspectos, pautando-se pelos avanços verificados nos mais adiantados países industrializados, seguindo as diretrizes acenadas pela ONU, bem como trilhando os caminhos principiológicos traçados pela União Europeia para os países que a integram.183

Por outro lado, a ideia de que os mecanismos naturais de mercado, com sua incessante busca por eficiências de toda ordem,184 voltados, direta ou dissimuladamente, para a obtenção do lucro, resguardariam os interesses dos consumidores – pois o mercado é a eles destinado – cai por terra quando examinada a realidade que se

182 Os arts. 5º, XXXII, 24, VIII, 150, §3º, e 170, V, todos da Constituição federal e o art. 48 do ADCT

tratam da defesa do consumidor.

183 LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Cláusulas abusivas nos contratos. 2. ed. Rio de

Janeiro: Forense, 2002, p. 218.

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A teoria neoclássica distingue entre dois tipos de eficiência, quais sejam a eficiência alocativa e a eficiência produtiva. A primeira relaciona-se com a distribuição dos recursos na sociedade. Não se deve confundir a questão com o problema da distribuição de renda e de riqueza, que para os neoclássicos nada tem a ver com o direito antitruste. Para os neoclássicos, verificar se existe eficiência alocativa é simplesmente determinar se os recursos estão empregados naquelas atividades que os consumidores mais apreciam ou necessitam. No caso de monopólios, as situações de poder de mercado levam a ineficiências alocativas. Sobretudo a passagem de uma situação de concorrência para a situação em que uma firma tem grande poder no mercado gera uma redistribuição de recursos ineficiente. Ainda, a diminuição da produção objetivando o aumento dos preços leva a uma redução do número de potenciais consumidores, que deixarão de consumir o produto. A perda de utilidade para esses consumidores, que deixam de consumir um produto do qual necessitam, representa a ineficiência alocativa. Dessa ineficiência, que a teoria econômica permite presumir ser consequência natural de qualquer situação de monopólio, deve-se subtrair um outro elemento: a chamada eficiência produtiva. Ao contrário da eficiência alocativa, que vê a questão do ponto de vista de mercado, a eficiência produtiva expressa o efetivo uso dos recursos pelas empresas. É, portanto, um dado interno de cada empresa, representando o nível de dispêndio necessário para produzir um determinado bem. Assim, enquanto a eficiência alocativa se traduz na curva de demanda pelo produto, a eficiência produtiva é representada pela curva dos custos.” (SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 198-199).

apresenta, farta na exemplificação de abusos de poder econômico de toda ordem, seja na formação de cartéis e na constatação de monopólios e oligopólios, seja pelo comportamento imposto ao consumidor pelas agressivas políticas de marketing que a todo instante geram novas necessidades para eles.185

Verdade é que a legislação consumerista, juntamente com as normas protetivas da concorrência,186 constituem um forte balizamento para o mercado. De se observar, entretanto, que a legislação de proteção e defesa do consumidor tem alcançado melhores resultados do que as normas de defesa da concorrência, estas ainda extremamente carentes de observância e acatamento na realidade brasileira.

As práticas abusivas do poder econômico, além de nocivas para a posição do consumidor, têm perverso efeito inibidor para novos agentes econômicos, até estrangeiros, aptos a ingressarem no mercado, pois que maculado o caro princípio da liberdade de iniciativa econômica. Se o mercado, por si só, não se estabelece de forma a preservar os interesses dos consumidores, a situação fica mais gravosa quando detectado quadro em que o poder econômico esteja atuando de forma abusiva. Assim, é natural a preocupação do constituinte para com o consumidor, sendo que o CDC preencheu, de forma eloquente, um espaço normativo solicitado pelo sistema. Ao fazê-lo, tratou de bem cuidar dos direitos do consumidor, conferindo instrumentos para sua proteção, sem olvidar de sua inserção no contexto maior da ordem econômica. Como sintetiza a doutrina:

Assim, com os olhos fixos nos valores esculpidos na Constituição, a legislação consumerista construiu um sistema próprio, com princípios vetores (CDC, art. 4º) e regras fundamentais de ordem pública (CDC, art. 1º). Estampou rígidas normas contratuais, mitigando a ilimitada autonomia da vontade de tempos longínquos, obstando, e.g., a presença de cláusulas abusivas, as quais declarou nulas de pleno direito (CDC, art. 51). Submeteu o fornecedor às regras da responsabilidade civil objetiva por danos causados por fato ou vício do produto ou do serviço (CDC, arts. 12, 17, 18 e 25), superando a dogmática da responsabilidade com base no elemento subjetivo, a culpa. Estabeleceu, outrossim, solidariedade entre aqueles que participam do fornecimento de produtos ou serviços, desde a produção até a

185 É deveras contestável a chamada soberania do consumidor. Mesmo que os economistas se recusem a

tecer considerações morais sobre a importância das necessidades a satisfazer, e aceitem como dados as estatísticas sobre preferências, a realidade mostra que os produtores e fornecedores criam com grande frequência necessidades às quais pretendem dar resposta.

186 A Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da

Concorrência (SBDC) e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, disciplina em seu art. 1º que, dentre outros princípios, orienta-se pelos ditames constitucionais da defesa dos consumidores. Além disso, mais à frente, ao tratar do controle das concentrações, preceitua o art. 88, §6º, II, logo em seguida ao requisito da eficiência, que é preciso também demonstrar que “sejam repassados aos consumidores parte relevante dos benefícios decorrentes.” Não basta, portanto, a existência da eficiência, é necessária a garantia da efetiva repartição de seus benefícios com os consumidores. O legislador elabora, assim, em termos claros o princípio redistributivo.

comercialização (CDC, arts. 12, 13 e 18). Fixou, ainda, novas regras e prazos, novo sistema, para os vícios redibitórios (CDC, arts. 18 e 20), entre inúmeras outras regras protetivas.187

A adoção da defesa do consumidor como princípio constitucional da atividade econômica impõe o desenvolvimento de uma política nacional de relações de consumo – art. 4º do CDC –, cujo objetivo é o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo. Este dispositivo bem dá conta da dimensão da proteção do consumidor, estando ela conectada, de forma muito estreita, a toda a normatividade consagrada no art. 170 da Constituição. Este art. 4º é mesmo uma norma-objetivo,188 pois introduz no microssistema consumerista um fim a ser perseguido, uma teleologia a ser respeitada, um resultado a ser alcançado. Daí que todas as normas contidas no CDC devem ser interpretadas de forma finalística por imposição do próprio Código.