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2. JUSTIÇA SOCIAL E DESENVOLVIMENTO

3.2 Os princípios da ordem econômica constitucional

3.2.1 Soberania nacional

Soberania é um atributo do Estado. Estado soberano é aquele que faz imperar, não sem contrastes de outros atores sociais, sua ordem jurídica. Inserida no contexto econômico, por força do art. 170, I, assume a soberania nacional nova roupagem. Ela pode ser tomada como soberania nacional econômica, revelando a preocupação de que, mesmo no plano da economia, o país não esteja sujeito a ditames estrangeiros. Vale dizer que o constituinte de 1988 não rompeu com o sistema capitalista, mas, pelo contrário, quis que se formasse um capitalismo nacional autônomo e independente.

Com isso, a Constituição criou as condições jurídicas fundamentais para a adoção do desenvolvimento autocentrado, nacional e popular, que, não sendo sinônimo de isolamento ou autarquização econômica, possibilita marchar para um sistema econômico desenvolvido, em que os agentes econômicos locais e seu Estado tenham o domínio da reprodução da força de trabalho, da centralização do excedente da produção,

do mercado e a capacidade de competir no mercado mundial, dos recursos naturais e, enfim, da tecnologia. É claro que essa formação capitalista da Carta de 1988 tem que levar em consideração a construção do Estado Democrático de Direito, em que se envolvem direitos fundamentais do homem, que não aceitam a permanência de profundas desigualdades, mas, ao contrário, reclamam uma situação de convivência em que a dignidade da pessoa humana seja o centro das considerações da vida social.

Entendido, dessa forma, como a autodeterminação da condução da política econômica, certo é, entretanto, que, dada a indisfarçável desigualdade entre as nações e a crescente interdependência global em todos os setores, avulta de importância a consideração da soberania nacional como princípio norteador da ordem constitucional econômica.

Com a crescente intensificação do fenômeno da globalização, verificou-se uma maior hegemonia do capital financeiro e o rápido crescimento das empresas transnacionais. Internacionalizou-se parte da produção, houve crescente liberação e intensificação do comércio e a observância de novas práticas na formulação de contratos, tudo isto com indisfarçável repercussão na vida das pessoas, da sociedade e do próprio Estado. Por isso, as normas da ordem econômica não podem e não devem apenas restringir-se aos aspectos estritamente internos do desenvolvimento, de modo que o planejamento da atividade econômica precisa considerar os efeitos que se fazem sentir sobre as estratégias no encaminhamento da política econômica internacional.139 Mas o que parece mesmo destacado no texto é que a consideração de tais aspectos não pode chegar ao ponto de subtrair do país as possibilidades de autodeterminação.

Estando o mundo em franco processo de integração e sabido que constitui objetivo do Brasil a associação dos povos da América Latina (art. 4º, parágrafo único, da Constituição), destaca-se o tema da soberania nacional, pois esta já foi tida como um natural obstáculo jurídico à integração econômica, vez que a construção de processos de integração passa pelo estabelecimento de um arcabouço institucional de caráter supranacional com parcial transferência da soberania estatal, entendida esta nos moldes absolutos em que tem sido formulada pelos estudiosos, sempre aliando-a à questão da supremacia.140

139 DERANI, Cristiane. Op. cit., p. 105.

140 Na visão tradicional, a soberania se apresenta, do ponto de vista jurídico, como o caráter do

ordenamento de ser absoluto (no plano interno) e relativo (no plano externo). Internamente, a soberania faz-se através do Estado (ordenamento) soberano, ordem jurídica que se coloca como originária e

Verdade é que o fenômeno da globalização tem arrostado a soberania nacional. A abertura dos mercados, incrementada pelos abrandamentos alfandegários, a eliminação do xenofobismo, a questão dos capitais flutuantes e as linhas de produção mundiais, traços característicos de um processo de maximização da rentabilidade econômica com substancial alteração no modo de ser capitalista, por certo foram antevistos pelo legislador constitucional que fez inserir a soberania nacional dentre os princípios da atividade econômica.

Por outro lado, o processo de integração e a criação de legislação de caráter supranacional passam, necessariamente, pela harmonização dos sistemas jurídicos independentes, mas impõe-se a advertência de que tal não poderá ocorrer de forma acrítica e servil às normas de caráter internacional – ou, no caso do Mercosul, de caráter regional –, mormente quando estas contrariarem a tábua axiológica constitucional, definidora da ordem pública interna.

Um outro aspecto merecedor de destaque no respeitante à soberania nacional é o fenômeno atinente às multinacionais, mais grave desafio do qual padece a nação, empresas que, devido ao seu gigantismo, retiram aos Estados faculdades decisórias essenciais em matérias afetas ao destino da coletividade em geral, a despeito da proclamada despolitização, suposta característica desses megaorganismos, cuja neutralidade política decorreria da fidelidade ao ideário capitalista de busca do lucro em um mercado globalizado. E isso não é recente. Já em 1974, Paulo Bonavides alertava:

Preparando a humanidade desnacionalizada, cuja máxima aspiração seria a comunidade de consumo, os tecnocratas – filhos naturais e diletos da mentalidade que essas organizações produziram no mundo – se socorrem, não raro, da palavra interdependência para abrandar posições, amolecer escrúpulos e quebrantar resistências. Os laços nacionais se partem ante invocações desse teor, a soberania cede, a opinião consente, o patriotismo cala.141

É posta em destaque a engenharia jurídica que desafia a ordem interna e internacional. As multinacionais, na maioria dos casos, possuem o maior e o mais seguro condicionamento para a transgressão frente às normas estabelecidas e até impor as que lhes convêm. Assim, furtam-se mesmo ao controle do abuso do poder econômico, visto que, tradicionalmente, delimita a fronteira do lícito e do ilícito, mas

incontrastável. Ela é autorreferencial e se põe limites, obrigações e vínculos. Nessa visão tradicional, no plano externo, a interligação faz-se através de acordos e pactos com outros Estados soberanos

141 BONAVIDES, Paulo. As multinacionais e a desnacionalização do Estado e da soberania. Revista de

tendo aquelas empresas empregado o seu poder para a confecção da lei a que terão de se submeter, por certo obrarão para que suas condutas não tomem a pecha da ilicitude.

A despeito do aspecto negativo acima salientado, as multinacionais apresentam, como de resto todas as coisas em geral, aspectos negativos e positivos. Dentre estes se pode elencar que elas abrem possibilidades de implantar economias de escala, pondo termo a práticas antieconômicas ou antimercado, verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento, proporcionam o incremento de tecnologias básicas pertinentes a processos de produção, bem como a contribuição de capital e transferência de tecnologia, de efeito considerável e fundamental para os países em desenvolvimento, preparam quadros técnicos competentes e especializados de cientistas, gerentes e empresários, a par da capacidade renovadora de pesquisa no âmbito tecnológico, que consentiria alargar o progresso, a ciências e a produtividade. Ainda, são elas responsáveis pela intensificação das exportações, com reflexos positivos de equilíbrio no balanço de pagamentos dos países em desenvolvimento, e pela facilidade em fazer surgir novos mercados e levar a cabo a integração de mercados produtores e financeiros. Em suma, representam uma potencialidade também apreciável para o bem, na esfera material, desde que factível a superintendência corretiva de suas atividades da parte da ordem jurídica e política dos países onde atuam.

Certo é que, onde se estabelece o poder econômico, há potencialmente poder político, a despeito da proclamada perseguição de um suposto fim econômico puro, a busca do lucro, o qual, todavia, tende a ser potencializado, caso as políticas públicas se perfilhem em sintonia com o planejamento privado estratégico adotado por tais empresas. Isto reconduz para a efetiva possibilidade do uso e também do abuso deste poder econômico com vistas à interferência na formulação das políticas públicas de um modo em geral, com ameaça à esmaecida soberania nacional.

De outra parte, não seria correto ver na soberania, como princípio da ordem econômica, um nacionalismo xenófobo. Ao contrário, a integração global a que estão submetidos todos os países por certo envolve concessões, sendo a reciprocidade critério aferível, mas não suficiente, da equidade destas relações.142 Entretanto, no tabuleiro

142 Os processos de integração são mais facilmente realizáveis quando o patamar de desenvolvimento

socioeconômico dos países envolvidos não diferirem muito uns dos outros. Vide o exemplo da União Europeia. A diversidade e a heterogeneidade econômica, mas principalmente cultural, verificáveis no cenário internacional, e cuja consciência induz a um sentimento de tolerância para o diferente, necessitam encontrar espaço nos processos de integração, não significando isto opção pelo arcaico em detrimento do novo, mas sim a adoção de medidas integratórias que potencializem o desiderato de a todos os povos consorciados serem proveitosas, no sentido mais amplo do termo, mas mais proveitosas ainda para os que

internacional, não podem estar em jogo figuras e acordos que impliquem a subtração da autodeterminação. O acatamento e o respeito à Constituição Federal, aos direitos fundamentais e, de um modo especial, à principiologia estabelecida no art. 170 devem ser encarados como um sólido referencial para a aferição da soberania nacional como princípio da ordem econômica.