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1. PARÂMETROS DE JUSTIÇA: O PENSAMENTO JUSECONÔMICO

1.7 A visão de Amartya Sen

Conforme já visto, a questão da justiça nas sociedades democráticas atuais, na visão de John Rawls, parte da constatação de que as democracias liberais contemporâneas são injustas, pois há primazia do egoísmo e do individualismo, isto é, da busca dos interesses próprios de cada ser, sem que haja uma preocupação com os demais. Para realização de um meio mais justo, Rawls propõe uma revisão no contrato social, de forma que estruture a sociedade de maneira que as desigualdades naturais se transmutem em mecanismos de compensação e minimizem as mazelas sociais.

Já na visão de Amartya Sen, economista indiano vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 1998, o pensamento de Rawls traduz-se na mais influente teorização contemporânea sobre justiça, visto que esclarece que o ponto chave não está em se estabelecer uma importância comparativa do exercício de liberdades formais e dos direitos de propriedade em relação aos indivíduos, mas em moderar critérios de exercício da liberdade formal. Isto porque as questões de necessidades econômicas intensas, tais como a escassez de recursos no meio em que se vive, deve ser ponderada em face aos exercícios individuais de liberdades formais e direitos privados, não devendo haver prevalência de uma sobre outras, mas um ponderado exercício de precedência condicionada, a fim de não se promover a injustiça social, travestida no manto da realização da justiça individual.

Conforme leciona Sen:

Se a “prioridade da liberdade formal” tem de ser tornada plausível mesmo no contexto de países que são intensamente pobres, o conteúdo dessa prioridade teria de ser, a meu ver, consideravelmente restrito. Isso, porém, não equivale a dizer que a liberdade formal não deva ter prioridade, e sim que a forma

dessa exigência não deve ter o efeito de fazer com que as necessidades econômicas sejam facilmente desconsideradas.58

Apesar de haver pontos de interseção entre Rawls e Sen, há que se destacar alguns pontos em que suas linhas de pensamento divergem, nascendo desta divergência rica contribuição para o debate filosófico sobre a justiça.

Insta salientar que Sen, na obra “A ideia de justiça,” deixa claro que não pretende apresentar uma teoria de justiça como um conceito fechado, com princípios bem delineados, como faz a teoria rawlsiana. Pelo contrário, ele objetiva esclarecer como se deve proceder para enfrentar questões sobre a melhoria da justiça e a remoção da injustiça, em vez de oferecer soluções para questões sobre a natureza da “justiça perfeita.”59

Sen tem como ponto de partida a análise de algumas correntes teóricas de justiça, como a libertariana, a utilitarista e a contratualista, para, em seguida, propor a sua própria teorização de justiça.60 Destarte, considera que tais teorias morais, apesar de conviverem com a desigualdade, ora aceitando-a, ora tolerando-a, têm como premissa o igualitarismo. Contudo, olvidam que uma das consequências da diversidade humana reside no fato de que toda tentativa de se igualar indivíduos diferentes resulta em desigualdade. Diante dessa constatação, a posição de Rawls restaria negativamente afetada, uma vez que propõe que os assim chamados bens primários devem ser igualitariamente alocados, ou desigualmente alocados, para servir aos menos favorecidos. Em suma, para Sen, a pluralidade de necessidades e desejos dos indivíduos seria um fator desconsiderado por Rawls, o que tornaria mais difícil para uns que para outros a individualização dos bens primários propostos na esfera de domínio privado de cada um.

Na visão de Sen, em que pese a lucidez do pensamento rawlsiano, este peca por não considerar o déficit de capacidade61 dos indivíduos menos favorecidos, que estiveram expostos à condição de destituição continuada ou à incapacidade física ou mental. Assim, a igualdade de distribuição de bens primários não atenderia a estes

58 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:

Companhia das Letras, 2010, p. 91.

59 Idem. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:

Companhia das Letras, 2011, p. 11.

60 Idem. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia

das Letras, 2010, p. 80-83.

61 “A capacidade de uma pessoa consiste nas combinações alternativas de funcionamentos cuja realização

é factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos (ou, menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida diversos.” (Idem, ibidem, p. 105).

possuidores de carências especiais que, em relação aos demais, apresentam menor capacidade de individualização de bens primários em sua esfera de domínio privado. Portanto, a demanda por equidade não se traduziria, necessariamente, em realização de justiça.

Por óbvio, a pluralidade e a diversidade humana de interesses e preferências se traduzem em óbices, não raro, instransponíveis para igualar as pessoas, pois estas são dotadas de aptidões e capacidades diferentes em graus e gêneros.

Assim, fatores como a heterogeneidade pessoal, as diversidades ambientais, as variações no clima social, as diferenças de perspectivas e a própria distribuição de rendas entre os indivíduos de uma mesma família constituem fatores que vão conduzir a sociedade a desigualdades intoleráveis, as quais, ainda que sejam minimizadas por meio da equidade, irão gerar insatisfação, perturbação e instabilidade no meio em que se vive.62

A questão central para Sen reside, dessa forma, na qualidade da vida que se pode alcançar a partir da potencialização das liberdades efetivas dos indivíduos em poder escolher alternativas para levarem adiante seus planos de vida de acordo com suas capacidades e aptidões, de maneira que a apropriação privada de bens não se traduza em miséria e pobreza indesejáveis.

Sen entende a pobreza não somente como a privação de renda, mas como a privação de meios para capacitação dos indivíduos ao labor no meio em que se vive, sendo sociedade justa aquela que fornece meios efetivos aos indivíduos para tornarem- se independentes e dignos, logo, livres.

Compete às instituições públicas e privadas instrumentalizarem meios que permitam aos indivíduos desenvolverem plenamente suas capacidades, para que possam ter discernimento e pautarem suas ações com base em suas escolhas pessoais, sendo, então, o desenvolvimento a ferramenta para a libertação dos seres.

Suas ideias sobre justiça e desenvolvimento serão melhor analisadas no capítulo seguinte.

62 Idem, ibidem, p. 98-101.