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1. PARÂMETROS DE JUSTIÇA: O PENSAMENTO JUSECONÔMICO

1.6 John Rawls e sua teoria de justiça

A obra de John Rawls trata-se de importante marco no pensamento filosófico, político e moral do século XX, uma vez que analisa a questão da justiça distributiva

proposta por Aristóteles, por meio de uma variante teórica do “Contrato Social”, de Rousseau.45 Para tanto, partindo de uma visão contratualista, estabelece critérios equitativos de distribuição de bens sociais,46 como meio de se alcançar um modelo de justiça.

Do ponto de vista filosófico e juspolítico, a teoria de Rawls relaciona-se intimamente com a ideia de equidade, entendendo-se esse conceito como a disposição de reconhecer igualmente o respeito à esfera de domínio privado de cada pessoa, no que tange à individualização em seu patrimônio jurídico dos bens de que necessita para sobreviver dignamente, dentro de uma perspectiva doméstica.

Sua teoria fundamenta-se em um regime de exercício de liberdades individuais ou iguais liberdades, sem que se viole a igualdade. Nessa linha, o pensamento de Rawls, para uma concepção de justiça, parte de uma visão inicialmente filosófica, na qual se analisa, inicialmente, a moral e a doutrina que regem as relações sociais entre os indivíduos, para, após a verificação detida destes e dentro de um viés de direito, elaborar-se um ordenamento jurídico que reflita os anseios e os reclames dos indivíduos, transmutando-os em direitos. Em suas palavras:

A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento. (...) Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar de toda a sociedade pode desconsiderar. Por isso, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior desfrutado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a poucos sejam contrabalançados pelo número maior de vantagens de que desfrutam muitos. Por conseguinte, na sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas irrevogáveis; os direitos

45 O contrato social, ou contratualismo, é um acordo entre os membros de uma sociedade, pelo qual

reconhecem a autoridade, igualmente sobre todos, de um conjunto de regras, de um regime político ou de um governante. O contrato social parte do pressuposto de que os indivíduos irão respeitá-lo. As teorias sobre o contrato social difundiram-se nos séculos XVI e XVII como forma de explicar ou postular a origem legítima dos governos e, portanto, das obrigações políticas dos governados ou súditos. Nas palavras de Rousseau: “(...) o ato de associação encerra um empenho recíproco do público com os particulares, e que cada indivíduo, contratando (se me é dado dizê-lo) consigo mesmo, acha-se de dois modos empenhado, isto é, como membro do soberano com os particulares, e como membro do Estado com o soberano; e não se pode aplicar aqui a máxima do direito civil de que ninguém está obrigado aos compromissos contraídos consigo mesmo, pois há muita diferença entre eu me empenhar comigo mesmo ou com o todo de que faço parte.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 2. ed. São Paulo, Martin Claret, 2008, p. 31).

46 Para Rawls, os bens sociais são aqueles postos à disposição do cidadão para atendimento de suas

necessidades, podendo ser tanto bens privados, a serem comercializados pelos particulares em mercado regido por sistema de preços, como públicos, cuja distribuição fica a cargo da regulação estatal. São suas palavras: “(...) vamos supor que os principais bens primários à disposição da sociedade sejam direitos, liberdades e oportunidades, renda e riqueza. (...) Esses são os bens primários sociais. Outros bens primários, como a saúde e o vigor, a inteligência e a imaginação, são bens naturais; embora sua posse sofra influência da estrutura básica, não estão sob seu controle direto.” (RAWLS, John. Uma teoria da

garantidos pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas nem ao cálculo de interesses sociais.47

É de se ressaltar que Rawls concebe a sociedade como um todo, e as suas instituições como corpos coletivos, negando, a princípio, uma visão individualista, que recai por vezes num utilitarismo,48 que é combatido ao longo de sua obra e alheio à ideia contratualista em que sua noção de justiça se apoia. Rawls adota, contudo, um conceito clássico de justiça, reconhecendo a existência de conflitos de interesses e a necessidade de encontrar um consenso quanto aos princípios que deverão orientar a associação humana e a ação individual.

Para tanto, é necessário que os participantes desse processo se encontrem em uma posição de imparcialidade. Conforme explica Amartya Sen:

A especificação de Rawls das exigências de imparcialidade é baseada em sua ideia construtiva de posição original, que é central para sua teoria da “justiça como equidade.” A posição original é uma situação imaginada de igualdade primordial, e que as partes envolvidas não têm conhecimento de suas identidades pessoais, ou de seus respectivos interesses pelo próprio benefício, dentro do grupo como um todo. Seus representantes têm de escolher sob esse véu de ignorância, ou seja, em um estado imaginado de ignorância seletiva (especialmente, ignorância sobre os interesses pessoais característicos e concepções reais de uma vida boa – conhecendo apenas o que Rawls chama de “preferências abrangentes”), e é nesse estado de concebida ignorância que os princípios de justiça são escolhidos por unanimidade. Os princípios de justiça, em uma formulação rawlsiana, determinam as instituições sociais básicas que devem governar a sociedade que estão, podemos imaginar, por “criar.”49

Com fulcro nas premissas da posição original e do véu de ignorância, o filósofo norte-americano presume que o referido paralelo entre dever e poder existe, opondo-se ao estabelecimento de deveres que não podem ser executados. Assim, pressupõe que todas as leis produzidas são fruto do debate político e traduzem, necessariamente, o consenso social e a boa-fé do legislador, logo deverão ser obedecidas. Contudo, destaca

47 Idem, ibidem, p. 4.

48 O utilitarismo é uma doutrina moral cujos principais representantes são os ingleses Jeremy Bentham

(1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), e que põe como fundamento das ações humanas a busca egoística do prazer individual, do que deverá resultar maior felicidade para maior número de pessoas, pois se admite a possibilidade de um equilíbrio racional entre os interesses individuais. Assim, o utilitarismo é uma doutrina ética que prescreve a ação (ou inação) de forma a otimizar o bem-estar do conjunto dos seres sencientes. O utilitarismo é, então, uma forma de consequencialismo, ou seja, ele avalia uma ação (ou regra) unicamente em função de suas consequências. Segundo Amartya Sen: “Na forma clássica do utilitarismo, como desenvolvido por Jeremy Bentham, define-se a utilidade como prazer, felicidade ou satisfação, e portanto tudo gira em torno dessas realizações mentais. (...) Nas formas modernas do utilitarismo, a essência da „utilidade‟ frequentemente é vista de outro modo: não como prazer, satisfação ou felicidade, mas como a satisfação de um desejo ou algum tipo de representação do comportamento de escolha de uma pessoa.” (SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 81).

49 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São

que o dever de obediência só deve guardar relação de submissão com os atos que são leis, ainda que somente o sejam em sentido meramente material.

O autor ressalta que o tratamento análogo a situações idênticas traduz-se em garantia de justiça, visto que afirma que situações sociais que não estão satisfatoriamente reguladas em lei são portas abertas para decisões arbitrárias por parte dos juízes. Isto se dá devido à administração da justiça, que, quando não se baseia previamente em um sistema jurídico, pode se desnaturar para transmutar-se em um sistema tirano, no qual um grupo oligárquico altera o sentido das leis e as aplica ao seu mero arbítrio.

Entretanto, dado o dinamismo no qual a sociedade evolui, Rawls reconhece a incapacidade do sistema jurídico em regular previamente todas as situações complexas da vida social.

Visando a identificar adequadamente os princípios que determinam a escolha das instituições justas necessárias para a estrutura básica de uma sociedade, através de tal exercício de equidade, Rawls formula, então, dois princípios de justiça:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas.

Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos.50

Tais princípios de justiça “devem ser dispostos em uma ordem serial, o primeiro sendo prioritário do segundo. Essa ordenação significa que as violações das iguais liberdades fundamentais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas nem compensadas por maiores vantagens sociais e econômicas.”51

No que toca às liberdades fundamentais dos cidadãos, estas se configuram em cinco grupos. O primeiro trata da liberdade política, traduzindo-se na possibilidade de participação ativa e passiva na condução dos negócios públicos do Estado, isto é, na capacidade de votar e ocupar cargos públicos. O segundo grupo aborda a liberdade de expressão e de reunião. Significa a garantia de manifestação independente de ideais no meio em que se vive. Em seguida, encontra-se a liberdade de consciência e de pensamento, que possibilita ao indivíduo garantia de orientação ideológica, livre de pressões e coerções externas. O quarto grupo de liberdades fundamentais contempla a

50 RAWLS, John. Op. cit., p. 73. 51 Idem, ibidem, p. 74.

liberdade de propriedade, permitindo a individualização na esfera de domínio privado do cidadão de determinado bem ou direito. Por último, está a liberdade de detenção arbitrária, a qual impede que o indivíduo tenha seu direito de ir e vir cerceado pela autoridade estatal sem a prévia e obrigatória observância do procedimento estabelecido em lei. Conforme o primeiro princípio de justiça, todas essas liberdades devem ser conferidas igualmente.

Assim, dentro de um sistema justo e equitativo de normas, compete aos cidadãos assegurar que o ordenamento jurídico se traduza em um ordenamento de leis que permitam o pleno exercício das liberdades individuais na condução de vida do cidadão, as quais são basilares para se garantir a isonomia. Ademais, a garantia do exercício de tais liberdades, segundo Rawls, promoverá a igualdade de oportunidades, no que se refere ao acesso aos bens sociais a serem disputados e compartilhados. No entanto, uma vez que os cidadãos são potencialidades únicas, no que tange às habilidades e talentos que possuem, haverá uma individualização diferenciada na esfera de patrimônio jurídico de cada um, o que conduzirá, inevitavelmente, à desigualdade, daí a necessidade da aplicação do segundo princípio.

Portanto, do segundo princípio diz-se que a distribuição de renda e riqueza, e de posições de autoridade e responsabilidade, devem ser consistentes tanto com as liberdades básicas quanto com a igualdade de oportunidades. Para Rawls, “todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais do auto- respeito – debem ser distribuídos de forma igual a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores seja vantajosa para todos.”52 Assim, pode-se inferir que

a injustiça constitui-se de desigualdades que não beneficiam a todos.

Mais à frente, ao tratar da igualdade democrática e do princípio da diferença, Rawls afirma que a primeira é atingida por meio da combinação do princípio da igualdade equitativa de oportunidades com o segundo. A função do princípio da diferença é eliminar a indeterminação do princípio da eficiência, elegendo uma posição particular a partir da qual as desigualdades econômicas e sociais da estrutura básica devem ser julgadas.53

Pressupondo liberdades iguais e igualdade equitativa de oportunidades, o princípio da diferença estabelece que “as expectativas mais elevadas dos que estão em melhor situação serão justas se, e somente se, fizeram parte de um esquema que eleve as

52 Idem, ibidem, p. 75. 53 Idem, ibidem, p. 91.

expectativas dos membros mais desfavorecidos da sociedade.”54 A ideia é a de que a

ordem social não deve estabelecer e assegurar as perspectivas mais atraentes dos que estão em melhores condições, a não ser que, ao assim se posicionar, traga também vantagens para os menos afortunados.

Desta feita, como aduz Sen, “a escolha dos princípios básicos da justiça é o primeiro ato no desdobramento multiestágio da justiça social concebido por Rawls.”55 A

escolha desses princípios influencia tanto a escolha das instituições para a estrutura básica da sociedade, bem como também influencia a determinação de uma concepção política de justiça. Este seria o primeiro estágio imaginado por Rawls, que levaria ao estágio seguinte, qual seja o constitucional. Neste estágio, considerando as condições particulares de cada sociedade, serão escolhidas as instituições reais de acordo com os princípios de justiça adotados. Já o funcionamento dessas instituições, por sua vez, leva a novas decisões sociais em estágios posteriores, como a seleção de uma legislação apropriada, o que seria o estágio legislativo. E assim a sequência avança.56

Quanto à seara econômica, muito embora o ponto fulcral de sua teoria seja a justiça, e não a economia, não há como se dissociar os critérios de distribuição de bens dos problemas morais que são oriundos da economia política. Por sua vez, esta concede grande importância ao setor público e à forma de enquadramento que devem ter as instituições que regulam a atividade econômica e que incluem, entre outros, o sistema tributário, os direitos patrimoniais e a estrutura dos mercados. Um sistema econômico determina a escolha dos bens a produzir e dos meios que serão adotados para tanto, bem como as formas pelas quais irão se realizar as trocas comerciais para a individualização de sua titularidade, a fim de atender as necessidades dos cidadãos e a importância dos recursos consagrados à poupança e à produção dos bens públicos.

Dessa maneira, a justa distribuição de rendas e riquezas seria fruto da legitimação ponderada de um sistema de liberdades individuais a ser garantido pelo Estado, mediante isonomia de oportunidades e divisão igualitária de remuneração. Para tanto, Rawls considera que a carga tributária deve ser reduzida, de maneira a não comprometer o poder de aquisição imediata de bens do tributado e sua capacidade de endividamento para obtenção de crédito a médio e longo prazo.

54 Idem, ibidem, p. 91.

55 SEN, Amartya. Op. cit., p. 85. 56 Idem, ibidem, p. 86.

Tal teoria parte da premissa de que a quantidade de trabalhadores em exercício de atividade econômica rentável deve superar, e muito, a quantidade de pessoas que se encontram alijadas de participar do processo de geração de rendas e riquezas da nação, de modo que o papel do Poder Público, como redistribuidor na seguridade social, em sua vertente assistencialista, seja mínimo, o que permite uma baixa carga tributária individual, posto que o número de contribuintes supera, em muito, o de beneficiários. Nessa linha de pensamento, há que se considerar que o cidadão encontra-se perfeitamente capacitado para se inserir no mercado de trabalho, o que pressupõe um sistema de acesso a ensino básico, médio, técnico profissionalizante e superior. Assim, a assunção de poucos deveres de solidariedade para o Estado permite que a sociedade civil assuma parcela maior de risco social, em relação a cada individualidade que a compõe.

Atente-se que uma política de estipulação de renda mínima para o labor humano em patamares consideráveis de remuneração digna deve pautar-se no perfil de capacitação do trabalhador. Caso não se encontre devidamente qualificado para o mercado, não há como o Poder Público impor uma remuneração condigna a ser paga pelos agentes privados, detentores dos fatores de produção.

Assim, a teorização da justiça no campo econômico não pode ficar alheia nem a fatores micro nem a macroeconômicos, sendo necessário que o Poder Público, na qualidade de distribuidor de rendas e riquezas, não se limite a mero ente tributante.57 Faz-se mister, portanto, que o Estado atue tanto na vertente tributária, quanto na vertente social, no sentido de capacitar seu cidadão para o exercício de atividade econômica complexa e elaborada e, assim, fazer jus a patamares remuneratórios diferenciados, por seu grau de especialização. Todavia, não se alcançará justiça social com mera justiça tributária, sendo necessário que o Poder Público atue incentivando os cidadãos de maior riqueza a disponibilizar parcela de seu patrimônio individual aos menos abastados e pouco favorecidos.

Atento, pois, à sociedade como um todo e avesso a teses meramente individualistas, o filósofo norte-americano é um defensor da liberdade, praticada em igualdade de circunstâncias no convívio social. Depreende-se o caráter interdisciplinar e eminentemente jurídico-filosófico de sua obra, construindo sua teoria da justiça com base em aspectos econômicos e sociológicos.

57 RAWLS, John. Op. cit., p. 346-347.

O contratualismo social de Rawls é, portanto, fruto de um diálogo no qual os indivíduos debatem e ponderam os limites de seus interesses, que podem refletir tanto num consenso, quando são convergentes, quanto num dissenso quando divergentes.

Assim, a construção da norma jurídica, como meio de operacionalizar a justiça, de maneira a possibilitar que os princípios eleitos como norte social reflitam mecanismos de exercício de liberdades individuais que garantam a todos o alcance de sua satisfação pessoal, deve ser fruto de um debate no qual se garanta voz ativa a todos os segmentos sociais envolvidos, sem que um se sobreponha ao outro.