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3 DO PIQUETE AO PACOTE: ENTRE A CAUSA OPERÁRIA E A

3.1 ANOS REBELDES

3.1.1 Delimitando os espaços sociais

Lazer, consumo e família são instâncias às quais é dada tamanha importância que a elas é dedicado todo um capítulo da obra, “Família, problemas de casa, bairro, lazer, esporte,

horóscopo”. Nesta parte – que, diga-se de passagem, foi encartada no livro logo após os capítulos que tratam de questões mais diretamente ligadas às relações trabalhador/patrão e trabalhador/ambiente de trabalho – se faz presente um recurso muito comum em histórias em quadrinhos, que viria a ser uma ferramenta de grande importância para Laerte durante sua carreira, a metáfora visual:

A linguagem dos quadrinhos adotou o princípio substitutivo da metaforização, [...] até criar verdadeiros ideogramas – expressão figurativa de ideias –, progressivamente abstratos ou conceituais. Essa substituição analógica se utiliza, sobretudo, para expressar vivências e estados de ânimo (ou seja, em forma de sensograma), tais como o amor, a dor, etc. Em não poucos casos se trata de uma tradução icônica de expressões verbais comuns [...].67 (GASCA; GUBERN, 2011, p. 211).

Figura 11 – O espaço pessoal

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 135.

Na Figura 11, a metáfora visual simboliza a necessidade de o trabalhador delimitar seu espaço pessoal, isolando família, amigos e lazer das agruras do ofício. A presença deste tipo de imagem num livro que reúne obras desenhadas para boletins sindicais é um indício do quão precioso é este espaço social – e do quanto ele se encontrava em perigo. O ato de traçar uma linha demarcatória é defensivo e sugere a existência, por oposição, de uma ameaça a esta zona de tranquilidade. Esta “ameaça” será melhor trabalhada na seção seguinte.

Há também personagens jogando bola (FIGURA 12), tomando banho de sol (FIGURAS 13) e carregando gêneros alimentícios (FIGURA 14).

67 El linguaje de los cómics ha adoptado el principio sustitutorio de la metaforización, [...] hasta crear

verdadeiros ideogramas – expresión figurativa de ideas –, progresivamente abstractos o conceptuales. Esta sustitución analógica se utiliza sobre todo para expresar vivencias y estados de ánimo (es decir, en forma de sensograma), tales como el amor, el dolor, etc. En no pocos casos se trata de una traducción icónica de expresiones verbales comunes [...].

Figura 12 – Futebol

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 21.

Figura 13 – Banho de sol

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 21.

Figura 14 – Compras

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 128.

Tais imagens subvertem uma possível expectativa de encontrar, num volume intitulado Ilustração sindical, apenas referências diretamente ligadas ao mundo do trabalho. Neste ponto da análise, é preciso reforçar que pensar os desenhos de Ilustração sindical como significantes linearmente orientados para um só significado limita o aspecto polissêmico de figuras que, ademais, foram concebidas como complementos visuais de textos que pudessem ter aplicabilidade futura, a fim de que não fosse mandatório produzir novos desenhos a cada publicação sindical (que, em épocas de grande mobilização, se multiplicavam). Apesar da cautela que demandam em sua análise, estas representações não são esvaziadas de seu valor testemunhal: retratam elementos e práticas que, independente do texto que fossem convocadas a ilustrar, constam da construção imagética do que, em algum momento, foi conveniente ou até necessário trazer à baila para enfatizar discursos sindicais que primavam por alcançar aspectos da vida de seus leitores presumidos. Estes discursos ultrapassavam a mera gestão de perdas e ganhos profissionais, de acordo com o que foi selecionado para constar numa obra que se propunha a municiar visualmente entidades sindicais na propagação de suas mensagens. “[...] [N]ão se trata de raspar as imagens para que o verdadeiro apareça, mas fazer com que se mexam para que outras figuras possam ser compostas e decompostas.” (RANCIÈRE, 1988, p. 23-24).

É possível verificar esse “mexer imagens” de que fala Rancière na incursão dos sindicatos no universo pessoal, sugerindo a necessidade de alcançar o público-alvo também na dimensão particular da vida. Em que pese a possibilidade de uma postura assistencialista,

-americana do “sindicalismo de negócios”68, isto não exclui da equação o dado que, ao apresentar momentos de prazer e satisfação como áreas a serem protegidas ou objetivos a serem alcançados, os sindicatos colonizavam os aspectos não laborais, incluindo-os na agenda política de lutas. Em se considerando, como será demonstrado na seção seguinte, que o mundo do trabalho punha em constante risco o mundo da vida pessoal, não é desarrazoado supor que os momentos de lazer e de cotidiano se tornaram, igualmente, parte do campo de batalha (PARANHOS, 2011).

Ilustrativo do quanto a vida pessoal e a profissional se imiscuíam, é a análise de representações do feminino existentes em Ilustração sindical. A própria Figura 14 pode ser conclamada na construção do argumento. Nela, uma mulher aparece realizando compras. Isoladamente, a imagem não seria suficiente para supor convenção de gênero; associada a outras, porém, torna-se sustentável a construção da hipótese. Num primeiro momento, chama a atenção que a quantidade de imagens femininas seja bem menor do que as masculinas e que a vida privada se restrinja, prioritariamente69, à vida no lar, seja no abastecimento de gêneros (FIGURA 14), na realização de tarefas domésticas (FIGURA 15) ou na segunda jornada de trabalho que é a maternidade (FIGURA 16).

Figura 15 – Servindo a refeição

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 130.

68 “John Commons (1918-1935) e Selig Pearlman (1922) são considerados como os principais pensadores da

escola americana que teorizou o sindicalismo em termos de business unionism (sindicalismo de negócios). Este sindicalismo, concebido como um negócio que vende trabalho, se opõe ao social unionismo, que concebe a ação sindical através de uma visão mais ampla do social.” [John Commons (1918-1935) y Selig Pearlman (1922) están considerados como los principales pensadores de la escuela americana que ha teorizado el sindicalismo en los términos de business unionism (sindicalismo de negocios). Este sindicalismo, concebido como un negocio que vende trabajo, se opone al social unionismo, que concibe la acción sindical a través de una visión más amplia de lo social.] (URTEAGA, 2010, p. 35).

69 Mas não unicamente. Em número menor, aparecem como militantes, em multidões, exibindo diploma e em

Figura 16 – Trabalhadora

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 9.

Uma leitura direta de viés sexista é possível e não seria desprovida de méritos, mas não pode ser tomada como a única possível. Em primeiro lugar, porque o universo operário brasileiro, na época, era, de fato, predominantemente masculino, havendo, por exemplo, entre 1977 e 1980, na categoria dos metalúrgicos, aproximadamente 32 mil mulheres, numa população de 140 mil trabalhadores (SILVA, A., 2006), o que subsidiaria a disparidade percentual de representações. Além disso, a própria visibilidade dada à mulher operária já é um reconhecimento de sua existência e, quanto à condição maternal, não se deve olvidar que o status de trabalhadora pode ser associado às consequências profissionais da gestação, como demissões e ter que lidar com a ausência ou precariedade das creches no ambiente de trabalho. A Figura 16, inclusive, reforça este entendimento, na metáfora visual da operária “carregando a empresa nas costas”, perseguida pela inescapável função de mãe. Portanto, a imagem da mulher tanto pode servir como resistência à opressão sofrida por ela no trabalho, quanto encorajar o engessamento de papéis sociais que aprisionam a mulher no estado de mãe e responsável primária pela exaustiva tarefa de cuidar das crianças e do lar. A ambiguidade se preserva neste duplo movimento, que demonstra como a resistência pode contribuir com a manutenção de perspectivas mais conservadoras da sociedade (KELLNER, 2001).

Os espaços de luta reconhecidos pelo movimento sindical comportavam várias frentes de combate, e a questão da mulher operária era apenas uma delas. Nesta última imagem

(FIGURA 16), os papéis pessoal e profissional convergem de forma opressiva na vida feminina. A seguir, serão analisadas imagens que testemunham outras formas de opressão e os modos de combate apresentados.