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4 SABRES NO PICADEIRO: A PASSAGEM DE LAERTE PELA

4.1 DO UNDERGROUND AO UDIGRUDI

4.1.3 Quadrinhos no Brasil: o udigrudi e a Circo

Nos estertores da ditadura militar brasileira, ao meio da década de 80, muitas mudanças aconteciam. O fim da censura, a abertura democrática e a campanha pelas “Diretas Já”, exigindo a volta da eleição direta para Presidente da República, foram alguns dos acontecimentos que tiveram lugar neste período. No plano específico das HQ, o país contava com editoras em franca atividade, como a Editora Brasil América Ltda. (EBAL), a Abril e a Rio Gráfica e Editora (RGE), que mais tarde se tornaria a Editora Globo. Ao lado destas de maior destaque, uma série de pequenas editoras que publicavam quadrinhos despontaram e se extinguiram, como Edrel, Grafipar, La Selva e Vecchi. Em sua grande maioria, nasceram ou vieram a fixar residência na cidade de São Paulo (VERGUEIRO, 2011).

Ao lado das publicações do nosso mainstream, porém, desenvolveu-se, como nos EUA, um universo de publicações marginais, os fanzines. Estas publicações, feitas por fãs (fanzine se origina da fusão de palavras da expressão fanatic magazine), circulam nos Estados Unidos desde a década de 30, vindo a se disseminar pelo Brasil somente a partir dos anos 60, por influência dos comix estadunidenses. Mantinham, na década de 80, as principais características de seu surgimento no país: a produção alicerçada em poucos recursos tecnológicos (basicamente, passou-se da reprodução por mimeógrafo àquela por fotocopiadora), a liberdade criativa, a baixa tiragem, a periodicidade irregular e o diletantismo, expresso pelo interesse reduzido ou inexistente em compensação financeira pelo

84 As the name “underground” suggests, the intentional violation of societal taboos was central to the ideology of

the comix movement, and in the undergrounds the drawing style previously identified with innocuous comics for kids became the preferred mode for the unrestrained depiction of sex, violence and politic rebellion.

trabalho (ANDRAUS, 2011). Como especificado no capítulo anterior, Laerte começou sua carreira atuando em fanzines. Embora sua passagem pelo Balão, na USP, seja mais comentada, não foi sua primeira incursão na área: “Mas antes disso eu tinha uns [fan]zines também. Trabalhava num zine chamado Sibila.” (LAERTE, [2011b], p. 1, grifo do autor).

Pode-se compreender os fanzines como parte do movimento que veio a ser chamado de udigrudi:

É apenas a partir da década de 70 que os quadrinhos nacionais “para adultos” começam a adquirir um espaço no mercado e a competir com os estrangeiros. Inicialmente, eram revistas experimentais que sobreviviam às custas do autofinanciamento dos autores, revistas influenciadas pelas propostas identificadas com o movimento underground norte-americano [...]. Suas características tendiam a seguir as propostas estéticas e culturais originárias desses movimentos à margem do mercado oficial. Assim, a tradução tupiniquim chamou-se de udigrudi. (SILVA, N., 2002, p. 24, grifos do autor).

Os fanzines representaram um primeiro passo na direção de publicações de HQ alternativas ao mainstream no Brasil, mas o fim do regime de exceção abriu caminho para iniciativas mais ousadas. Este movimento foi sentido como necessidade em vários países que escaparam de governos autocráticos, ao longo da segunda metade do século XX, como a Espanha pós-Franco (SANTOS, 2011b), a Argentina pós-ditadura militar (VAZQUEZ, 2010) e mesmo produções em contexto de diáspora, na fuga de regimes autoritários, como ocorreu com obras produzidas pelos argelinos Farid Boudjellal e Kamel Khélif (MOURA, 2012). Vale lembrar que o fato de este movimento ter se verificado em função da conjuntura em países que iniciavam ou reiniciavam a jornada democrática não sinaliza “[...] uma concepção de História fascinada por um Estado demiúrgico, inaugurador do processo social [...]” (SILVA, M., 1989, p. 24). Não seria exato, afinal, considerar que a ação oficial, pura e simples, cerceando a criatividade por meio da força, possa ser o único fator a responder por produções alternativas, por processos criativos bem executados ou medíocres, pois

[...] a curva de criação, os momentos densos de produção de trabalhos de maior significação cultural, os lances mais ricos de debate apresentam uma configuração que surpreende a quem se apóia demais no fator repressão para explicar a pobreza de certas obras [...]. (XAVIER, 2001, p. 56).

Apesar de não se poder resumir o processo das publicações alternativas no Brasil a jogo de causa e efeito com as demandas estatais, é inegável que as ações do poder público não podem ter sua influência negligenciada. Isto posto, constata-se que: “A data escolhida para a criação da Circo Editorial foi 26 de abril de 1984, dia em que o Congresso rejeitou a Emenda

Dante de Oliveira, que estabelecia a eleição direta para presidente da República para o sucessor do general João Batista Figueiredo.” (SANTOS, 2011a, p. 151). A Circo nasce, portanto, na comoção de um dos momentos mais frustrantes da História brasileira recente, o fracasso do movimento “Diretas Já”.

Situada também em São Paulo, a Circo Editorial foi fundada por Toninho Mendes e agregou talentos como Laerte, Angeli, Glauco e Luiz Gê. As publicações da editora se voltavam aos quadrinhos, sobretudo as tiras e as histórias mais longas, distanciando-se da forma predominantemente reativa de humor gráfico que se fazia na década anterior, quando: “A necessidade de reação à ditadura fez com que, no desenho de humor da época, as charges se sobressaíssem (e não mais os cartuns como nos anos 1950 e 1960).” (GOODWIN, 2011, p. 538).

A primeira revista a ser lançada pela Circo, em 1985, foi Chiclete com Banana, talvez a mais emblemática de todas. O título escolhido já trazia o embrião da qualidade híbrida que se planejava para a publicação:

[...] [O nome Chiclete com Banana foi dado] em homenagem ao Jackson do Pandeiro e àquela música maravilhosa Chiclete com Banana[85], que tem tudo a ver com o conceito da revista, a música fala de bebop com samba, rock tocado com zabumba e tamborim, quer dizer... é uma cultura rock universal, sem deixar de ser uma coisa tipicamente brasileira.” (ANGELI, 2001, p. 36, grifos do autor).

Nesta combinação que dá nome à canção, simbolizando o Brasil, está “[...] a banana, matéria-prima e riqueza natural de um país agrícola e em processo de desenvolvimento, e o chiclete, produto da industrialização e índice do progresso norte-americano.” (SOUZA, 2011, p. 200). A ideia de síntese é um interessante contraponto à lógica dualista do “nós contra eles”, que, como visto no capítulo anterior, era corrente na crítica política do período ditatorial. Com efeito, as demais revistas da Circo seguiram a mesma linha editorial, ainda que, eventualmente, ainda enveredando por uma crítica política mais escrachada.

Mesmo durando apenas oito números “regulares” (de periodicidade incerta, entre 1986 e 1988) e um especial (1988) a revista Circo86, homônima da editora, foi um interessante produto experimental, trazendo, em suas páginas, histórias de artistas estrangeiros, como o

85 A música Chiclete com Banana, imortalizada na voz de Jackson do Pandeiro, em 1959, foi, na verdade,

composta pelo baiano Gordurinha, em 1958. Este chegou a gravá-la, no mesmo ano que Jackson (TORRES, 2008).

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Para estabelecer uma diferenciação, a Editora Circo continuará sendo grafada em modo normal, enquanto que a publicação Circo ficará sempre em negrito. Pelas mesmas razões de diferenciação, Piratas do Tietê será grafado em modo normal quando se referir aos personagens, e em negrito, Piratas do Tietê, se se tratar da revista. O procedimento será mantido para todos os casos semelhantes, nesta tese.

norte-americano Robert Crumb e os europeus Moebius, Dionnet e Frank Marguerin (o “chiclete”) ao lado de quadrinistas brasileiros, como Laerte, Luiz Gê e Glauco (a “banana”). Seguindo a boa fase financeira – Chiclete com Banana chegou a alcançar a marca de 110 mil exemplares vendidos (ANGELI, 2001, p. 36) – outros títulos vieram, como Geraldão, de Glauco e, finalmente, Piratas do Tietê, de Laerte.

Os piratas haviam sido criados para uma história publicada em Chiclete com Banana, em 1986, e fizeram tanto sucesso que foi considerada viável a carreira solo. Bebendo de várias fontes, o quadrinista, que também editava a revista, publicou histórias de sua autoria, basicamente, mas também dos norte-americanos Robert Crumb e Harvey Pekar, autor da série autobiográfica American Splendor, dos quais Laerte sempre foi admirador – ao ponto de, ao não lograr contato com Pekar, arriscar reproduzir uma de suas histórias em Piratas do Tietê n. 11, sem o devido consentimento legal (LAERTE, 2010b). Refletindo as influências recebidas, os primeiros números foram diagramados num retângulo “horizontal” 27X18cm, mais apropriado para a publicação de tiras, que era o utilizado pelo quadrinista Henfil, na década de 70, em sua publicação Graúna (SILVA, Fabio, 2010). A baixa visibilidade nas bancas fez com que, a partir da edição 7, o formato passasse para 21X28cm (SANTOS, 2011).

Piratas do Tietê durou 14 números, sendo publicada, irregularmente, entre 1990 e 1992.

Após o cancelamento, Laerte continuou envolvido em outros projetos da Circo, como a revista de tiras Striptiras e especiais, como as três edições de Los 3 Amigos, um projeto conjunto desenhado com Angeli e Glauco. A Editora Circo ainda permaneceu ativa até o ano de 1995, quando problemas de gestão financeira, inflação e planos econômicos malfadados a levaram à falência (SANTOS, 2011).

Durante a existência da Circo, o panorama dos quadrinhos brasileiros foi irremediavelmente transformado, com a ascensão de um tipo de humor mais voltado para a crítica de costumes, em lugar da crítica política que vigorara quase absoluta até a abertura democrática. A proposta guardava relações com o movimento underground e com o udigrudi, ainda que preservasse características que a distinguissem destes:

Nessas revistas, o conteúdo e as características das personagens apresentam semelhanças com personagens de quadrinhos do udigrudi, principalmente por seu humor extremamente crítico. Entretanto, elas se inserem numa nova proposta editorial, que influencia a maneira como elas são percebidas no mercado. (SILVA, N., 2002, p. 26).

Laerte criou, em sua passagem pela Circo, os que talvez sejam seus personagens mais icônicos, os Piratas do Tietê. Na próxima seção, duas destas histórias serão analisadas.

4.2 NAVEGANDO PELO TIETÊ: A MULTIRREFERENCIALIDADE DO UNIVERSO