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3 DO PIQUETE AO PACOTE: ENTRE A CAUSA OPERÁRIA E A

3.2 O OUTRO LADO DA COISA: PODER E SEXO

3.2.1 Política, políticos e reciclagem cultural

O tamanho da coisa é um registro heterogêneo no qual Laerte se propôs a

arregimentar “[...] uma espécie de média aritmética de piques variados. Vigora o espírito de almanaque.” (LAERTE, 1985, p. 4). A maior parte das obras foi feita para a Gazeta

Mercantil, mais algumas para a imprensa sindical, Folha de São Paulo, Pasquim e outros.

Há também expressiva quantidade de material qualificado como inédito. O álbum é dividido em capítulos. Cada um deles, emulando o título do encadernado, traz a palavra “coisa” (figurativamente, um designativo genérico), não necessariamente com a mesma carga semântica. “A coisa velha”, por exemplo, agrupa charges e cartuns produzidos ou inspirados no crepúsculo do regime militar; “A coisa lá fora”, por sua vez, apresenta trabalhos que problematizam a dívida externa e a relação do Brasil com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Se nas ilustrações para os sindicatos a fronteira entre caricatura, cartum e charge por vezes era indefinida, em O tamanho da coisa esta distinção é mais clara. Alguns veículos de comunicação para os quais Laerte escrevia, como a Folha de São Paulo e a Gazeta

Mercantil especificamente o instavam a buscar inspiração nos noticiários, nos personagens e

Figura 38 – Carroças

Fonte: LAERTE. O tamanho da coisa. São Paulo: Circo; Oboré, 1985, p. 96. (Série Traço e Riso).

A charge, publicada originalmente na Gazeta Mercantil, mostra carroças em círculo. A imagem associa imediatamente o formato das carroças, o vestuário dos participantes e a própria disposição dos veículos aos filmes de faroeste. As legendas que se sobrepõem a cada carroça, entretanto, são nomes por extenso e siglas de ministérios e secretarias governamentais. A mobilidade midiática é explorada no indicativo de selvageria do campo político-administrativo, cujos órgãos, que deveriam trabalhar em harmonia, se comportam como se estivessem no “Velho Oeste”. Além disso, o risível se produz pela disposição das carroças: consagrada nos filmes, a arrumação em círculo era utilizada pelos peregrinos como estratégia de defesa fortificada contra ataques de índios, bandoleiros ou outros grupos hostis. Na charge, porém, o círculo defensivo se fragmenta e cada carroça-órgão é utilizada como escudo para que seus ocupantes possam atingir os demais.

Os exemplos colhidos em O tamanho da coisa possibilitam aprofundar a percepção da reciclagem cultural. O conceito foi mais bem desenvolvido numa obra organizada por Walter Moser e Jean Klucinskas, Esthétique et recyclages culturels: explorations de la culture contemporaine, de 2004, sobre a qual Zilá Bernd assinala:

[...] [O] autor [Walter Moser] elenca quatro fatores para que se possa compreender o sentido do conceito [de reciclagem cultural]:

a) co-modificação [sic] dos objetos e produtos culturais, o que equivale a dizer que certos objetos artísticos perdem seu valor de troca quando entram no circuito comercial, ou seja, haveria uma transformação do valor artístico em valor comercial; b) reprodução industrial dos objetos de arte;

c) tecnologização dos meios de reprodução (máquinas de xerox [sic], tratamento eletrônico de textos, manipulação eletrônica de imagens, etc.);

d) mundialização no contexto pós-colonial: graças à mídia, assistimos à circulação do mesmo. (BERND, 2009, p. 244).

De modo geral, estas características podem facilmente ser observadas em HQ, impressas ou não, que obedecem à lógica do mercado. Para comprovar esta afirmação, serão analisados em separado estes elementos, cotejando-os com a Figura 38:

a) comodificação – De acordo com De Grandis (2004) a valoração econômica das obras seria o traço distintivo que separaria a reciclagem cultural de outras formas de compreender produtos culturais compósitos. A arte, assim, se apropriaria de elementos de modo a ressignificá-los, mas não apenas pelo gozo estético ou para passar mensagens, e sim atuando dentro da lógica do mercado. Nesta charge, encomendada a Laerte pela Gazeta Mercantil, a condição é perfeitamente atendida;

b) reprodução industrial – A íntima relação entre histórias em quadrinhos e imprensa foi mantida na Figura 38. Publicada em jornal impresso, a charge foi reproduzida num parque gráfico;

c) tecnologização dos meios de reprodução – O aparato tecnológico utilizado pela

Gazeta, conquanto não tivesse à disposição os atuais recursos digitais, era

seguramente mais eficiente e produtivo do que a montagem manual dos caracteres de um tipógrafo do século XVII. Na década de 80 do século passado, os jornais escritos eram grandes mediadores, permitindo a disseminação ampla das informações de que eram suporte;

d) mundialização no contexto pós-colonial – A charge se apropria de códigos referenciais não apenas intermidiáticos, no cinema, mas de temática associada a passagens históricas estrangeiras. O gênero faroeste é subvertido, revelando, em lugar de confrontos externos, dissensões internas. Os elementos tomados de empréstimo são rearranjados, de modo a possibilitar a escrita da História autóctone a partir do signo, em princípio, alienígena. A reapropriação de dados com fins de reescrita da História é, também um traço da reciclagem cultural, pois “[...] todos os materiais da história cultural são em princípio reutilizáveis, recicláveis; eles sobrevivem de maneira mais

ou menos ativa na história cultural; nada jamais estará definitivamente morto.” (MOSER, 1995, p. 1-2).

Outro exemplo de reciclagem pode ser visualizado na Figura 39, também publicada, originalmente, na Gazeta Mercantil:

Figura 39 – As “Tábuas da Lei”

Fonte: LAERTE. O tamanho da coisa. São Paulo: Circo; Oboré, 1985, p. 93. (Série Traço e Riso).

Na imagem acima, um homem vestindo trajes que parecem não pertencer à época atual, de pé numa elevação, munido de um estilingue, se prepara para lançar um objeto achatado no qual está grafado “pacto social”. O icônico bigode do homem facilita a associação, mesmo para um leitor não contemporâneo à charge, de José Sarney, que, no momento do contexto original da recepção, era Presidente da República do Brasil. Aqui, a referência é bíblica: Moisés, no sopé do monte Sinai, oferta a seu povo as Tábuas da Lei, concedidas por Deus, contendo os Dez Mandamentos. Note-se que, na versão de Laerte, o Sarney-Moisés não dá ao povo as Tábuas, mas sim se prepara para impingi-las, percutindo-as com o estilingue. O ato de impor o Pacto Social, que deveria ser acordado pelos segmentos da

cadeia produtiva da sociedade para conter a inflação (ROXBOROUGH, 1992), expressa uma forma de percepção autoritária da figura do Presidente. O empréstimo do sagrado para explicar o temporal desloca-o, reforçando a ideia de verticalidade do poder.

De modo similar ao anterior, neste exemplo também se verifica a reciclagem cultural. Além disso, é razoável supor que haja influência imagética do conhecido filme Os Dez

Mandamentos, dirigido por Cecil B. de Mille. Assim, se reforça a ideia da importância da

mundialização na constituição da obra, sem, contudo, apagar as referências às fontes dos empréstimos.

Figura 40 – Náufragos políticos

Fonte: LAERTE. O tamanho da coisa. São Paulo: Circo; Oboré, 1985, p. 48. (Série Traço e Riso).

A Figura 40 (inédita) trabalha um momento delicado da História recente do Brasil. Trata-se do que ficou conhecido como movimento das “Diretas Já”, em 1984, quando maciçamente a população foi às ruas, exigindo eleições diretas para Presidente da República, suspensas desde a instauração do regime de exceção. O êxito obtido foi parcial: eleições

indiretas para Presidente foram realizadas no ano seguinte, sendo adiada a liberdade de voto para 1988.

Nesta representação, pessoas, num torrão de terra mais elevado, aguardam, acuadas por um “mar” de faixas com os dizeres “Diretas Já”. A salvação vem na forma de uma boia salva-vidas, onde se lê: “Diretas em 88”. Na charge, a boia, o coqueiro solitário, as pontas das faixas simulando marolas, tudo conduz para a identificação da imagem com a de náufragos numa ilha.

Aqui, a reciclagem cultural se dá por meio do que Pomier (2005) chama de “autorreferenciação”, fenômeno que ocorre quando histórias em quadrinhos emprestam temas, técnicas ou personagens umas às outras. São inúmeros os exemplos de HQ, tiras, charges e cartuns que retratam náufragos solitários em ilhas que a convenção estilística costuma representar como minúsculas elevações de terra com coqueiros. A metáfora visual confunde isolamento físico com isolamento de ideias e apresenta também uma subversão de poder em relação à versão usual de naufrágio em HQ. Os homens, cercados pelas faixas, não comungam dos mesmos ideais dos manifestantes e encontram a salvação no adiamento do pleito. Assim, identificam-se com grupos de poder, preocupados com perda de privilégios. Enquanto um náufrago tradicional é a expressão do desamparo, estes indivíduos se aproximam da capacidade de determinação que caracteriza a autoridade.

É importante ressaltar que nem em todas as obras contidas em O tamanho da coisa é fácil ou mesmo viável reconhecer a atuação do operador reciclagem cultural. Em certos casos, a construção de “[...] uma forma de cômico hiper-referencial e supervitaminado [...]”72

(GROENSTEEN, 2010b, p. 70) não necessariamente conjuga elementos essenciais à construção do sentido, e sua presença, embora se constitua em intertextualidade, não caracteriza a reciclagem. Assim ocorre na Figura 41 (Gazeta Mercantil):

Figura 41 – A insustentável leveza do imposto de renda

Fonte: LAERTE. O tamanho da coisa. São Paulo: Circo; Oboré, 1985, p. 86. (Série Traço e Riso).

Um primeiro olhar revela que algo ocorreu ao homem enquanto subia a escada: os degraus cederam e ele chegou ao solo. O livro que ele segura se intitula A insustentável

leveza do imposto de renda. Neste momento, o leitor infere o trocadilho e um primeiro nível

do risível é gestado pela técnica que Saliba (2002) denomina de antítese, quando duas ideias opostas se encontram com efeito cômico. No caso, a palavra “leveza” do volumoso tomo contrasta com seu peso, que fez partir os degraus da escada.

É possível inferir a relação de intertextualidade quando o leitor apto identifica, no título do livro que aparece na charge, uma referência ao romance A insustentável leveza do

ser, de Milan Kundera. A palavra “ser” foi substituída, no desenho, pela expressão “imposto

de renda”, o que pode ser interpretado como um aditivo que aumenta o peso do enorme livro. Por este prisma, o imposto de renda adquire o valor de algo “pesado”, uma carga excessiva depositada sobre os contribuintes.

Apenas de posse destes dados, a Figura 41 poderia ser classificada como tendendo ao cartum, por trazer uma oposição atemporal, leve versus pesado, e uma queixa corriqueira há décadas no Brasil, acerca da carga tributária. A própria associação ao livro de Kundera é acessória ao entendimento do efeito humorístico, apenas gerando uma ampliação da percepção, pela captação do jogo intertextual. Mas este é um ponto de vista que pode ser radicalmente alterado, se for levado em consideração o contexto original da recepção. Nele, o homem representado na figura é identificado como sendo o então Ministro da Fazenda, Francisco Dornelles. Com esta simples informação, a imagem passa a dialogar com o momento político em que foi gestada, em que o ministro autorizava modificações no imposto de renda que aumentavam a arrecadação, ao custo de onerar mais o cidadão contribuinte. Visto desta forma, o desenho se constitui numa charge em que não há reciclagem cultural, apenas a intertextualidade, graças à referência ao livro de Kundera, que não tenta deslocar o sentido da obra, apenas ajudar a construir a gag visual, o contraponto entre leve e pesado.

Mas, se na Figura 41 o comparecimento da referência intertextual é incidental, o mesmo não pode ser dito da Figura 42 (Gazeta Mercantil), a última em cuja composição foi identificado o princípio da reciclagem cultural:

Figura 42 – Versão de A criação de Adão

Fonte: LAERTE. O tamanho da coisa. São Paulo: Circo; Oboré, 1985, p. 63. (Série Traço e Riso).

A cena acima é composta por três indivíduos: um deles, um homem sem roupas usando óculos, está deitado no solo com o braço esquerdo esticado e tem sua cabeça utilizada como apoio pelo segundo homem, do qual se vê apenas o torso nu, também com o braço esquerdo esticado, o dedo indicador quase tocando o dedo do terceiro componente da imagem, do qual só a mão aparece. A composição alude a um famoso excerto de uma pintura feita por Michelangelo no teto da capela sistina, A criação de Adão (FIGURA 43).

Figura 43 – A criação de Adão

Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/e3JV9t>. Acesso em: 30 nov. 2013.

Nota: “Entre 1508 e 1512, Michelangelo trabalhou no teto da Capela Sistina, no Vaticano. Para essa capela, concebeu e realizou grande número de cenas do Antigo Testamento. Dentre tantas cenas [...], uma particularmente representativa é a da criação do homem. Deus, representado por um homem de corpo vigoroso e cercado por anjos, estende a mão para tocar a de Adão, representado por um homem jovem, cujo corpo forte e harmonioso concretiza magnificamente o ideal da beleza do Renascimento.” (PROENÇA, 2004, p. 89).

Neste caso, a menção à obra renascentista que inspirou a obra de Laerte não é suficiente para apreensão do sentido da imagem. Para tanto, é necessário que o leitor possua em seu repertório acesso ao quadro referencial em que a charge foi concebida, no rastro dos eventos posteriores à manifestação das “Diretas Já”, em 1984. Foi convocada, em 1985, uma eleição indireta à Presidência da República brasileira, realizada por um colégio eleitoral, contando com dois candidatos: Paulo Maluf e Tancredo Neves. O primeiro representava o Partido Democrático Social (PDS), que dominara a cena política por todo o regime militar; o segundo, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição. Embora a correlação de forças favorecesse, inicialmente, o candidato governista, o fluxo de mudanças não pôde ser refreado e Tancredo Neves se sagrou vitorioso. Para ilustrar este fato, na charge

acima, Laerte reinterpretou o famoso afresco de Michelangelo, introduzindo significativas alterações.

Para começar, o “Adão” deitado no chão tem o rosto de Paulo Maluf e é sobrepujado por outro, que desloca seus óculos com o cotovelo e ostenta a face de Tancredo Neves. Este não aparece de corpo inteiro, como se estivesse se materializando no ar, a consubstanciação de uma possibilidade que surge quando seu adversário já se preparava, mão levantada, para receber a bênção da vitória. O desenho sinaliza, portanto, uma competição, não um ato criador, como o da pintura do Vaticano. Não se trata de gerar o primeiro homem, mas de escolher entre duas tendências políticas, na figura de seus representantes. Neste contexto de reciclagem cultural, a mão incorpórea que “aponta” o vencedor é mais facilmente associada ao colégio eleitoral, ao processo do escrutínio, do que à divindade retratada por Michelangelo. Embora seja possível reconhecer, subjacente, o trabalho do artista italiano, seu sentido, religioso, criacional, foi deslocado para uma disputa temporal. “Em cada processo de reciclagem cultural há uma nova produção ou um novo significado a ser registrado.”73

(MOSER, 2007, p. 6).

Chama a atenção, nas charges de O tamanho da coisa, que a quantidade de obras em que foram percebidas ações de reciclagem cultural é substancialmente maior do que em

Ilustração sindical. Deveras, em se considerando a diferença de volume dos encadernados, a

diferença é ainda mais gritante. É difícil precisar uma razão para isto. Talvez a linha editorial da imprensa sindical demandasse um número menos variado de temáticas. Ou, talvez, a expectativa de público-alvo do quadrinista, na grande imprensa, abrangesse leitores de maior poder aquisitivo e, teoricamente, maior acesso à informação, dispondo de “[...] recursos e tempo para transformar equívocos em curtições.” (LAERTE, 1985, p. 5). Quiçá a construção polarizada das obras elaboradas para a imprensa sindical tenda a exigir mensagens mais lineares, para garantir a preservação do sentido desejado. De toda sorte, a tendência ao jogo com as referências culturais, esboçado neste início de carreira, irá desabrochar nos anos seguintes, como será visto nos próximos capítulos.