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3 DO PIQUETE AO PACOTE: ENTRE A CAUSA OPERÁRIA E A

3.1 ANOS REBELDES

3.1.2 Quem trabalha, batalha: um chamado às armas

Ilustração sindical coleciona retratos de condições inapropriadas de exercício da vida

laboral. A primeira seção do livro foi denominada “Trabalhadores em vinhetas de um só personagem”. Num romance épico, este capítulo poderia ser um introito, a apresentação dos “heróis” da história. As ilustrações seguem o princípio da economia visual, tentando produzir identificação a partir do traço mínimo. Como já discutido, os quadrinhos, por limitação de espaço, tendem à simplificação. Não necessariamente a estereotipia teria valor de degradação, podendo levar à reflexão sobre o porquê de um traço ter sido escolhido como representativo em lugar de outro ou mesmo aumentar, em algum nível, a visibilidade do estereotipado (ZINK, 2011), sendo preciso averiguar em que contexto se insere e que função cultural cumpre numa HQ para que seja possível avaliá-lo sem precipitação (GONZÁLEZ, 2006).

Para a caracterização dos trabalhadores, em Ilustração sindical há personagens de uniforme, reunindo-se em sindicatos rurais e ao lado do relógio de ponto, dentre muitas outras situações (FIGURAS 17 a 20).

Figura 17 – Trabalhador urbano uniformizado

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 10.

Figuras 18 – Trabalhadores rurais 1

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 75.

Figuras 19 – Trabalhadores rurais 2

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 75.

Figura 20 – Trabalhador e relógio de ponto

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 19.

É possível estabelecer, com base nas figuras exibidas anteriormente, um paralelo entre as representações dos trabalhadores urbanos e rurais. Os primeiros são delineados num tom mais cartunesco, porém com traços identificadores que os personalizam. Já os trabalhadores rurais, que pouquíssimo aparecem na obra, são desenhados num estilo mais realista, porém indiferenciado, que quase não individualiza os personagens. O distanciamento deste tema por parte de Laerte, sugerido pelo uso de um traço mais rígido, delineando menos as feições e exibindo menos aspectos caricatos, talvez se deva à menor familiaridade do quadrinista com as demandas específicas do rural. Note-se que o personagem mais expressivo das cenas é justamente o gato, que não seria um componente exclusivo do campo (FIGURAS 18 e 19). Basicamente, Ilustração sindical se dedica a explorar situações relativas ao trabalho urbano, mais especificamente no setor industrial. Convém reparar, entretanto, que há, na representação dos campônios, uma metáfora visual que explora uma situação recorrente no álbum: a ideia de que apenas a união, em torno do sindicato, pode espantar a fera descomunal. Na Figura 18, em que se inicia o movimento, o trabalhador se encontra sozinho, ameaçado pelo felino gigantesco, que, numa metáfora visual, “mostra suas garras”. Este gato, de tamanho desproporcional, remete à simbologia do patrão que escorcha seus empregados, usurpando seus direitos como um “gatuno” e fugindo dos trabalhadores unidos, literalmente, “com o rabo entre as pernas”, como se pode ver, à continuação, na Figura 19. A ideia de que só a união dos trabalhadores em torno do sindicato pode dar combate aos perigos é amplamente disseminada pelo livro e o uso de metáforas visuais e de seres fantásticos representando os interesses do patronato. Não são estratégias incomuns:

Tem-se falado, e com razão, que a caricatura é uma linguagem artística de grande alcance popular. Podemos notar isso observando as estratégias utilizadas na composição de desenhos compreen-síveis [sic] para o grande público, como o uso de metáforas simples (carros e barcos para representar o Estado, futebol e xadrez como símbolos da luta pelo poder) e de arquétipos tradicionais, como bichos repelentes (cobras) para representar o mal [...]. (MOTTA, 2006, p. 18).

Tais imagens correspondem a estereótipos sobre o serviço laboral amplamente difundidos e facilmente reconhecíveis, mesmo por indivíduos não pertencentes a grupos sociais correlatos aos retratados. A recorrência de representações de indivíduos trajando ou agindo como trabalhadores do campo e da cidade, segundo Paranhos (2011), mais do que apresentar pessoas e situações adequadas aos assuntos abordados por boletins e jornais sindicais, seria, ao menos para formas mais arrojadas de ação participativa, parte de uma estratégia para consolidar o trabalhador como referencial de identidade de grupo, convocando, nesse (auto)reconhecimento, a unidade requerida para mobilização massiva pela persecução

das metas coletivas. O desenho, neste caso, viria tornar mais palatável e robusto o texto escrito, auxiliando complementarmente a cristalização desses enunciados no imaginário do leitor: “Um cartum pode ser simplesmente o equivalente visual de parte de uma retórica séria, uma maneira de expressar um ponto de vista respeitável de forma predominantemente visual, embora talvez acompanhado de um texto para reduzir a ambiguidade.” (DAVIES, 2011, p. 94).

Por sua vez, a Figura 20 sustenta um jogo de palavras entre o ponto a ser batido para trabalhar e o ponto de ônibus. Pode ser lida como uma crítica à maneira como o mundo do trabalho se insere nos espaços pessoais, sobretudo com relação ao excesso de horas extras compulsoriamente exigidas, como se pode notar pelo aspecto exausto do trabalhador (evidenciado por olhos semicerrados, expressão cansada, pequenos globos estourando diante do rosto, postura corporal curvada, ombros caídos, joelhos flexionados). Se considerada a retratação como de horário de chegada, exibe um trabalhador exausto pelas horas em transporte coletivo, tendo que acordar antes do sol raiar para chegar à fábrica a tempo; se a imagem for entendida como de horário de saída, à noite, reforça a ideia de permanência no ambiente de trabalho além do período regulamentar. Esta imagem evidencia a ameaça, já discutida, do mundo profissional ao pessoal, em um dos aspectos mais presentes no livro, a carga de trabalho excessiva, tanto em tempo, quanto em volume de serviço, associada às condições inadequadas de trabalho.

Um exemplo que denuncia a quantidade abusiva de funções designadas para cada trabalhador, sobrecarregando-o, pode ser visto na Figura 21:

Figura 21 – Excesso de funções

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 63.

Nesta imagem, um operário de aparência mesmerizada – olhos esbugalhados e sombreado dividindo o rosto – utiliza mãos e até pés excedentes na consecução de múltiplas tarefas. A associação ao filme Tempos modernos (2012) é inevitável: a visão de um Chaplin preso a engrenagens ou realizando tarefas como autômato na linha de montagem é fácil e pertinente. Mas, do ponto de vista formal, também é viável a analogia com o célebre desenho de Leonardo da Vinci, O homem vitruviano (FIGURA 22):

Figura 22 – Homem vitruviano

Fonte: DA VINCI, Leonardo. O homem vitruviano. [c. 1492]. In: REBOUÇAS, Fernando. O homem vitruviano. 2009. Disponível em: <http://goo.gl/Hej9d>. Acesso em: 20 jan. 2012.

Nota: “Cerca de 1492 Leonardo da Vinci desenhou este homem de proporções ideais dentro de um círculo. A obra teve como base o tratado ‘De Architectura’ escrito no século I d.C. por Vitruvius. Como o desenho também celebra o potencial humano, o Renaissance Computer Institute e outras organizações o adotaram como logomarca.” [Around 1492 Leonardo da Vinci draw this man inside a circle. It is based on the treatise “De Architectura” written in the first century AD by Vitruvius. Because the drawing also celebrates the human potencial, the Renaissance Computer Institute and other organizations have adopted it as a logo.] (GRENDLER, 2006, p. 112).

Metáforas visuais são recursos caros aos quadrinhos em geral e a Laerte em particular; neste caso, porém, a metáfora envolvida tem um componente a mais: trata-se de um caso de reciclagem cultural. Retratar o trabalhador premido a uma multiplicidade de tarefas joga com ideias associadas a O homem vitruviano, confrontando o papel que lhe foi atribuído de modelo da humanidade às condições subumanas a que são submetidos os operários, combinando atividades que são, mais do que sobreposicionamento de tarefas de mesma categoria profissional, sutis acusações de desvio de função, por sua variedade. Por esta denúncia, o “operário multifuncional” – terminologia em voga em indústrias na década de 80 – encobriria sobrecargas de trabalho, com equipamento de proteção individual insuficiente (só duas mãos portam luvas, os pés estão descalços). Tudo isto não apaga o traço do desenho renascentista, o que arruinaria o processo referencial (MOSER, 1993). Aquele significado continua disponível como base para novos questionamentos.

As condições pouco salutares de trabalho são igualmente retratadas em várias ilustrações. Uma importante reivindicação, presença constante em propostas de acordos trabalhistas, era a melhoria destas condições. Paranhos (2011) descreve muitas vezes as fábricas como locais infernais, o que parece ser corroborado por várias imagens, como a da Figura 23. Nela, É o próprio demônio quem indica ao homem seu local de trabalho: subterrâneo, privado de luz, exalando gases, uma aproximação entre a fábrica e o inferno. Há um número expressivo de representações de demônios e monstros em Ilustração sindical que ajudam a definir os trabalhadores positivamente, por oposição, na lógica dualista que rege, primariamente, a composição dos desenhos.

Figura 23 – Ambiente infernal

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 55.

Neste contexto, se os operários são estereotipados, também o são os patrões, tratados inexoravelmente como adversários e detentores de poder abusivo que não hesitam em fazer valer. Na Figura 24, a metáfora visual mostra que certos acordos salariais são iscas para colocar o trabalhador numa ratoeira. Ao assinar o documento, que ocupa o lugar do queijo na representação tradicional da ratoeira, o operário dispara o mecanismo e é eliminado pelo golpe certeiro do engenho. O patrão, comumente, como aqui, é estereotipado de paletó e gravata, fumando charuto – aqui substituído pela piteira, uma fórmula mais sofisticada de tragar que meramente fumar um cigarro. Carecas e cartolas são também elementos comuns, assim como a opulência sugerida pela obesidade. Patrões, nestas representações, nunca têm barba ou bigode, que são traços reservados ao operariado, talvez por um estereótipo associado aos trabalhadores de indústria, talvez por ligação imagética com o marxismo. De toda sorte, retratar este grupo de personagens desta forma se enquadra num discurso bastante disseminado, pois “[...] a barba pode ser um traço de prestígio, pois o identifica com os trabalhadores, assim como os grandes líderes revolucionários de oposição ou de esquerda.” (SANCHOTENE, 2011, p. 69).

Figura 24 – Ratoeira

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 51.

A polarização sugerida pelas diferentes formas de representação dos personagens do operariado e do patronato se torna mais visível quando os grupos comparecem na mesma ilustração. Neste momento, o antagonismo é invariavelmente imediato. Dentre os perigos a que os trabalhadores estão sujeitos nesta relação, sobressai-se o das demissões, bastante explorado (FIGURAS 25 e 26).

Figura 25 – A automação e as demissões

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 41.

Figura 26 – A ameaça do desemprego

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 96.

Muitas eram as causas para as demissões, ligadas à recessão econômica, à militância político-sindical etc. Uma destas razões, para a qual há certo número de imagens em

Ilustração sindical, é a automação nas fábricas, mostrada na Figura 23. Segundo Paranhos

(2011), porém, a automação era uma das reivindicações operárias no ABC na pauta de negociações de 1982, levantada após discussões em “várias assembleias setoriais”. A existência de discursos dissonantes não se reflete nesta obra de Laerte, na qual a complexificação do maquinário é sempre designada como ameaçadora. A assertividade do material, que se pretende homogêneo, se mantém na unidade discursiva. O fato de a seleção de desenhos de Ilustração sindical representar um período que compreende o ano de 1982 sinaliza que é dominante a perspectiva do presente, 1986, quando há uma expectativa de fábricas totalmente automatizadas e de abertura de vagas apenas para trabalhadores

especializados (SUZIGAN, 1993). A releitura planificada do passado, eliminando retroativamente incongruências, é um tipo de esquecimento ativo básico para a reciclagem cultural da História (MOSER, 2000).

É interessante observar como, na Figura 26, os trabalhadores se encontram unidos na “luta”. O adversário tem aparência humanoide, mas o tamanho e o nome que ostenta em suas vestes, “FANTASMA”, definem sua condição sobrenatural. Fora do ringue, está o patrão, assustado, cabelos em pé, olhos esbugalhados, cartola que salta, gotas que saem de sua cabeça. Normalmente, em Ilustração sindical, patrões não enfrentam diretamente os funcionários, enviando criaturas monstruosas como prepostos. A faca nas mãos do lutador é também simbólica: a arma do fantasma do desemprego é utilizada para efetuar “cortes” de pessoal, demissões. Assim como ocorreu na Figura 19, em que trabalhadores rurais se uniram contra o gato gigantesco, a solução para combater inimigo tão desproporcional é a força dos números.

Propalada como estratégia máxima de resistência à opressão, a união dos trabalhadores chega às últimas consequências na greve. Os registros deste tipo de mobilização são abundantes na obra. Nesse momento se vê a eficiência do uso das metáforas visuais; afinal, uma paralisação é, em outras palavras, uma inação, ou, melhor dizendo, uma não-ação, já que consiste na interrupção de atividade laboral. As formas encontradas pelo artista para retratar inequivocamente o que poderia ser interpretado como aglomeração, assembleia ou passeata foram, sobretudo, o recurso ao suporte linguístico (FIGURA 27) e a transposição para o plano imagético de uma expressão corriqueira, o “cruzar os braços”, bastante utilizada no jargão sindical, com sentido de suspender a execução das tarefas (FIGURA 28).

Figura 27 – Greve

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 92.

Figura 28 – Braços cruzados

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 92.

Das muitas retratações da greve, não obstante, uma é mais relevante para os propósitos desta pesquisa. É a que aparece na Figura 29:

Figura 29 – Greve e família

Fonte: LAERTE. Ilustração sindical. 5. ed. São Paulo: Oboré, 1989, p. 94.

A representação da greve ordinariamente a suporta como um ato coletivo, fruto da união dos trabalhadores, uma muralha humana brecando os interesses do patronato; entretanto, na Figura 29, um homem de braços cruzados e olhos fechados, numa expressão que poderia ser interpretada como de serena convicção, é apontado por um menino sorridente,

que o identifica como seu pai. Na declaração do garoto, “Me orgulho do papai: ele não fura greve”, se vê reforçado o desejo de inclusão do universo familiar nesta luta por direitos. Nesta imagem, é patente a incitação ao envolvimento do círculo íntimo do operário, para dar-lhe suporte. A família deve participar da luta, que se expande até abarcar o todo da vida do operário. Ao ambiente social, afetado negativamente pelos excessos do mundo profissional, não cabe a neutralidade.