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2 JOGANDO LE CADAVRE EXQUIS: A DIFÍCIL ARTE DE

2.3 QUADRINHOS E COMUNICAÇÃO DE MASSA: DILEMAS DE

Ao atuarem como meio de comunicação de massa, as histórias em quadrinhos necessariamente dependem de meios de reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1978). Estes meios, inicialmente, estavam restritos às diversas formas de impressão física, mas hoje o uso do suporte digital se dissemina. A maior disponibilidade dos objetos artísticos, sustenta Benjamin (1978), desconecta-os do universo elitizado dos estetas, abrindo a discussão para setores mais abrangentes da sociedade. Dados o volume e a rapidez do fluxo de informações, seja em papel, película ou em suporte eletrônico/digital, os meios massivos se integraram ao dia a dia, de modo que as transformações trazidas são muitas vezes percebidas não como impactos, mas adaptações simples requeridas pela vida cotidiana. A tal ponto se entremeiam à dinâmica social que não são apenas veículos de difusão das mudanças e permanências das percepções de mundo, mas atuam como importantes elementos na instituição dessas percepções.

À evolução das modalidades e das condições de produção [...] se segue uma transformação concomitante de nossas sensibilidades culturais e do sistema de valores associado às categorias de objetos que constituem nosso espaço, sobretudo nos grandes centros urbanos.32 (KLUCINSKAS; MOSER, 2004, p. 18).

Jacques Rancière, numa inversão da tese benjaminiana, sustenta que,

[...] [para] que as artes mecânicas possam dar visibilidades às massas ou, antes, ao indivíduo anônimo, precisam primeiro ser reconhecidas como artes. Isto é, devem

primeiro ser praticadas e reconhecidas como outra coisa, e não como técnicas de reprodução e difusão. [...] Que o anônimo seja não só capaz de tornar-se arte, mas também depositário de uma beleza específica, é algo que caracteriza propriamente o regime estético das artes. Este não só começou bem antes das artes da reprodução mecânica, como foi ele que, com sua nova maneira de pensar a arte e seus temas, tornou-as possível.” (RANCIÈRE, 2005, p. 46-47, grifos nossos).

Não necessariamente o aporte de Rancière exclui o de Moser e Klucinskas, ou mesmo o de Benjamin, contudo; se as técnicas de reprodução surgiram pela primeira vez num

32 Aux évolutions des modalités et des conditions de production [...] s'ajoute une transformation concomitante de

nos sensibilités culturelles et du système de valeurs associé aux catégories d'objets qui constituent notre environnement, surtout dans les grands centres urbains.

contexto social que permitiu a criação e difusão desta inovação, na sociedade contemporânea, por sua vez, em que tais avanços já fazem parte do cotidiano, não parece ser mais viável estabelecer nexo de causalidade, pois as sensibilidades e as tecnologias, é razoável supor, se entrelaçam e alimentam umas às outras, se construindo e reconstruindo continuamente. Certas formas de arte, inclusive, como o cinema, e certos movimentos como a op art, dependem visceralmente do equipamento adequado para existir e, embora o façam numa sociedade que criou as condições que tornaram possível seu nascimento, sentido e permanência, terminam também por influenciar as percepções desta mesma sociedade, modificando referenciais culturais e estéticos.

Voltando a discussão para as histórias em quadrinhos, é possível perceber a complexidade dos movimentos. A internet, como salto tecnológico, aumentou o acesso a histórias em quadrinhos em meio virtual. Das HQ circulantes na rede, entretanto, presume-se que a maioria se compõe de obras digitalizadas de grandes editoras e produções postadas pelos próprios autores. No primeiro caso, afora as poucas histórias licenciadas, abundam os

scans, digitalizações cujo respeito à propriedade intelectual é sujeito a interpretação; no

segundo, as histórias em quadrinhos – tiras, em sua maioria (RAMOS, 2012b) – são voluntariamente disponibilizados por seus autores, gratuitamente, “[...] porque não se ganha para produzir tiras e histórias num site ou num blog.” (RAMOS, 2012b, p. 481).

O desenvolvimento da reprodutibilidade técnica possibilitou aos quadrinhos, assim como a outros gêneros, portanto, não só a ampliação do acesso, como previa Benjamin, mas a proliferação de criadores de obras, pela diminuição do custo para sua veiculação. Quanto à recepção, se é lícito pensar que havia um meio social propício à eclosão do quadrinho digital, como quer Rancière, tampouco é despropositado supor que esse leitor precisou ser gestado na especificidade da apresentação da HQ virtual, concordando com Klucinskas e Moser, lidando, por exemplo, com o cansaço visual da leitura em tela e com a pausa forçada do movimento das barras de rolagem. “Assim, a tela requer um consumidor habilitado às suas propriedades, que correspondem a uma outra mimese do real. Não mais o mundo que se apresenta na forma da síntese e da continuidade temporal, mas se dá de maneira repartida, concomitante, gráfica e audiovisual.” (ZILBERMAN, 2011, p. 85).

Tecnologia, produção e recepção se imbricam no universo dos quadrinhos digitais, por conseguinte, mas há ainda um curioso desdobramento que deve ser registrado. Em grande parte das situações aplicadas, a educação recíproca das sensibilidades do quadrinista e de seu público visa uma futura migração de mídia. Sobejam exemplos, como observa Paulo Ramos (2012b), de tiras exibidas pela internet que são compiladas em livros, impressos e

comercializados. O movimento de retorno a uma matriz tecnológica anterior à virtual obedece, em parte, a uma lógica de mercado, mas é mais complexo do que isso, já que, via de regra, é normal que o material continue disponível online. Seria possível vincular o interesse do consumidor ao fetiche da posse física do livro, ao impulso colecionista, ao maior conforto de leitura, ao estímulo tátil do papel – mas, à falta de um estudo sistemático, que foge à finalidade deste trabalho, estas explicações para o fenômeno se restringem ao campo especulativo.

2.4 CONCEITO OU METÁFORA? EM BUSCA DO ESPECÍFICO EM HISTÓRIAS EM